Day: novembro 13, 2020

Forças de oposição devem fortalecer leque de alianças para segundo turno das eleições

Editorial da revista Política Democrática Online de novembro observa falta de apoio de Bolsonaro nas disputas municipais

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Forças de oposição devem prosseguir na convergência programática, no fortalecimento de um amplo leque de alianças para o segundo turno das eleições, em torno do eixo político hoje fundamental: defesa da saúde, da vida e da democracia. O posicionamento é do editorial da revista Política Democrática Online de novembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza, em seu site, todos os conteúdos da publicação, gratuitamente.

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De acordo com o texto, de maneira geral, a tendência das eleições deste ano seguiu o rumo da redução das atividades presenciais, do corpo a corpo com o eleitor, das reuniões nos espaços públicos e privados. “A propaganda por meio do rádio e da televisão não parece, contudo, haver recuperado pelo menos parte da relevância perdida em 2018. Em contraste, a campanha por meio das redes sociais continua a prosperar”, observa.

O editorial da revista Política Democrática Online também aponta que, no tocante ao movimento das intenções de voto, capturado na sequência das pesquisas divulgadas até o momento, emergem dos dados disponíveis hipóteses interessantes. “Todas, evidentemente, a serem objeto de verificação após o confronto com os resultados finais do pleito”, afirma um trecho.

O aparente paradoxo de a popularidade do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), ainda elevada, não rende dividendos eleitorais no pleito municipal, conforme destaca o editorial. “O cenário insólito de nenhum candidato com apoio ostensivo do presidente lograr êxito nas capitais parece próximo de se realizar. Em contraste, os prefeitos em exercício transitam com facilidade nas campanhas, seja em benefício próprio, nos casos de tentativa de reeleição, seja no posicionamento de seus candidatos na liderança das pesquisas ou, ao menos, num dos lugares do segundo turno”, diz.

Segundo o editorial, tudo indica que prevaleceu no eleitorado a tendência ao pragmatismo, à separação prudente das esferas nacional e municipal da política. “O programa de transferência de renda em vigor, reconhecido como fundamental para enfrentar a crise em curso, é atribuído, corretamente ou não, a uma decisão do presidente e retribuído com avaliações positivas nas pesquisas de popularidade”, afirma.

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Fernando Gabeira: Um grande exorcismo

Se foi possível nos EUA, por que não aqui, com personagens tão caricatos?

A derrota de Donald Trump não só tranquilizou, como trouxe alento a muitos países no mundo. A expressão de Francis Fukuyama referindo-se ao exorcismo para definir a vitória de Joe Biden é muito precisa. Parece que tudo volta lentamente a um curso mais racional, menos imprevisível. O Acordo de Paris volta a ser um instrumento potencialmente eficaz para combater o aquecimento global. Angela Merkel saudou a volta de uma aliança transatlântica e suas possibilidades.

Alguns países se recusam a reconhecer a derrota de Trump. China, Rússia e Brasil estão entre eles, por motivos diferentes, creio. Na linguagem diplomática o atraso é uma mostra inequívoca de insatisfação com o resultado. Tanto a China quanto a Rússia contavam com o avanço do processo de decadência americana, encarnado por Trump e seu isolacionismo.

O caso brasileiro é de orfandade. Bolsonaro perdeu seu grande inspirador. E a política externa, comandada por Ernesto Araújo, não tem mais o que considera o líder do Ocidente que iria fazer prevalecer os valores morais sobre o materialismo reinante. Não se sabe de onde se trouxe uma figura laranja, cheia de problemas com o Fisco, rude com as mulheres, para o cargo de guardião do cristianismo.

A pior das ilusões foi a expectativa provinciana de Bolsonaro se tornar amigo de Trump. Este sabe que nações não têm amigos e está escorado no slogan “America first”. Objetivamente, fez de Bolsonaro um fiel seguidor, pronto para aprovar tudo em nome de uma pretensa amizade pessoal, ali onde estavam em jogo interesses nacionais. A exportação do aço foi taxada, Bolsonaro dilatou o prazo para a importação do etanol e colocou sua diplomacia num ato de campanha eleitoral na fronteira com a Venezuela, quando da visita de Mike Pompeo. Para dar mais uns votinhos a Trump na Flórida. O Brasil armou o circo que Pompeo precisava.

Agora tudo acabou. Se há esperanças na Europa, aqui há apreensão. É muito difícil Bolsonaro adaptar-se à posição ambiental de Biden. Para Bolsonaro será mais uma forma de adotar uma falsa postura nacionalista e não interromper o processo de destruição da Amazônia, o único caminho que vê para o progresso, nos termos em que o entendem as pessoas que ficaram congeladas nos anos 70 do século passado.

Logo depois da eleição de Biden Bolsonaro pensa em lançar um marco regulatório das ONGs. Na verdade, é uma promessa antiga, pois afirmou que iria acabar com o ativismo no Brasil. Trata-se de algo inconstitucional, que deve encontrar resistência no Congresso e no Supremo.

Além disso, circula um documento no Conselho da Amazônia dizendo que chineses e europeus têm planos para levar a água de lá. Não se sabe como o fariam sem o consentimento brasileiro É mais uma história para fantasiar uma luta nacionalista e ampliar o processo de destruição em nome dos interesses do Brasil.

No passado era o minério e agora, a água. Não creio que elaborem essas teorias de má-fé. Lembro-me, no passado, de já se ter discutido a possibilidade de exportação de água. Foi uma discussão baseada no Canadá, também exportador. Não foi adiante. Era uma exportação controlada, mas não se demonstrou a viabilidade.

Se os chineses podem levar nossa água, por que não nosso açaí, nossa castanha e todos os outros recurso naturais? Essa formulação alucinada só servirá para aumentar o isolamento brasileiro. Sem o deus laranja da nossa diplomacia, com Bolsonaro atuando de forma estúpida num contexto externo delicado e caminhando para uma crise interna sem precedentes, o grande exorcismo ainda não atingiu o Brasil. O mundo ficou mais inteligível e racional, mas os espíritos secundários que baixaram por aqui ainda não permitem que nos livremos de seus delírios maníacos. Uma coisa nos anima: se foi possível em escala maior, por que não aqui, com personagens tão caricatos?

