Day: outubro 25, 2020

Affonso Celso Pastore: Riscos da inflação e de repressão financeira

Ainda que em manifestações públicas empresários e economistas expressem confiança no cumprimento do teto de gastos, não é isso que indicam o comportamento do câmbio e da curva de juros, cuja inclinação positiva continua aumentando. Não precisam manifestar sua crítica. O mercado fala por eles.

Para evitar que o risco de insolvência cresça devido ao aumento do custo da dívida, o Tesouro optou por financiar o déficit primário deste ano com títulos de prazos curtos, que têm prêmios de risco mais baixos. Na rolagem da dívida que vence, resgata os títulos de prazos longos com recursos da venda de títulos mais curtos.

Com isso o prazo médio da dívida pública já caiu para 35 meses, e deverá cair ainda mais em 2021, quando ocorrem resgates superiores a R$ 300 bilhões por trimestre. Nesta velocidade, o prazo médio de vencimento da dívida rapidamente cairá abaixo de 30 meses.

A dificuldade na administração da dívida é uma primeira manifestação da dominância fiscal, que leva à inflação e à repressão financeira (a obrigatoriedade imposta aos intermediários financeiros de comprarem títulos com vencimentos mais longos), que já existiu nos anos 70 e 80, quando muitos dos que atuam no mercado financeiro não haviam nascido e desconhecem a magnitude das distorções que provoca.

Os prêmios de risco se manifestam também na taxa cambial, que desde o início do ano já se depreciou perto de 40%. Se o Banco Central atuasse sobre a curva de juros reduzindo sua inclinação positiva, pressionaria ainda mais o câmbio, e se tentasse conter a depreciação cambial com intervenções mais ativas no mercado de câmbio elevaria a inclinação positiva da curva de juros, encurtando ainda mais o prazo médio da dívida.

Estes são exemplos de ações que apenas escondem a manifestação do risco em um dos dois mercados, e como o verdadeiro risco é fiscal, e não desaparece com mágicas, o prêmio apenas migraria de um mercado para o outro.

Nesta situação, o risco de inflação é maior do que se supõe. Há muito aprendemos que o repasse cambial para os preços dos bens tradables não é afetado pelo hiato do PIB. Diante de uma depreciação cambial, os produtores de soja, carne, milho, arroz, açúcar, entre muitos outros, elevam os seus preços no mercado interno e se não conseguirem vender o que produziram exportam todo o excedente àquele preço.

Por isso, a depreciação cambial eleva fortemente os preços pagos aos produtores de produtos agrícolas, que são repassados aos preços nos supermercados e nas feiras livres, elevando o item “alimentação no domicílio” dentro do IPCA, que nos últimos 12 meses já cresceu 15%.

Para os 66 milhões de brasileiros que por quatro meses se beneficiaram de uma ajuda emergencial de R$ 600 ao mês, há enorme diferença. Como a demanda de alimentos tem uma elasticidade-preço muito baixa, e eles têm de se restringir ao seu orçamento, que encolheu com o fim do auxílio emergencial, terão de cortar outros gastos para continuar comendo.

Isto significa que o peso da alimentação no domicílio na sua cesta de consumo será maior do que o usado pelo IBGE no cômputo do IPCA. Sua “inflação percebida” será maior do que a inflação medida por todos os possíveis núcleos computados pelos economistas. Não adianta tentar convencê-los de que houve apenas uma mudança de preços relativos porque as expectativas ainda estão ancoradas às metas.

O Banco Central sabe que a desancoragem ocorrerá, e os indivíduos sabem que sofreram uma dupla perda: da renda nominal, devido ao fim do auxílio emergencial, e da renda real, devido ao aumento da inflação percebida.

Nestas circunstâncias, a reação de um governo populista é transferir mais renda à população, aumentando o desequilíbrio fiscal e piorando o risco de inflação e da repressão financeira.

Se o País não reafirmar com ações concretas, e não com palavras, a sua determinação de atender ao teto de gastos, não há como impedir uma curva de juros mais inclinada e um câmbio mais depreciado.

O Banco Central seria colocado na incômoda posição de ter de elevar a taxa de juros quando a economia ainda se encontra fortemente deprimida, e para fugir desta armadilha pode ser forçado pelo governo a taxar as saídas de capitais ou mesmo impedi-las para evitar uma sangria nas reservas.

Todas estas formas de repressão financeira são extremamente prejudiciais à economia, e a única forma de evitá-las é o retorno rápido e sem subterfúgios à austeridade fiscal.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.


Rolf Kuntz: Depois da pandemia ainda restará a velha crise

O País nunca saiu do buraco onde caiu em 2015. O PIB de 2014 continua longe

Brasil, Estados Unidos e muitas outras economias ainda levarão mais de um ano para sair da profundeza de 2020. Dezenas de países só voltarão em 2022 ao patamar de 2019, se as projeções estiverem razoavelmente corretas. Sem um segundo surto de covid-19, a maior parte da América Latina estará recuperada em 2023, segundo estimativa do Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas o caso brasileiro, mais uma vez, é especial, tão especial quanto o de um senador – vice-líder de governo – flagrado com dinheiro na cueca. O País ainda levará uns dois anos, talvez três, para exibir um produto interno bruto (PIB) parecido com o de 2014, anterior ao do grande tombo. Mas a economia terá de funcionar num cenário global diferente daquele conhecido até há pouco tempo.

O Brasil tem sido um país diferente, no mau sentido, há uns dez anos, e o esforço de “normalização” iniciado em 2016-2017 foi em grande parte abandonado em 2019. Para começar, crescimento foi o padrão mundial depois da crise financeira de 2008-2009. Com maior ou menor vigor, a maior parte das economias voltou a avançar, até o desastre da pandemia. Na maior economia da América do Sul, no entanto, erros políticos, agravados com a pilhagem do Estado, minaram a prosperidade.

Mas isso foi pouco visível inicialmente. A primeira fase depois da crise financeira foi promissora. Depois da queda de 0,5% em 2009, o País logo se recuperou. Mas tropeçou em 2012 e três anos depois afundou numa recessão inteiramente made in Brazil, enquanto a vizinhança continuava em crescimento. A economia brasileira encolheu 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016 – uma perda acumulada de 6,58% em dois anos.

O PIB cresceu lentamente nos três anos seguintes, 1,3% em 2017, 1,3% em 2018 e 1,1% em 2019, acumulando um avanço de 3,74%. O País chegou a 2020, portanto, sem ter retomado o nível de atividade de 2014, ano anterior à recessão brasileira. Então chegou o novo coronavírus e, com ele, um dos maiores tombos econômicos, talvez o maior da História republicana. Em um trimestre a produção de bens e serviços diminuiu 9,70%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A reação começou logo em seguida, como em muitos países, puxada pelo consumo e favorecida por medidas emergenciais. O Tesouro assumiu custos de centenas de bilhões de reais e o Banco Central (BC) afrouxou a política monetária, criando condições para aumento do crédito. A atividade voltou a crescer, embora sem retornar ao nível pré-pandemia, e há cerca de um mês as projeções para o ano começaram a melhorar.

A maior parte das estimativas aponta contração econômica na faixa de 4% a 5%, neste ano. O FMI ainda projeta para 2020 um PIB 5,8% menor que o do ano passado e expansão de 2,8% em 2021. As projeções do governo, do mercado e de entidades multilaterais indicam ritmos diferentes de recuperação, nos próximos dois anos, mas, de modo geral, insuficientes para o retorno ao patamar de 2014. Na melhor hipótese, a economia tocará esse nível em 2022 e talvez o supere ligeiramente.

Mas a dúvida mais inquietante é outra. Não se sabe quando o Brasil crescerá como um grande emergente. A expansão, pelas projeções de médio e de longo prazos, ficará entre 2% e 2,50% ao ano. Nenhuma das fontes indica um desempenho melhor. É esse o crescimento potencial – sustentável sem desajustes – avaliado por muitos especialistas. Há quem sugira um potencial abaixo de 2%.

São cálculos inseguros, mas certamente a economia brasileira tem perdido vigor há muitos anos. Desde 2000 o investimento em máquinas, equipamentos e obras ficou em média na altura de 18% do PIB. A partir de 2015 permaneceu entre 15% e 16%. A taxa supera 24% ou 25% em emergentes mais dinâmicos.

Além de baixo, o investimento tem sido pouco produtivo. Muitos bilhões foram aplicados pelo setor público em obras interrompidas ou concluídas com muito atraso. Também se falhou na formação de capital humano. Houve redução do analfabetismo e aumento da inclusão escolar, mas outros objetivos essenciais foram negligenciados. Nos anos 2000 pouco se cuidou da qualidade da escola fundamental. Tratou-se muito mais de facilitar o acesso a faculdades e o governo central demorou a valorizar a formação técnica.

A reversão será complicada. Com as contas oficiais estouradas, obras públicas, principalmente federais, dependerão de capitais privados. Mais do que em outros momentos, será essencial formular bem os objetivos, identificar os gargalos e cuidar da eficiência de cada passo. Mas nem o Orçamento de 2021 está pacificado. Além disso, o ministro da Economia insiste em poucos temas, como os custos da folha salarial e a recriação da CPMF, uma aberração. O ministro da Educação fala da sexualidade dos estudantes, o do Meio Ambiente dificulta a proteção das florestas e o de Relações Exteriores segue a Casa Branca, mesmo contra grandes importadores de produtos brasileiros. Enquanto isso, o presidente se concentra na reeleição e na proteção de filhos suspeitos de travessuras, como rachadinhas.

Com esse desgoverno, quem precisa de coronavírus para ir mal?

*Jornalista


Lourival Sant'Anna: Comedimento de Trump

É revelador que o jogo democrático tenha colocado um limite no debate público

O último debate entre Donald Trump e Joe Biden, na noite de quinta-feira, será lembrado pela civilidade, em contraste com o caos do primeiro, dia 29 de setembro. Não é só questão de forma. O esforço de Trump em se conter e se mostrar “presidenciável” para a audiência mais ampla revela algo sobre a democracia.

A agressividade é um componente de todo debate, e esteve presente nesse último também. Mas Trump foi muito além disso no primeiro debate. Como costuma fazer em seus comícios, entrevistas e tuítes, Trump agiu sem limites, tanto na forma quanto no conteúdo. Na forma, ele interrompeu Biden e o moderador Chris Wallace 128 vezes ao longo de 90 minutos. No conteúdo, procurou humilhar o oponente, afirmando que seu filho, Hunter Biden, foi “dispensado com desonra” por uso de cocaína.

Dessa vez, Trump atacou Biden e seu filho usando reportagens do tabloide sensacionalista New York Post, segundo as quais Hunter teria feito negociações na China, Rússia, Ucrânia e Iraque usando o nome de seu pai, para quem seria destinada parte da propina. A base das reportagens é frágil. Mas é uma linha de ataque dentro dos padrões do jogo pesado da política.