O último pronunciamento de Bolsonaro nos indica o nível de insanidade a que chegou o governo brasileiro. Ele insinuou um conflito armado com os EUA ao dizer que vai usar a saliva, mas quando acabar restará a pólvora.

Uma forma de desestimulá-lo é informar-lhe que a pólvora foi descoberta pelos chineses – ele certamente vai duvidar desse instrumento, como duvida da vacina contra o coronavírus. Outra é apelar para sua generosidade. Os EUA acabam de sair de uma eleição difícil, combatem como nós uma pandemia, não é justo amedrontá-los com um conflito armado. Eles seriam jogados na máquina do tempo, sentiriam no contato com nossos equipamentos como se estivessem entrando de novo na 2.ª Guerra Mundial. Talvez valesse mais a pena fazer o general Mourão e alguns militares reformados que jogam vôlei no Posto 6, em Copacabana, invadir a Filadélfia e reverter o resultado eleitoral. Isso traria menos conflito e bom material para programas humorísticos mundo afora.

Na verdade, o governo Bolsonaro seria risível se não se tratasse de uma pandemia que mata tanta gente e de uma política ambiental que reduz as chances de vida no planeta. Por isso se tornou uma tragicomédia, cujo prazo de duração até 2022 é muito doloroso.

*Jornalista


Merval Pereira: Paciência histórica

Mais fácil imaginar um país como o nosso, em uma região com uma triste história de golpes militares e ditaduras, temer uma intervenção militar do que os Estados Unidos. Mas vivemos em tempos tão estranhos que a insistência do presidente Donald Trump em não reconhecer a derrota na eleição presidencial para Joe Biden está levando os americanos a uma situação nunca vista, a de temer um golpe para Trump continuar no poder.

A disputa não vai apenas pelo lado da Justiça, onde se decidem os embates político-eleitorais nos Estados Unidos, mas também no campo militar. A demissão do Secretário de Defesa Mark Esper, e a nomeação de assessores leais no Pentágono trouxeram para a cena política um temor que não combina com a tradição democrática americana, mas com a atuação política de Donald Trump, que não gosta dos limites que as instituições democráticas impõem ao presidente da República.

A demonstração de desapreço pela liturgia democrática não deve passar disso, uma arrogância sem resposta institucional favorável. Protagonista de memes nas redes sociais que o transformam em bobo da corte, não no rei que gostaria de ser, Trump vai se deteriorando pessoalmente, mas também a maior democracia do mundo sofre com seus arroubos.

O fato de o país continuar seu cotidiano sem grandes alterações pode ser uma demonstração, mais adiante, de que a democracia tem meios de neutralizar as bazófias de Trump sem torná-las uma ameaça real. Aqui no Brasil, à custa de crises e ameaças à democracia, conseguimos controlar o nosso Trump tupiniquim.

Bolsonaro ensaiou passos agigantados em direção a um golpe militar, fomentou um ambiente tensionado contra os outros poderes da República, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), mas foi obrigado a recuar. Não teve apoio dos militares, nem conseguiu uma mobilização popular que o pusesse em condições de desafiar as instituições.

Os inquéritos das “fake news” e sobre a tentativa de desmoralizar o Supremo e o Congresso para subjuga-los, acabaram acuando o nosso aprendiz de feiticeiro, e a prisão do famigerado Queiroz teve o dom de convencê-lo de que a cadeia era uma possibilidade real. Nos Estados Unidos, Donald Trump foi alvo de um processo de impeachment que acabou bloqueado no Senado de maioria republicana. Aqui, Bolsonaro tem dezenas de pedidos de impeachment guardados na gaveta do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia.

Já houve clima político para tal decisão drástica, agora já não há mais. Apoiado pelo Centrão, o presidente Bolsonaro já não precisa temer um processo político, mas parece inevitável que venha a ter problemas políticos-policiais em relação a seus filhos, já que o presidente da República não pode ser processado no cargo, a não ser por fatos que tenham a ver diretamente com seu mandato.

As “rachadinhas” nos gabinetes dos filhos na Assembléia Legislativa do Rio, na Câmara de Vereadores e na Câmara dos Deputados estão sendo investigadas, e cada vez mais as apurações levam a desvendar uma armação financeira que fez da família Bolsonaro beneficiária de remunerações ilegais. Assim como Trump, cuja resistência maior em deixar a Casa Branca tem a ver com os problemas judiciais que vai enfrentar nos seus negócios particulares ao perder a imunidade presidencial, também Bolsonaro e os filhos têm contas a prestar com a Justiça.

Em meio a mais uma onda de protestos contra a postura de Bolsonaro diante da pandemia, que poderia resultar teoricamente em um processo de crime de responsabilidade, uma voz experiente se levanta para apoiar a cautela com que Rodrigo Maia vem tratando o assunto.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso classificou como “um desastre” a comemoração de Bolsonaro após a interrupção dos testes da vacina que o Instituto Butantan está realizando com a CoronaVac chinesa. Mas receitou “paciência histórica” para aguentar Bolsonaro no governo por mais dois anos, e derrotá-lo nas urnas, como aconteceu com Trump nos Estados Unidos.

Correção
Ontem, cometi um erro na coluna pelo qual me penitencio. Bolsonaro era tenente, não major e, indo para reserva, virou Capitão. Já corrigi ontem mesmo na edição digital.


Míriam Leitão: Além da moeda instantânea

No dia da eleição americana, havia uma animação no Banco Central brasileiro. Nada a ver com o que se passava nos condados azuis e vermelhos. Era o primeiro dia de testes de um sistema de pagamentos que começou a ser arquitetado há cinco anos. Para o cliente, o pagamento instantâneo, chamado de PIX, pode parecer apenas uma comodidade, mas, segundo o diretor do BC João Manoel Pinho de Mello, ele levará a mais competição, menores custos e mais inclusão no sistema financeiro. A nova forma de pagar começa a operar na segunda-feira com a expectativa de mudar a relação que o brasileiro tem com o dinheiro. Se conseguir diminuir a concentração do nosso mercado bancário já terá provocado um efeito importante.