O primeiro ataque, relacionado com o uso da cocaína, é aceitável para os seguidores de Trump, nos comícios, no Twitter e nas entrevistas a emissoras que o apoiam. Mas não para o público em geral. O debate é uma oportunidade de engajar a própria base, num país em que o voto é facultativo, mas também de ampliar o apoio, sobretudo para um candidato que está atrás em todas as pesquisas sérias.

O desempenho de Trump no primeiro debate foi aprovado por porcentagens mais baixas do que a intenção de voto para ele nas sondagens anteriores. Como consequência, essa intenção caiu nas pesquisas subsequentes. Em seguida, o presidente foi hospitalizado com covid-19, o que para muitos americanos reforçou a noção do fracasso de sua resposta à pandemia: ele protege seu país tão mal quanto a si mesmo.

É parte dos objetivos de todo candidato demonstrar que o oponente não tem credenciais para o cargo em disputa. Mas há limites para isso. No primeiro debate, Trump disparou: “Você usou a palavra ‘inteligente’? Você se formou entre os piores da sua turma. Não use essa palavra comigo”. Na quinta-feira, o presidente se mostrou mais respeitoso com Biden.

Em 2016, Trump manteve a descompostura nos debates com Hillary Clinton. Quando ela disse: “Ainda bem que você não é o presidente”, ele respondeu: “Porque você estaria presa”, ecoando os gritos que ele incentivava em seus comícios: “Prendam-na”. Em seus comícios de agora, ele garante que Biden e Barack Obama “são criminosos”. Mas não fez isso no debate.

Em 2016, funcionou porque Trump era uma novidade não testada. E nunca é demais lembrar que Hillary teve quase 3 milhões de votos a mais que ele. Trump se elegeu no colégio eleitoral com 77 mil votos a mais em três Estados: Pensilvânia, Michigan e Wisconsin.

Agora, aos olhos dos americanos, Trump não passou no teste da gestão. Muitos se sentem abandonados à própria sorte para lidar com a ameaça do vírus. Essa sensação de vulnerabilidade cria um ambiente mais favorável para o maior intervencionismo estatal representado pelos democratas.

Em temas de substância, como a resposta à covid-19 e à recuperação da economia, podem-se identificar fragilidades nas posições de ambos. Não acho que esteja claro, por exemplo, para o americano médio, como Biden pretende gerar 18,5 milhões de empregos com a conversão para fontes renováveis de energia, como ele afirma ter sido reconhecido por "Wall Street”.

Trump mudou de tom, ao dizer que aprendeu com a covid-19 e até assumir “total responsabilidade”, para depois emendar: “A culpa é da China”. Não seria Trump sem essa ressalva. Mas me parece revelador que o jogo democrático tenha colocado um limite no debate público.

*É colunista do Estadão e analista de assuntos internacionais


Dorrit Harazim: Uma eternidade de nove dias

Não existe superlativo capaz de traduzir tudo o que está em jogo neste 3 de novembro de 2020

Os murmúrios se adensam, a respiração mundial acelera, mas ninguém ousa se fazer ouvir a plenos pulmões. Até porque ainda é cedo — falta uma eternidade de 9 dias até o 3 de novembro. A insensatez arrogante que levou o Partido Democrata e Hillary Clinton à implosão em 2016 ainda sangra. Melhor represar o otimismo e concluir o aprendizado de como não menosprezar o poder feroz de Donald Trump.

Após o debate de quinta-feira, é razoável achar que o presidente dos EUA perdeu uma grande chance de ressurgir competitivo. Em seu derradeiro confronto ao vivo e na veia com o adversário, Trump pode ter desperdiçado a última oportunidade para mudar a dinâmica eleitoral em curso. Como se sabe, os números têm sido francamente favoráveis a Joe Biden. Mas, como também se sabe, as pesquisas eleitorais que dão uma vantagem nacional de 8% a 12% ao candidato democrata valem pouco no labiríntico sistema eleitoral indireto do país. Se três ou quatro dos 50 estados americanos não votarem democrata (os “estados-pêndulos”), Donald Trump não arreda pé da Casa Branca.

Não existe superlativo capaz de traduzir tudo o que está em jogo neste 3 de novembro de 2020. Tampouco é exagerado falar em consequências planetárias para a democracia, o progresso, a solidariedade de gerações futuras. Levando em conta o peso mastodôntico dos Estados Unidos no mundo, o resto da aldeia global será afetada pelo resultado, inclusive na sua essência mais elementar — a humanidade.

Vale relembrar a pergunta final dirigida aos dois candidatos pela moderadora Kirsten Welker (que deu uma sólida master class em jornalismo na condução do debate). A pergunta era previsível, e ambos tiveram tempo de sobra para ensaiar a resposta que melhor espelhasse seu DNA. E assim foi. Trump nada tem a dizer a quem não o segue. Foi estreito, tribal, ominoso em sua busca perpétua por “sucesso”. Biden foi Biden:

Mediadora: “No seu discurso de posse, o que o senhor gostaria de dizer àqueles que não lhe deram o voto?”.

Trump: “Precisamos fazer nosso país voltar a ter o mesmo sucesso total que tinha antes da praga vinda da China”.

Biden: “Sou presidente dos Estados Unidos, não de estados vermelhos (republicanos) ou azuis (democratas). Represento todos vocês, tenham votado a favor ou contra mim. Vou lhes dar esperança. Vamos dar preferência à ciência sobre a ficção, à esperança sobre o medo”.