O objetivo do PIX, como todo mundo entendeu, é que o dinheiro e a informação trafeguem de forma imediata. Cerca de 10 segundos, em média, segundo o Banco Central. E sem custos para pessoas físicas. Os clientes que pagam taxas em transferências terão redução de despesas, os credores terão menos riscos porque saberão na hora que as dívidas foram quitadas.

— Imagine uma carga no porto que precisa de várias guias de pagamento para ser liberada, com diversos órgãos de governo. Esse processo pode levar dias. Com o pagamento instantâneo, será na hora. O dinheiro chega em uma ponta e a informação de quitação volta na outra. Isso vale para tudo, é ganho de produtividade na economia — explicou Pinho de Mello.

As mudanças microeconômicas no sistema financeiro vêm buscando há muitos anos o mesmo objetivo: spreads menores. No BC, eles garantem que os juros caíram muito e em algumas linhas já são compatíveis com níveis internacionais. Ainda não é o que todo tomador sente. Com mais participantes nesse mercado de transação financeira, pode haver, num segundo momento, um custo do crédito menor. Com mais gente oferecendo empréstimos, a aposta é que os juros possam cair.

Para o pequeno empreendedor, por exemplo, espera-se o incentivo ao chamado nanocrédito, pequenas e rápidas operações de financiamento. Como a transferência não tem custos ou um custo bem menor do que o atual nas transações entre firmas, um comerciante pode, por exemplo, adiantar a passagem de ônibus de um fornecedor que lhe venda produtos mais baratos e de melhor qualidade. Hoje, o preço do TED e do DOC inviabiliza a margem dessas operações menores. Esse é só um pequeno exemplo de como o pagamento instantâneo pode ter efeito na ponta da economia.

Os bancos perderão as receitas com o TED e o DOC. O Banco Central não tem uma conta fechada, mas estima que somente o TED de pessoas físicas chegue a R$ 500 milhões por ano. João Manoel acredita que eles não vão fazer o truque de sempre — elevar outra tarifa para compensar a perda. Acha que também terão uma forte redução de custos.

— O dinheiro ainda é o principal meio de pagamento do país, e isso custa muito para os bancos, em termos de transporte, logística, segurança. Quanto mais o pagamento eletrônico instantâneo for usado, menores serão os custos para os bancos — explicou.

Há um problema. Somente os 35 maiores bancos terão acesso à conta de liquidação financeira do Banco Central, onde as informações serão processadas. As menores instituições, como as fintechs e cooperativas de crédito, terão que pagar uma taxa para usar esse sistema através dos bancos maiores, e o receio é que eles imponham custos que inviabilizem a competição. João Manoel diz que o Banco Central estará atento para evitar esse risco:

— O grande banco é o chamado participante direto, que tem acesso ao sistema do Banco Central. É assim porque é caro acessar o BC e não faria sentido impor isso a todos. Mas o grande não pode ter preços diferentes para os clientes indiretos. O próprio BC vai fazer essa fiscalização para que haja competição entre eles.

A “guerra das chaves” que acontece hoje, ou seja, as campanhas publicitárias pelo cadastro dos clientes, tem explicação. O que está em jogo agora é conseguir os dados, para que os clientes sejam fidelizados depois. Outra aposta do BC é que essas informações deem mais segurança aos bancos, que poderão reduzir os juros.

Há outras modernizações sendo feitas. O Cadastro Positivo entrou em operação em fevereiro, e o Banco Central tem acelerado os testes e os estudos para que o chamado open banking — quando o cliente permite que várias instituições tenham acesso aos seus dados — entre em vigor em 2022. Essa é a agenda para os próximos anos no sistema financeiro e que pode fazer com que o custo do dinheiro caia de forma estrutural no Brasil.


Rogério F. Werneck: Bolsonaro sem Trump

Planalto sabe que a eleição de Biden tornará descaso com a Amazônia mais custoso

Ainda é cedo para vislumbrar com nitidez todos os complexos desdobramentos da vitória de Joe Biden. Mas, mundo afora, governos de nações democráticas festejam, aliviados, a perspectiva de voltar a contar, em Washington, com um presidente que possa restaurar o papel crucial dos EUA na cooperação multilateral que se faz necessária para a boa governança do planeta. Do combate à pandemia ao aquecimento global. Dos esforços concertados de recuperação da economia mundial ao controle eficaz da proliferação nuclear.

Em Brasília, contudo, o governo não esconde sua contrariedade. Não bastasse já se ter permitido indecoroso alinhamento explícito ao candidato republicano durante a campanha presidencial nos EUA, o Planalto fechou-se em copas. Impôs ao governo silêncio fechado sobre o resultado da eleição. E proibiu que órgãos governamentais divulguem projeções econômicas que levem em conta a vitória do candidato democrata. Até o início da tarde de ontem, Bolsonaro ainda não se dignara a reconhecer a vitória de Joe Biden. Mais constrangedor, impossível.

Não há como subestimar as dificuldades que, tudo indica, o Planalto continuará a enfrentar para lidar com o desfecho da eleição americana. É mais do que sabido que, por anos, Bolsonaro viu em Trump o modelo a seguir, copiando-lhe inclusive a forma peculiar com que transformou o dia a dia do seu governo num interminável reality show, focado no acirramento da polarização política.

Ao macaquear Trump, Bolsonaro viu-se, com frequência, mais à vontade para insistir em posições indefensáveis que desavisadamente adotara. Sem ir mais longe, basta ter em conta quão mais difícil lhe teria sido se agarrar ao negacionismo e ao charlatanismo, diante do avassalador avanço da pandemia, se, nesse papel, não se percebesse em fantasioso dueto com Donald Trump.

A criação, por Biden, de uma força-tarefa de combate à Covid-19, que voltará a pautar a política de saúde pública americana por recomendações científicas, prenuncia que a postura obscurantista que Bolsonaro se permitiu adotar no enfrentamento da pandemia está fadada a se tornar cada vez mais isolada e desgastante.

O Planalto bem sabe, também, que a eleição de Biden tornará o desajuizado descaso do governo com a devastação da Amazônia bem mais custoso do que já vem sendo. Ao desgaste que essa postura irresponsável vem trazendo às relações do Brasil com a União Europeia, deverão se somar inevitáveis atritos com os EUA, fomentados por uma aliança tácita — à primeira vista estranha, por isso mesmo temível — da ala ambientalista do Partido Democrata com o poderoso lobby agrícola americano.

O que está em jogo é o promissor projeto de expansão das exportações brasileiras de produtos agropecuários. E, como já perceberam os segmentos mais lúcidos do agronegócio no país, para que possa fazer face às pressões conjuntas de Estados Unidos e Europa por políticas mais consequentes de preservação da Amazônia, o governo terá de dar demonstrações inequívocas de que sua postura mudou. E de que, na condução da política ambiental, já não haverá mais espaço para figuras como Ricardo Salles.

Com o Itamaraty sob a égide das pregações caricatas de Ernesto Araújo contra instituições multilaterais, o governo encontra-se completamente desequipado para lidar com a revitalização do multilateralismo que a eleição de Joe Biden promete. A defesa eficaz dos interesses brasileiros nas negociações que deverão ter lugar nessas instituições depende de um esforço abrangente de retripulação do Ministério das Relações Exteriores, que Bolsonaro dificilmente estará disposto a patrocinar.

Sem Trump, Bolsonaro se verá privado de uma caixa de ressonância importante para o discurso inconsequente e amalucado que se permitiu manter em ampla gama de questões. Terá menos espaço para demagogia e populismo. E estará bem menos à vontade para dar vazão a sua irrefreável fanfarronice mitômana. Mas não se iludam. Mesmo sem Trump, Bolsonaro não deixará de ser o que sempre foi.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio


Eliane Cantanhêde: Sem saliva, sem pólvora

Como Geisel e Aureliano, Mourão dá um choque de realidade nos absurdos

A ira despudorada do presidente Jair Bolsonaro não é só contra o futuro presidente da maior potência do planeta e o governador do principal Estado do Brasil, mas também contra o seu próprio vice-presidente, o general de quatro estrelas Hamilton Mourão, que parece, no íntimo, se divertir com o descontrole e os absurdos do presidente, que vira piada mundo afora.

“Quando acaba a saliva, tem de ter pólvora.” A patética ameaça de Bolsonaro foi dirigida a Joe Biden, mas poderia ter sido para Mourão, já que os dois estão sem se falar. Acabou a saliva e sobrou a pólvora entre eles, lembrando João Figueiredo e Aureliano Chaves. A diferença é que Figueiredo era general e Aureliano, civil; Bolsonaro é capitão e Mourão, general.

O último presidente do regime militar também era destrambelhado, não raro ridículo, mas não estimulava golpistas, nunca ameaçou presidente nenhum, muito menos o dos EUA, nem pôs a saúde dos brasileiros em risco por ignorância e autoritarismo. O médico sanitarista Paulo Almeida Machado foi muito bem no Ministério da Saúde.

Figueiredo também abandonou o governo para lá, mas na ditadura não havia votos nem reeleição e ele não se lançou nos braços do “Centrão” da época e não saiu agredindo o Guaraná Jesus e as pessoas como “maricas” e “boiolas”. Quanto mais Figueiredo afundava no ridículo, mais Aureliano liderava a dissidência, civil e logo militar, pela redemocratização.

Por trás disso, impunha-se a autoridade do general Ernesto Geisel, que antecedeu Figueiredo, patrocinou sua ascensão à Presidência e depois se tornou fator decisivo para acordar as Forças Armadas contra o desmando, a bagunça e o próprio Figueiredo. Entre o Brasil e o seu apadrinhado, Geisel ficou com o País.

Em outras dimensões e circunstâncias, Mourão tem mais diplomacia do que Geisel e Aureliano, mas corrige e tenta justificar o presidente e sua força é sua fraqueza: Bolsonaro não engole as comparações com seu vice, homem culto, que morou fora, fala línguas, gosta de livros, história e geopolítica. Como não suporta as comparações, Bolsonaro não suporta o próprio Mourão.

Quando o presidente desmentiu o general Eduardo Pazuello e disse que o governo não compraria a vacina “da China” ou “do Doria”, Mourão declarou: “Vai comprar, sim. Lógico que vai”. Quando o presidente fez birra e se recusou a cumprimentar o vitorioso nos EUA, Mourão foi mais ameno: ele deve estar esperando o resultado oficial…

Do outro lado, só pólvora. Bolsonaro já descartou Mourão em 2022, disse que não gasta saliva com o vice sobre assunto nenhum e ontem atacou uma proposta feita pelo Conselho da Amazônia como “mentira” do Estadão, que a publicou, ou “delírio” de “alguém do governo”. Bem… o conselho é presidido por Mourão.

Está em estudo a expropriação de terras de quem cometer crime ambiental e o presidente, furioso, disse que “o Brasil não é socialista/comunista” e que demitiria o autor – “a não ser que seja indemissível”. Só há um indemissível no governo. Logo, a pólvora teve destino certo.

Bolsonaro diz que sua vida “é uma desgraça”, ataca tudo e todos, isola-se no mundo, no País e nas suas patologias, com pólvora, armas, ameaças e zero medo do ridículo. Sobram o Centrão, que pula fora num estalar de dedos, a “ala ideológica”, dos filhos enrolados e um punhado de bobos, e os militares, que fazem o “toma lá (cargos), dá cá (apoio)” que sempre condenaram nos políticos.

Mourão cria horizonte para o Centrão, desdenha de filhos e ideológicos e repete Geisel no fim da ditadura, dando um choque de realidade nos militares. Não é à toa que Sérgio Moro inclui o vice nas articulações que se dizem “de centro” e para 2022, mas são de resistência. Bolsonaro passou dos limites.


Bernardo Mello Franco: Saliva e pólvora: razões para o descontrole de Bolsonaro

Na terça-feira, Jair Bolsonaro ameaçou trocar a saliva pela pólvora nas relações com os Estados Unidos. Já se passaram três dias e ele ainda não mandou a FAB bombardear a Estátua da Liberdade. A bravata só serviu para expor os militares ao ridículo. Os generais que se associaram ao capitão não podem nem reclamar.

Bolsonaro eleva o tom das sandices sempre que se vê em apuros. É uma tática conhecida. A cortina de fumaça ajuda a desviar a atenção e manter a tropa mobilizada. Na terça, não funcionou. Além de delirar com uma guerra impossível, o presidente marcou gol contra ao escancarar sua politicagem com a vacina. No mesmo dia, ele comemorou um suicídio, chamou os Brasil de “país de maricas” e disse que sua vida é “uma desgraça”.