Como escreveu a autora Zadie Smith em ensaio sobre otimismo e desesperança, o progresso humano nunca é permanente, estará sempre sob ameaça e, para sobreviver, precisa ser constantemente reimaginado, reafirmado, reforçado. Biden parece saber que a esperança lúcida é uma forma de resistência contra os desvios da democracia. Já Trump nunca entendeu que a timeline do progresso humano não começa nem termina na sua timeline pessoal, cujo único norte é o “sucesso”.

Dias atrás o jornalista do New York Times Mark Leibovich relembrou um episódio que testemunhou em 2015, quando Trump arrombou com estrondo a disputa pela Casa Branca. Afundado na limusine que o transportava pelas ruas de Nova York, o magnata-celebridade pôs-se a falar do desprezo que sentia por Jimmy Carter. O motivo do desdém pelo ex-presidente democrata de um só mandato (1979 a 1981) não era o fato de Carter ter sido escorraçado nas urnas por Ronald Reagan. “Carter tinha a mania de embarcar no avião presidencial carregando a própria bagagem. Não quero um presidente que desembarca carregando seu saco de cuecas sujas”, explicou. No seu entender, isso transmitia uma mensagem péssima, cabendo a um comandante em chefe ser mais imperial, superior, jamais se comportar como um servidor qualquer.

Há uma ironia embutida no episódio. A se confirmarem as pesquisas atuais, o mesmo Trump que conseguiu transformar a Casa Branca num palácio de dourados ofuscantes corre o risco de ser defenestrado após um só mandato, como Carter. E, se assim for, de uma coisa pode-se ter certeza: não há a mais remota chance de o 45º presidente vir a evoluir como espécime humano a ponto de se tornar um ex de hombridade semelhante à do “carregador de cuecas”. Aos 98 anos, o cidadão Jimmy Carter é atuante e produtivo na vida cívica, respeitado dentro e fora de seu país.

Mas e se as pesquisas estiverem fora de prumo? Segundo estudo da Associação Americana de Psicologia, mais de dois terços da população adulta dos Estados Unidos descreve a eleição de novembro como “forte motivo de ansiedade em suas vidas” — muito além, portanto, dos 63 milhões que instalaram Donald Trump na Casa Branca. À Covid-19 veio se juntar a Angst-2020.


Vinicius Torres Freire: Na guerra da vacina e do general Maria Fofoca, bomba econômica está armada

O custo da comida ainda não incomoda porque ainda se pagam auxílios, mas se a carestia continuar e o povo perder esse dinheirinho, haverá problemas

A diversão está garantida nessas próximas semanas em que o pavio da bomba econômica continuará queimando, sem que o país em geral se importe muito. A diversão maior, no sentido de desvio de atenção, virá da guerra da vacina que ainda nem existe, das decisões que o Supremo deve tomar sobre a obrigação de tomá-la e da aprovação da "vacina chinesa paulista" pela Anvisa e pelo governo.

Enquanto isso, o centrão e alas do governo se ocupam de disputar cadeiras ministeriais. Jair Bolsonaro trata de sua preocupação maior, livrar filhos da cadeia. Parlamentares articulam a eleição dos novos comandos do Congresso.

Até fins de novembro, as eleições nos EUA e nas cidades brasileiras vão dizer qual o valor de mercado eleitoral de extremistas e lunáticos em geral.

Eventual derrota de Donald Trump e de candidatos bolsonaristas nas cidades maiores pode aumentar o passivo político de Bolsonaro, embora esse débito talvez não seja cobrado tão cedo.

O risco maior para o presidente é a política econômica, ora em estado de animação suspensa.

Parte do centrão e gente do governo disputam a cadeira do general Luiz Ramos, ministro da Secretaria de Governo. Com o general Braga Netto, ministro da Casa Civil, Ramos levou Bolsonaro a criar uma coalizão bastante pelo menos para evitar um impeachment.

Foi chamado na sexta-feira de Maria Fofoca pelo ministro do Mau Ambiente, Ricardo Salles, desafeto dos militares.

Não importa muito a rixa que detonou o mexerico vulgaríssimo, portanto condizente com este governo. Interessa que isso explicitou movimentos para decapitar Ramos. Outra disputa de boquinha-mor é a do Ministério do Desenvolvimento, que Bolsonaro estuda recriar. Enquanto o país morre, queima e se endivida, é disso que tratam no Planalto.

A revista Época revelou que Bolsonaro recorre à Polícia Federal, a seus espiões e a outros recursos do governo para cuidar de rolo de filho. É disso, talvez um crime de responsabilidade, que trata o presidente.

Não se liga muito para os sinais de infecção na economia. Desde fins de agosto, as taxas de juros subiram degraus e lá no alto ficaram. O dólar não baixa da casa perigosa dos R$ 5,60, dado o rebu incompetente de um governo endividado.

A combinação de desvalorização da moeda e de auxílio emergencial levou os preços dos alimentos às maiores altas em mais de década (como em 2008, 2013 e 2016).

O custo da comida ainda não incomoda de modo generalizado, como de costume, porque ainda se pagam auxílios. Se a carestia continuar e o povo perder esse dinheirinho, haverá problemas.

Juros de longo prazo e dólar foram às alturas em grande parte porque o país não tem Orçamento para 2021, porque pode ser que tenha até dois (um outro "emergencial") e porque os donos do dinheiro temem furos no teto de gastos. Bolsonaro e a elite política empurraram a discussão dessa crise para depois de novembro.