O capitão tem motivos para exibir descontrole. Na semana passada, o Ministério Público do Rio denunciou o senador Flávio Bolsonaro por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. A confissão de uma funcionária-fantasma agravou os problemas do Zero Um com a Justiça.

A derrota de Donald Trump também aumentou as aflições de Bolsonaro. Apesar de endossar a falsa versão de fraude, ele sabe que ficará mais isolado a partir de janeiro. A derrocada do ídolo abalou o sonho do segundo mandato. Em meio ao destampatório, ele admitiu o medo de repetir Mauricio Macri, que não conseguiu se reeleger na Argentina.

O presidente saboreou um aumento de popularidade na pandemia, mas terá meses difíceis pela frente. O governo ainda não sabe o que oferecer a milhões de famílias que deixarão de receber o auxílio emergencial. O ministro Paulo Guedes, que parece tão perdido quanto o chefe, agora se diz “bastante frustrado” e fala em risco de hiperinflação.

Como se não bastassem todos esses problemas, Bolsonaro adotou uma estratégia camicase nas eleições municipais. Não há pólvora nem corrente de WhatsApp que evitem o fiasco da maioria dos candidatos que ele escolheu apoiar. A depender do resultado das urnas, o capitão precisará de muita saliva para se explicar na segunda-feira.


Humberto Saccomandi: Trump leva a negação do outro ao limite

Ao acusar regularmente Joe Biden e os democratas de quererem “destruir tudo o que amamos e estimamos”, Trump preparou o terreno para deslegitimiar o outro lado e contestar, sem provas, o resultado eleitoral

“A esquerda radical está empenhada em destruir tudo o que amamos e estimamos”, disse o presidente Donald Trump num comício na Flórida, em 12 de outubro. O atual ciclo eleitoral nos EUA é mais um exemplo gritante desse tipo de retórica excludente, na qual só um lado se vê legitimado a vencer. É um jogo de soma zero que ameaça a democracia. As próximas semanas serão decisivas.

Trump passou a campanha usando esse tipo de retórica. Biden e os democratas “vão matar nossos empregos, desmantelar nossa polícia, dissolver nossas fronteiras, libertar criminosos estrangeiros, elevar nossos impostos, confiscar nossas armas (…), destruir nossos subúrbios e tirar Deus do espaço público”, tuitou ele em outubro.

O presidente costuma usar uma linguagem hiperbólica. Quase tudo o que ele faz é “tremendous”. O que outros fazem ou fizeram é um “disaster”. É um mundo anedótico em preto ou branco. Mas, à parte o aumento de impostos (que parece inevitável devido ao aumento dos gastos com a epidemia), nada do que ele tuitou constava do programa do democrata Joe Biden, que é basicamente um moderado, que seria um centrista em qualquer país europeu. O objetivo desse tipo de discurso é incutir a suspeita, o medo, o ódio ao outro.

A narrativa por trás disso é perigosamente simples. O outro busca destruir o que somos (algo propositadamente pouco definido). Logo, o outro não pode chegar ao poder, afinal ninguém quer ser destruído. O passo seguinte é que vale tudo para impedir a vitória do outro, como Trump está agora tentando fazer. Um passo ulterior é que, se o outro não pode vencer, porque ele precisa existir? E, pronto, estamos no terreno do autoritarismo. O fascismo italiano via a oposição como desnecessária, já que ele era o portador do bem comum.

Um dos princípios da democracia é a alternância de poder. Se eu não ganhar desta vez, ganharei na próxima ou na seguinte. Essa alternância permite refinar a política com o tempo, como numa concorrência normal, quando um produto predomina até que apareça outro melhor. Isso estimula, ou deveria estimular, os partidos a oferecerem candidatos e políticas melhores. Quem não o fizer acaba punido pelo eleitor. A alternância estimula ainda a colaboração. Se um partido ficar desfazendo tudo o que o outro fez no governo anterior, não se avança.

O discurso da exclusão, porém, visa deslegitimar o concorrente. O desfecho, caso o eleitor opte pelo outro, será apocalíptico. Não haverá retorno possível. É como se a propaganda de um sabão em pó, em vez de mostrar como ele lava melhor, acusasse o concorrente de destruir a roupa, a máquina de lavar. Sem provas.

Não foi Trump que introduziu esse discurso no “mainstream” da política americana. Já em 1996, no livro “A Política da Negação”. Michael Milburn e Sheree Conrad, professores de Psicologia Social na Universidade de Massachusetts, identificaram a ascensão dessa retórica extremista na direita religiosa americana, em figuras como Pat Buchanan e Newt Gingritch. Mas Trump levou essa negação do outro à Casa Branca, ao topo do establishment americano. Ninguém estimulou e explorou o medo e o ódio como ele.

Esse é um discurso comum a qualquer extremismo. Hugo Chávez passou anos dizendo que a oposição de direita destruiria a Venezuela caso voltasse ao poder. Seu sucessor, Nicolás Maduro, repete isso regularmente. O resultado é o impedimento de a oposição vencer, por quaisquer meios necessário. O fim da alternância levou o país à ruína.

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro se refere à oposição em termos similares. “Nós temos que acabar com aqueles que querem destruir a família brasileira”, disse em entrevista ao Valor, ainda em dezembro de 2017, como se houvesse um único modelo de família brasileira do qual ele seria o porta-voz. No início deste ano, afirmou: “Não dê chance para essa esquerda. Eles não merecem ser tratados como pessoas normais, como se quisessem o bem do Brasil.” Outra expressão comum no discurso da negação é se proclamar do lado dos “homens de bem”, o que automaticamente coloca o outro fora do campo do bem.

Essa visão revela uma concepção quase religiosa do governo, como se fosse onipotente. Isso é, obviamente, uma falácia. Tudo que um governo faz, dentro das regras do jogo, pode ser desfeito. É improvável, por exemplo que qualquer governo democrático conseguisse fazer nos EUA os propósitos que Trump atribuiu a Biden. Haveria oposição do Legislativo, do Judiciário, da sociedade civil. O próprio Trump sentiu essa impotência na pele. O muro que ele prometeu construir na fronteira com o México, pago pelos mexicanos, nunca saiu do papel. E mudanças que ele fez nas normas ambientais serão agora desfeitas por Biden, por decisão dos eleitores americanos. Assim é o jogo da alternância.