As soluções para o impasse orçamentário não são politicamente boas. Bolsonaro pode decidir estourar o orçamento, o que vai dar em besteira feia. Pode ignorar o auxílio aos pobres, o que vai dar em fome feia. Pode arrochar outrem a fim de financiar alguma renda básica. Terá de enfrentar reformas, como a politicamente divisiva mudança tributária, sem o que o país vai ficar mais encalacrado (não se trata de dizer que vai ficar melhor ou pior para esta ou aquela gente, mas ficará encalacrado).

Mesmo que não se tomem as piores decisões, a retomada da economia ainda será incerta. Mas a gente se diverte com outros horrores.


Míriam Leitão: Crimes no solo da Amazônia

Os grandes números impressionam, a descrição dos crimes encontrados no solo da Amazônia, também. A Operação Verde Brasil 2 aplicou de 11 maio até esta semana multas no valor total de R$ 1,696 bilhão. O Exército em solo e a Marinha nos rios apreenderam carregamentos de madeira suficientes para encher duas mil carretas. E isso foi até a última quarta-feira. Em apenas uma operação contra o garimpo ilegal foram encontrados 45 quilos de ouro. Ao todo nesses meses foram apreendidas oito mil toneladas de minerais ilegalmente extraídos, a maior parte manganês.

Os 45 quilos de ouro têm o valor de R$ 15 milhões. Foram encontrados dentro da Reserva Biológica de Maicuru, entre os municípios de Santarém e Itaituba, numa operação nos dias 9 e 13 de outubro. O local é definido pelos militares como “totalmente inóspito e de difícil acesso”. Foram por ar com a Força Aérea. Junto com os militares, a Polícia Federal e o Ibama. Lá, destruíram também 15 motores estacionários de garimpo.

Eles não saem assim às cegas. Em Brasília um grupo reúne todos os órgãos envolvidos com o tema. Um deles é o Inpe. Com imagens de satélite escolhe-se onde agir. Em videoconferências falam com os comandos militares na Amazônia. No resto é patrulha mesmo por terra, rio e ar.

Na manhã de 2 de setembro, as tropas das Forças Armadas chegaram numa fazenda que fica a leste da Terra Indígena Yanomami, ao norte da Estação Ecológica Niquiá, no município de Caracaraí. Estavam juntos técnicos do ICMBio, policiais militares de Roraima e fiscais ambientais do estado. Era uma atividade de combate ao garimpo ilegal. Eles apreenderam quatro aviões, mas havia outras aeronaves sendo consertadas e uma sendo montada. Havia uma pista de pouso e um hangar com espaço para cinco aviões.

As distâncias são enormes e só podem ser vencidas com o que eles chamam de “uma logística forte”, que apenas as Forças Armadas têm. Os militares dizem que precisam da cooperação dos órgãos ambientais. Na verdade, eles definem a Verde Brasil 2 como uma operação interagências. E a lista inclui, além das três forças, ICMBio e Ibama, a Funai, o Serviço Florestal Brasileiro, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Incra, órgãos ambientais estaduais e polícias locais.

No dia 25 de junho, um navio patrulha da Marinha encontrou carregamento de madeira na foz do Rio Tocantins, no Pará. Havia três empurradores e quatro balsas levando ao todo mil toras de madeira ilegal. A carga era tanta que punha em risco a navegação. Dois dias depois aportaram em Belém e o material foi entregue às autoridades ambientais do Pará.

— Quando a gente não consegue evitar o desmatamento, a gente apreende o resultado do crime para dar um prejuízo ao malfeitor e desestimular a continuidade do crime — disse um militar.

Ao todo, foram 765 os equipamentos inutilizados ou destruídos este ano. São veículos, motores de garimpo, balsas, tratores, escavadeiras e máquinas agrícolas. Isso, além das mais de mil embarcações apreendidas e 390 dragas. Em Humaitá, pegaram de uma só vez 64 dragas.

— Os garimpos são enormes, muitas vezes em áreas protegidas. Os servidores do Ibama e do ICMBio são poucos. Precisam ser levados, em geral pela Força Aérea. A multa é aplicada pelo Ibama e pelo ICMBio. O papel das Forças Armadas principal é logística, de levar esse fiscal para lugares que ele não conseguiria chegar, e ao mesmo tempo dar proteção a ele. Num garimpo enorme desses, o fiscal vai sozinho? É um perigo. É pouquinha gente (das agências ambientais) para umas coisas enormes e interesses muito grandes por trás — explica um oficial.

A Operação Verde Brasil 2 está prevista para terminar em 6 de novembro. Terão sido seis meses. As multas aplicadas foram muito maiores do que no ano passado.

— Até hoje foram combatidos 7.500 focos de incêndio e foram realizadas 44.900 inspeções navais e terrestres, vistorias e revistas. É bastante. É o suficiente? Não. Isso tudo é emergencial. A gente está com um problema grande e está aqui combatendo os efeitos para tentar reduzir. É necessário ter uma política de empoderamento desses órgãos ambientais — explicou o oficial.

O discurso do governo confunde, mas a ação do Estado diante da grandeza da Amazônia só dá certo quando há cooperação entre seus vários braços e os objetivos são permanentes.

Com Álvaro Gribel


Folha de S. Paulo: Eleição de Bolsonaro inaugura república das milícias, diz pesquisador

Para autor de livro recém-lançado, presidente mantém vivo discurso da linha dura e de grupos de extermínio

Duas das principais referências morais e profissionais na formação do presidente Jair Bolsonaro foram o general do Exército Newton Cruz e o coronel Carlos Brilhante Ustra. Em comum, ambos eram contrários ao processo de abertura que levaria à Nova República e assumiam a necessidade de sujar as mãos na disputa política que viam como uma guerra.