Mas a política da negação tem um forte apelo populista. Ela identifica um culpado, o outro, ao qual pode ser atribuída a responsabilidade por quase qualquer mazela. Tanto na Venezuela chavista como nos EUA trumpiano, a culpa é sempre do outro. E, mesmo quando não há uma culpa, como no caso do surgimento de um vírus, é possível atribuí-la, como Trump faz com a China.

O resultado dessa campanha de deslegitimação e descrédito é que dois terços dos americanos, segundo pesquisa divulgada nesta semana, acreditam que a eleição não foi justa nem livre. Trump contesta o resultado eleitoral no Estado de Nevada, onde as autoridades estaduais, republicanas como Trump, negam qualquer irregularidade.

E, por ora, ele conseguiu que o Partido Republicano o apoiasse nessa aventura política perigosa. Apenas uns poucos senadores e governadores republicanos se dissociaram. “Estou estarrecido de ouvir as acusações sem evidências vindas do presidente, da sua equipe e de muitas outras autoridades republicanas eleitas em Washington”, disse o governador republicano de Massachusetts, Charlie Baker.

O que distingue os EUA da maioria dos países é que há 200 anos os americanos elegem o seu presidente, e o vencedor, seja ele da situação ou oposição, assume. Essa estabilidade certamente ajudou os EUA a se tornarem o que são hoje. Nas próximas semanas ficaremos sabendo se essa tradição continuará.


Simon Schwartzman: Dançando por Biden

Na eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos jovens

Vendo as imagens do povo dançando nas praças, festejando a derrota de Donald Trump, mais do que a vitória de Joe Biden, é inevitável comparar com 12 anos atrás, quando da eleição de Barack Obama. Tal como agora, Obama derrotou um presidente medíocre e inescrupuloso, que jogou o país numa guerra insensata no Iraque e deixou a economia afundar. Havia a sensação de que algo realmente novo e importante estava acontecendo nos Estados Unidos, com impacto em todo o mundo. Obama era negro, mas foi eleito com a bandeira de uma sociedade pós-racial. Era um intelectual com fortes valores humanistas, que projetava uma política internacional de respeito e consideração para diferentes culturas. No ano seguinte ganhou o Prêmio Nobel da Paz, não pelo que já tinha feito, mas pelo que prometia. Sua eleição parecia indicar que os Estados Unidos, finalmente, haviam rompido as barreira do racismo, do isolacionismo e do descaso com as políticas sociais.

Oito anos depois, sem ter conseguido fazer tudo o que prometia, era normal que Obama não conseguisse fazer seu sucessor. Mas a eleição de Trump não foi uma simples alternância de poder, mas uma indicação de que a nova era anunciada pela eleição de Obama era, em grande parte, uma ilusão, e que coisas piores estavam por vir. Ao tomar de assalto o Partido Republicano, Trump capitalizou uma forte corrente de preconceitos raciais, anti-intelectuais e de xenofobia que pareciam ter sido postos à margem da sociedade americana e subitamente mostraram suas garras. Com ele, a mentira sistemática das fake news, a prevalência descarada dos interesses comerciais privados sobre o interesse público, o desmonte das instituições governamentais e sua ocupação por bajuladores, o racismo, a xenofobia e todos os preconceitos que antes não se manifestavam se tornaram “normais”. O passo seguinte, inevitável, era o ataque às instituições mais centrais do sistema democrático, culminando, agora, com o próprio sistema eleitoral.

A vitória de Biden mostra que nem tudo está perdido, mas deixa um gosto amargo, porque a “onda azul” foi menor do que se esperava e Biden provavelmente terá ainda menos condições de cumprir o que promete do que Obama, tanto pela oposição sistemática que receberá como por um contexto internacional menos favorável, com a ascensão inevitável da China. A democracia americana sobreviverá, mas longe do vigor que a era de Obama parecia prenunciar. A História americana recente é semelhante à de muitos outros países, incluído o Brasil, de surgimento de lideranças radicais que conseguem forte apoio popular e partem para o assalto às instituições democráticas, e da dificuldade dos partidos moderados de prevalecerem. O que explica a força desses movimentos antidemocráticos e a fragilidade das democracias?

A pergunta, na verdade, deve ser posta ao contrário, porque a democracia é uma flor frágil, e é quase um milagre que tenha sobrevivido em tantos lugares até aqui. Em livro recente, O Ocaso da Democracia, a jornalista americana Anne Applebaum, casada com Radosław Sikorski, também jornalista e político de destaque dos governos democráticos da Polônia, conta a história da conversão à extrema direita de muitos de seus amigos e colegas que, como os dois, haviam se engajado na oposição ao stalinismo e na esperança de uma nova era democrática para a Europa e os Estados Unidos, e viram em seu lugar surgir os regimes de Jarosław Kaczynski na Polônia, Viktor Orbán na Hungria e Donald Trump nos Estados Unidos. Cada história é diferente, combinando em diversas doses oportunismo, ambição e impaciência com a lentidão dos regimes democráticos em produzir os resultados esperados. Mas existem problemas mais gerais. A ideia de que a democracia, combinada com a valorização do mérito e da economia aberta e competitiva, é a melhor forma de governo perde força quando ela se torna disfuncional, com muitas pessoas se sentindo excluídas de seus benefícios. E a democracia não consegue dar respostas aos anseios das pessoas por identidade pessoal, comunitária ou nacional. Ao se opor ao surgimento da extrema direita, a oposição liberal, nos Estados Unidos e outras partes, ao invés de tentar reconstruir o consenso nacional ao redor dos valores democráticos e do interesse comum, muitas vezes dá prioridade às políticas de identidade de grupos minoritários e setores marginalizados e discriminados, reduzindo ainda mais o espaço para a democracia consensual.

A democracia, para sobreviver, precisa de lideranças capazes de interpretar o interesse geral, de instituições capazes de resistir aos assaltos dos tiranos de plantão, e de uma população capaz de entender que a política é mais do que a expressão de suas ansiedades e frustrações. Na eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos eleitores mais jovens.