Chefe da agência central do SNI (Serviço Nacional de Informações), cargo que exerceu até 1983, quando foi para Brasília assumir o Comando Militar do Planalto, Cruz foi um dos representantes da linha dura na Presidência de João Baptista Figueiredo, organizando a resistência contra a redemocratização em um período em que pelo menos 40 bombas explodiram no Brasil.

A série de atentados, cujo objetivo era provocar medo para justificar novas medidas de endurecimento, culminou com a bomba no Riocentro, em 1981, que devia explodir durante um show de MPB com cerca de 20 mil pessoas. O artefato, contudo, estourou antes, dentro de um carro com dois militares. Cruz assumiu, anos depois, que havia sido informado dos planos e nada fez por falta de tempo.

Ustra, por sua vez, foi chefe do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações) do 2º Exército em São Paulo entre 1970 e 1974. O então major era valorizado pelos militares da linha dura como o símbolo dos oficiais que sujaram a mão na guerra, em contraponto aos burocratas fardados que se articulavam na transição para entregar o poder aos inimigos civis.

Nos porões paulistas, liderados por Ustra, a tortura era prática comum. Dos 876 casos catalogados no livro “Brasil: Nunca Mais”, cerca de 400 ocorreriam no centro comandado por ele.

Ustra escreveria sua visão da história no livro “A Verdade Sufocada”, uma das bíblias bolsonaristas, no qual se queixou de que o Brasil sofria na democracia derrotas comprometedoras na batalha ideológica, que deveria ser vencida a qualquer custo.

As esquerdas, dizia ele, estavam na dianteira, ganhando a mente das massas, dominando postos estratégicos nas universidades, escolas, Redações dos jornais e no mundo das artes. A vitória cultural da esquerda também atrapalhava as polícias militares, cujo trabalho no combate ao crime sofria sabotagem dos defensores de direitos humanos.

O discurso antidemocrático e conspiratório, contra a Constituição de 1988 e o novo regime que surgia, marcaria a carreira de uma legião de militares, como Bolsonaro.

Em março de 1985, quando José Sarney assumiu a Presidência, o nome de Newton Cruz foi retirado da lista de promoção ao topo da carreira. O general foi para a reserva, contribuindo para alimentar a mágoa de Bolsonaro, como conta Flávio, seu filho, na biografia que escreveu sobre o pai, “Mito ou Verdade: Jair Messias Bolsonaro”.

O coronel Freddie Perdigão, acusado de planejar o atentado no Riocentro e integrante da Casa da Morte (centro clandestino de tortura e assassinato), em Petrópolis, deixaria o Exército e se envolveria na segurança de bicheiros na Baixada Fluminense, associado a grupos de extermínio.

A ponte dos egressos da linha dura para a cena criminal e de extermínio do Rio seria feita com a ajuda de membros dos esquadrões da morte cariocas, como os policiais civis Mariel Mariscot e Euclides Nascimento —este último presidia a Scuderie Le Cocq, organização que levou as práticas de execução a outros estados, em especial o Espírito Santo.

Bolsonaro, inconformado com os ventos democráticos, passou a agitar contra os comandos da Nova República a partir de 1986. Primeiro, escrevendo um artigo, publicado na revista Veja, em que se queixava dos salários nas Forças Armadas.

No ano seguinte, ele daria um passo além e contaria em off a uma repórter da mesma revista os planos para explodir algumas bombas, tumultuar o ambiente político e demonstrar a fragilidade do então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, e do presidente José Sarney.

Diante do risco real a terceiros, a revista revelou os planos de Bolsonaro, que passou por um processo militar, mas foi absolvido. A versão da revista, no entanto, era consistente e não havia como o capitão seguir carreira no Exército da democracia.

Com a fama adquirida após o episódio, o reformado Bolsonaro daria início a sua carreira política, atuando como sindicalista de luxo para aumentar salários e aposentadorias de policiais e militares. As mágoas em relação ao establishment político estavam mais vivas do que nunca e definiram sua trajetória. Em quase três décadas de carreira parlamentar, ele seria a antítese da política, o deputado em defesa da guerra contra o crime e a subversão esquerdista.

Em sua retórica explosiva, ultrapassava os limites da decência e do decoro, fortalecendo o sobrenome da família com infâmias que nem mesmo os linhas-duras tiveram coragem de falar em público durante a repressão. Mantinha vivo na democracia o discurso dos policiais exterminadores.

Bolsonaro era capaz de apoiar o uso do pau de arara contra suspeitos, celebrar grupos de extermínio e milícias e pregar o assassinato criminoso de “bandidos” por forças paramilitares, chegando ao ponto de dizer em um programa de TV que a solução para o Brasil era uma guerra civil, que levasse à morte pelo menos 30 mil pessoas.

Para ele, a Constituição de 1988 e as políticas de direitos humanos que tentavam controlar a violência policial eram amarras que impediam uma guerra necessária no país. Dessa forma, o parlamentar e seus filhos se tornaram porta-vozes ideológicos dos policiais que sujaram as mãos na batalha contra o crime.

Havia uma forte afinidade de valores entre eles: a violência redentora e fardada, mesmo quando agisse contra a lei, poderia salvar o Brasil, algo que o deputado e seu clã sempre alardearam abertamente em discursos e projetos parlamentares.

Pintados como heróis, esses policiais matadores, mais cedo ou mais tarde, usavam seu poder para enriquecer com diversos negócios criminosos. Foi assim que Bolsonaro e seus filhos se aproximaram de alguns dos milicianos mais perigosos do Rio.