Anne Applebaum também termina seu livro falando de uma nova geração que busca novos caminhos, além das políticas exauridas da democracia complacente e da extrema direita enlouquecida. O futuro é incerto, mas há esperança.

*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências


Ricardo Noblat: Está cada vez mais pesado o ar que Bolsonaro e Mourão respiram

Mas o show tem que continuar

Evite convidar para a mesma mesa o presidente Jair Bolsonaro e seu vice, o general Hamilton Mourão. Eles ainda convivem por obrigação. São capazes de aparecerem juntos e sorridentes em fotos para causar boa impressão. Mas tudo não passa de fingimento. Mourão não fala mal de Bolsonaro nem em público nem em particular. Bolsonaro desanca Mourão sempre que pode.

Só nesta semana foram duas vezes. Na última segunda-feira, em declaração à CNN, rebaixou Mourão ao afirmar que não conversa com ele sobre Estados Unidos nem sobre qualquer outro assunto. Mourão havia dito que “na hora certa” o presidente falaria sobre o resultado das recentes eleições americanas. Bolsonaro não perdeu a oportunidade de deixar seu vice em maus lençóis.

“O que ele (Hamilton Mourão) falou sobre os Estados Unidos é opinião dele. Eu nunca conversei com o Mourão sobre assuntos dos Estados Unidos, como não tenho falado sobre qualquer outro assunto com ele”, disse Bolsonaro, que ainda não se manifestou sobre a vitória de Joe Biden e teima em aguardar o fim das ações judiciais movidas pelo presidente Donald Trump, seu aliado.

Desta vez, Bolsonaro chamou de “delírio” a existência de um plano para criar mecanismos de expropriação de propriedades, no campo e nas cidades, com registros de queimadas e desmatamentos ilegais. A medida consta de documento do Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido por Mourão ‘Se alguém levantar isso, eu demito. A não ser que seja indemissível’, bateu Bolsonaro

E acrescentou: “Para mim a propriedade privada é sagrada. O Brasil não é um país socialista/comunista”. Tampouco Mourão é um general socialista/comunista. Indemissível, é. E de vez em quando é frouxo. “Eu me penitencio por não ter colocado grau de sigilo nesse documento”, desculpou-se o vice. “Isso é um estudo. Se eu fosse o presidente, também estaria extremamente irritado”.

A Constituição prevê expropriação de imóveis rurais e urbanos em apenas dois casos: de cultivo ilegal de drogas e exploração de trabalho escravo. A proposta em estudo no Conselho da Amazônia inclui os crimes ambientais, uma forma de punir quem desmata a floresta ilegalmente. Bolsonaro está nem aí para quem faça isso. Por isso entrou na mira do futuro presidente americano.

Nos anos 80, Bolsonaro foi afastado do Exército por conduta antiética. Para complementar seu salário, e às escondidas dos seus superiores, foi garimpeiro. Planejou atentados terroristas em quartéis. Negociou a patente de capitão em troca de deixar a farda sem fazer maior escarcéu. Por muito tempo, nem ele nem seus filhos puderam frequentar colégios ou clubes militares.

A impressão que dá desde que assumiu a presidência da República é que sente especial prazer em humilhar militares que lhe prestam vassalagem incondicional. Outro dia, humilhou Eduardo Pazzuelo, ministro da Saúde, o único general da ativa em cargo de governo. Combinara com ele que a vacina Coronavac seria comprada. Desautorizou-o em seguida. Pazuello sequer reclamou.

O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo da Presidência, demitido sob pressão dos filhos de Bolsonaro, quebrou mais uma vez o seu silêncio e escreveu no Twitter:

“CANSADO DE SHOW. O Brasil não é um país de maricas. É tolerante demais com a desigualdade social, corrupção, privilégios. Votou contra extremismos e corrupção. Votou por equilíbrio e união. Precisa de seriedade e não de show, espetáculo, embuste, fanfarronice e desrespeito.”

Por mais que o general reclame, o show do palhaço vai continuar.


Dora Kramer: Pé no chão

Uma coisa é certa: em 2022 a política tradicional não embarca outra vez na canoa de Bolsonaro

A notícia do encontro de Luciano Huck com Sergio Moro levou de volta à cena da sucessão presidencial o apresentador que andava sumido desde a eclosão da pandemia. Outro efeito foi expor o ex-juiz ao frio e à chuva dos ataques à direita e à esquerda e enquadrá-lo na moldura de companhia questionável: um tanto tóxica no meio político, mas bem-aceita na sociedade.

Por ora, fica por aí o andamento da construção de uma candidatura de centro capaz de enfrentar Jair Bolsonaro em 2022. Isso no tocante ao que os artífices da empreitada estão dispostos a revelar ao público, porque nos bastidores a coisa segue o ritmo das conversas, aproximações e lances antecipados para futuras alianças que vêm acontecendo desde o ano passado.

Huck recolocado, Moro testado e João Doria instigado, mas mais interessado em se firmar como contraponto a Bolsonaro do que em disputar espaços internos na articulação de uma alternativa ao presidente. Este é o quadro e dele não veremos grandes evoluções até que se possa dar por encerrada a crise sanitária, definida a troca (ou repetição) do comando no Congresso e delineados os rumos da economia, para o bem ou para o mal.

Aqui o mapa do resultado do primeiro turno da eleição municipal tem importância relativa. Para antecipar definições sobre vencedores e perdedores em 22, o peso é zero. Temos exemplos a mancheias de derrotados numa e vitoriosos na seguinte, e vice-versa. Importa sim o tamanho do eleitorado que sairá representado por essa ou aquela força política, aí sim projetando uma tendência do estado de espírito do eleitorado.

Pelas pesquisas, o desenho revela uma inclinação ao já conhecido e/ou testado: Bruno Covas em São Paulo, Eduardo Paes no Rio de Janeiro, o atual prefeito em Belo Horizonte, os herdeiros de Eduardo Campos e ACM Neto no Recife e em Salvador, respectivamente. Se confirmadas as intenções de voto, teremos a prevalência do ânimo conservador (não no sentido ideológico) sobre humores pautados por revolta e ressentimento.

É verdade que não temos nada parecido com figuras de escol em matéria de experiência e biografia. Temos de desconsiderar perfis ideais e trabalhar com as hipóteses postas. No campo da candidatura dita de centro, Sergio Moro não agrega e Luiz Henrique Mandetta não passa pelo crivo dos interesses do partido dele (DEM). Restam Luciano Huck e João Doria. Numa avaliação crua, Huck por enquanto se situa na desvantagem em relação a Doria.

Pelo seguinte: o governador é do PSDB e já compôs uma aliança com o DEM e o MDB que inclui a eleição municipal em São Paulo e outras capitais (Rio e Salvador, por exemplo), a composição da chapa de 2018 com a cessão ao DEM da vice e a chance de assumir o governo a partir de abril de 2022, além da escolha dos próximos presidentes da Câmara e do Senado. Fechou, assim, com as forças políticas de maior peso.

Esse pessoal pode mudar e se transferir para uma candidatura de Luciano Huck? Até pode, mas não fará isso antes de o apresentador mostrar capital eleitoral/partidário e transformar-se de celebridade popular em candidato competitivo. Uma coisa é este ou aquele político demonstrar simpatia e posar para fotos com Huck, outra é ver esses personagens embarcar na canoa dele para valer.

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Doria, contudo, tem obstáculos fortes para ultrapassar: o pouco conhecimento em âmbito nacional, uma certa antipatia país afora com a supremacia paulista e a desconfiança do eleitorado do próprio estado pelo fato de ter abandonado a prefeitura para concorrer ao Palácio dos Bandeirantes depois de ter prometido cumprir o mandato.

Para vencer essas dificuldades, Doria se posiciona como um contraponto a Bolsonaro a fim de ganhar projeção e firmar imagem de governante civilizado e eficaz. Ciente do peso do quesito aversão a “paulistices”, no lugar de se referir aos “paulistas”, adota a expressão “brasileiros que moram em São Paulo”. Por sua vez, Huck e até Ciro Gomes não têm responsabilidades governamentais e podem se movimentar com mais liberdade.

A despeito da indefinição do panorama hoje mais calcado em hipóteses a ser definidas a partir de meados de 2021, uma coisa é certa: os políticos tradicionais que em 2018 ficaram com Bolsonaro de modo utilitário e entraram na eleição desarticulados não vão repetir a dose.

E o papel do Centrão? É como diz um dos donos da voz da experiência na política tradicional: “o centrão é o primeiro na fila dos cumprimentos ao vencedor”.

Publicado em VEJA de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713


Vinicius Torres Freire: A nova temporada de festas do corona

Negligência festeira e governo incapaz criam risco de verão sufocante: a Europa avisa

Parte da gente remediada, bem de vida ou rica que frequenta as praias do litoral norte de São Paulo marca grandes festas de fim de ano, noticia esta Folha. Aparecem relatos aqui e ali de hospitais privados cuidando de mais doentes de Covid-19, embora os dados não sejam bastantes nem para esboçar um chute de estimativa das internações recentes.

O governo paulista, que teria o mapa completo do problema, diz que não há tendência de aumento da ocupação de leitos por causa da epidemia.

As notícias da agenda animada de festas, no entanto, fazem lembrar da negligência do início da calamidade, das festas de casamento e outras aglomerações que ajudaram a espalhar o vírus como bombas sujas, radioativas.

Não há fatos que indiquem um repique da epidemia em São Paulo, na maior parte dos estados ou na média nacional. Mas, como se escrevia faz duas semanas nestas colunas, a Europa outra vez nos dá um alerta. Foi assim em fevereiro e março, para o que muita gente aqui ligou pouco.

Para resumir um assunto complicado, a situação em muitos países da Europa está por ora fora de controle, a julgar pelo número de mortes. Como as novas restrições e distanciamentos foram impostos no início do mês, ainda não dá para saber se tiveram resultado. Mas o espalhamento da doença, com ou sem restrições, vai danar a atividade econômica europeia em novembro.

O repique de casos, mesmo sem restrições, já prejudicara outubro. A retomada em dezembro, se houver, será entre cautelosa e lenta, para ser otimista.

Na Europa, o número relativo de novas mortes é o triplo do brasileiro (medido pela média móvel de mortes em sete dias, por milhão). Na França, 5 vezes o do Brasil. Na Itália, 4,4 vezes. Na Espanha, 3,5 vezes. No Reino Unido, 3,2. Mesmo na disciplinada e organizada Alemanha, o número relativo de novas mortes agora é praticamente igual ao daqui.

A taxa de infecção geral acumulada nos maiores países europeus, menos a Alemanha, não deve ser muito diferente da brasileira, embora estejamos de novo no escuro a respeito disso.

De qualquer modo, o Brasil poderia entrar em temporada menos triste na saúde e na economia. O número diário de mortes rondou a casa de 5 por milhão, em julho; é de 1,7 agora, ainda o horror de 365 mortes por dia, mas diminuindo.

Os auxílios emergenciais vários evitaram recessão convulsiva. As taxas de juros estão em níveis historicamente baixos. Comércio e indústria vinham despiorando em ritmo melhor do que o esperado. Se o controle da epidemia fosse melhor, haveria menos mortes, menos medo, e o setor de serviços estaria andando mais rápido também.

Se houvesse governo federal, haveria um plano sanitário. Haveria ao menos um plano econômico, um programa para lidar com o fim dos auxílios, em dezembro, e um projeto qualquer de diretriz econômica que fosse apenas sensato, “arroz com feijão”. Ou seja, um plano ao menos para satisfazer os donos do dinheiro e não causar tumulto financeiro, um plano básico para cuidar do orçamento. Não há nada disso.

O verão pode ser muito abafado. Que não seja sufocante. As festas da negligência alegre podem ser mortíferas. A paralisia da administração econômica pode largar de novo muita gente em miséria ainda maior, no mínimo. O governo de Jair Bolsonaro continua o seu culto da morte, a campanha de desmoralização das vacinas e a nomeação de terraplanistas militares para cargos técnicos da saúde. Vai ser por sorte ou andanças desconhecidas do vírus que poderemos escapar de uma segunda onda de desgraça.