Isso ocorreu por intermédio do policial militar Fabrício Queiroz, que tinha papel de destaque nos mandatos parlamentares do clã. Queiroz trabalhou a maior parte da carreira como policial do 18º batalhão, em Jacarepaguá, unidade cuja omissão seria fundamental para o processo de espraiamento das milícias a partir de 2000 no Rio.

Nesse período, Queiroz se envolveu em ações suspeitas, como um homicídio em 2003 praticado com um policial egresso do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), que na década seguinte se tornaria um dos bandidos mais perigosos da nova cena criminal do Rio: o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega.

O laço de sangue e lealdade levou Queiroz a aproximar Adriano dos Bolsonaros, que passariam a defendê-lo e ajudá-lo por mais de uma década.

Nesses anos, Adriano organizou ações de matadores e ganhou dinheiro com empreendimentos ligados ao jogo de azar e com a venda de imóveis irregulares em áreas protegidas ambientalmente na região de Rio das Pedras, bairro com forte presença de milícias. Morreu em uma ação policial na Bahia em fevereiro deste ano, após quase um ano foragido.

Durante esse processo de embarque de Adriano no mundo do crime, os Bolsonaros prestaram diversas homenagens a ele. Flávio contratou como assessoras de seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio a mãe e a mulher do ex-capitão da PM.

Esses e outros vínculos com criminosos e seu histórico compromisso com a defesa da violência e da ideologia paramilitar não impediram a vitória de Bolsonaro na eleição de 2018. Talvez tenham até ajudado.

A última disputa presidencial marcou também o ocaso da Nova República, 33 anos depois de seu nascimento. Desde pelo menos junho de 2013, com as manifestações de rua, o clima político parecia fora do eixo.

A situação se agravou depois de 2014, quando denúncias sobre corrupção e caixa dois envolvendo políticos, reveladas pela Lava Jato, passaram a dominar quase diariamente o noticiário.

Pouco depois, houve o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Seu sucessor, Michel Temer (MDB), também foi alvo de denúncias de corrupção. Somado a tudo isso, o país enfrentou uma crise econômica e fiscal de proporções dramáticas, criando uma imensa sensação de impotência e de depressão coletiva, período marcado pela descrença na política e nos políticos da Nova República.

Quando se esvai a fé na política como forma de mediação dos conflitos, resta a polícia —uma autoridade capaz de estabelecer a ordem e garantir a obediência pelo uso da força. O discurso da violência redentora pregado por Bolsonaro ganhou receptividade ampla e nacional.

Os brasileiros escolheram como líder um apologista dos justiceiros, como se decidissem abandonar suas crenças nas instituições democráticas para transformar o país em um imenso Rio das Pedras.

Bolsonaro ainda recebeu em peso o apoio dos militares, que jogaram por terra três décadas de consolidação das Forças Armadas como instituição do Estado ao assumir um lado e participar da política. O vice-presidente, Hamilton Mourão, outro fã declarado de Ustra, puxou o bonde e atraiu membros da tropa militar para o governo.

A eleição de Bolsonaro marcou o fim da Nova República para inaugurar a imprevisível república das milícias.

*Bruno Paes Manso, Jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, é autor de "A República das Milícias - dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro" (ed. Todavia)


Bruno Boghossian: Bolsonaro aproveita eleições para abastecer clima de campanha permanente

Presidente alimenta antipetismo e recomenda voto contra prefeitos que aplicaram isolamento

Depois de dizer que não se envolveria nas eleições deste ano, Jair Bolsonaro entrou nas campanhas dos 5.568 municípios que vão às urnas em novembro. Na portaria do Palácio do Alvorada, o presidente lançou sua plataforma: recomendou voto contra prefeitos que adotaram medidas de isolamento e reviveu fantasmas ultraconservadores.

“Vocês têm que ver o partido em que o cara está. Esses partidos que pregam a destruição de lares, a favor de ideologia de gênero, o pessoal que apoia o MST… Vocês estão votando nesses caras”, afirmou aos apoiadores do governo, na quinta (22).

As corridas municipais representam um risco para Bolsonaro. A falta de uma máquina partidária e a incerteza sobre as disputas de 2020 poderiam produzir uma derrota em massa de seus apadrinhados. Conhecendo o perigo, ele tenta aproveitar o momento de outra maneira.

O presidente passou a explorar a arena eleitoral com dois objetivos. Na primeira trilha, ele age para politizar ainda mais o combate ao coronavírus. A ideia é desestimular o voto em prefeitos que se opuseram à cartilha bolsonarista. “Vê se você concorda com as medidas que ele tomou, obrigando a fechar tudo, falando grosso, prendendo mulher em praça, fechando praia”, declarou.

De outro lado, o presidente busca as assombrações ideológicas que associou à esquerda para criar a onda de ultradireita de 2018. Antes do papo no cercadinho do Alvorada, ele já havia usado um evento oficial, no início do mês, para pedir votos em “gente que tenha Deus no coração, que tenha na alma um patriotismo”.

Dois exemplos desse método são as únicas postulantes à Câmara de São Paulo apoiadas por Bolsonaro. Tanto Sonaira Fernandes quanto Clau de Luca se referem ao coronavírus como “vírus chinês” e alimentam a pauta conservadora.

Bolsonaro não teve força para lançar candidatos competitivos nas grandes cidades. Ainda assim, ele enxerga nas eleições uma oportunidade para manter seu conhecido clima de campanha permanente.


Elio Gaspari: Um surto de mediocridade

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac

Sabe-se que Jair Bolsonaro dorme mal. No ano passado, ele revelou que penava 89 episódios de apneia por hora: “Detenho o recorde brasileiro.” Sabe-se também que instalou uma escrivaninha no espaçoso guarda-roupas do Alvorada e passa o tempo ligado nas redes sociais de sua estima.

Às 5h45m da madrugada de quarta-feira, o presidente continuava diante de seu computador quando respondeu a uma mensagem com um grito de guerra: “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. (…) Diante do exposto, minha decisão é a de não adquirir a vacina.”

Estava aberta uma ridícula Guerra da Vacina.

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac, que, nas suas palavras, transformou-se na “vacina chinesa do João Doria”. Desde que o vírus chegou ao Brasil, matando mais de 150 mil pessoas, Bolsonaro militou no exercício ilegal da Medicina com sua cloroquina.

Fritou dois ministros da Saúde e, com seu surto matutino, começou a refogar o terceiro. Nos seus gritos de guerra, anunciou que a “vacina não será comprada” porque “não abro mão de minha autoridade”. Parolagem. Horas depois, a Agência de Vigilância Sanitária (detentora da autoridade) informou que, como acontece com qualquer medicamento, autorizará a compra do fármaco que cumpra os requisitos científicos.

No rescaldo do surto, 11 palavras do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz explicam a barulheira: “Falta de capacidade e organização interna” e “um nível de mediocridade extrema”.

Santos Cruz foi um dos 13 azes militares levados para o governo pelo capitão Bolsonaro. Os outros dois foram Hamilton Mourão e Augusto Heleno. Ele era o único a não ter se envolvido em episódios de indisciplina. Durou seis meses, dois dos quais em processo de fritura. Desde que saiu do governo, Santos Cruz tem sido um crítico raro, porém, pontual. Se quisesse, teria sido candidato à Prefeitura do Rio, mas afastou-se do cálice.

Quem entende o mundo dos generais garante que Santos Cruz é ouvido.

Uma grande História dos EUA

Está nas livrarias “Estas verdades — História da formação dos Estados Unidos”, da professora Jill Lepore, de Harvard. Com 866 páginas e quase dois quilos, vai de Cristóvão Colombo a Donald Trump. Lepore gosta da vida, de História e dos Estados Unidos. Isso faz com que sua produção tenha um discreto bom humor, levando-a a tratar de tudo, inclusive cinema e esporte.

Os personagens de “Estas Verdades” têm carne e osso. Ela olha para os magnatas, os poderosos, os negros, os índios e as mulheres. Em 1760, o fazendeiro George Washington consertou sua boca usando dentes de escravizados. (Pelo menos 43 deles fugiram e um combateu ao lado dos ingleses. Da fazenda de Thomas Jefferson, fugiram 13). O futuro presidente acasalava-se com a escrava Sally Hemings, meia-irmã de sua falecida mulher. Na conta do erudito amante e senhor, ela só tinha um oitavo de sangue negro.

No século XVIII, as colônias americanas tiveram duas revoluções, uma contra o domínio inglês, outra contra a escravatura. Esta levou quase um século para prevalecer. O que levou os colonos a rebelar não foram apenas os impostos e a repressão, mas sobretudo a oferta da liberdade para os escravos.

Em 1776, um grupo de “subversivos”, segundo o filósofo inglês Jeremy Bentham, criou um estado “absurdo e visionário”. Em 1801, a Suprema Corte se reunia na pensão em que viviam seus juízes.

Lepore diz coisas assim: “A Inglaterra manteve-se no Caribe e desistiu da América.” Ou ainda, tratando da Guerra Civil: “O Sul perdeu a guerra, mas ganhou a paz.”

A grande nação americana foi construída também pelos movimentos dos trabalhadores, dos imigrantes e dos negros. “Estas verdades” vai mostrando essa história aos poucos, com um elegante domínio dos fatos: em 1776, quando foi proclamada a independência dos Estados Unidos, a temperatura na cidade de Philadelphia era de 11 graus; às vésperas da chegada de Donald Trump, era de 15.

Para Bill Gates, “Estas Verdades” é o “relato mais honesto e mais bem escrito que já li sobre a História dos Estados Unidos". Jill Lepore conta uma grande aventura e termina com certa ansiedade: “Uma nação não pode escolher seu passado, só pode escolher seu futuro”.

Recordar é viver

Deu no “The New York Times”: pelo menos 545 crianças cujas famílias tentavam entrar ilegalmente nos Estados Unidos estão em abrigos, sem que seus pais tenham sido localizados. No debate de quinta-feira, Donald Trump fugiu da pergunta durante vários minutos.

Essas coisas acabam passando despercebidas enquanto a vida segue, naquilo que parece ser uma rotina maior que pequenos dramas.

No dia 12 de dezembro de 1938, chegou a Londres um navio que transportava 200 crianças judias alemãs, entregues pelos pais para que fossem criadas por famílias inglesas. Até o fim da guerra foram mais de 10 mil. O filho de uma delas, Michael Moritz, tornou-se um milionário e doou 15 milhões de dólares para programas de ajuda aos pobres da Universidade de Oxford.

Nas semanas em que as crianças judias desceram em Londres, Josef Stalin assinou 30 listas com os nomes de cinco mil pessoas que deviam ser executadas e foi ao cinema do Kremlin ver uma comédia.

No Rio, Vargas posou para o escultor Leão Veloso e foi ao cinema ver “Corpo e alma de uma raça”.

Passou o tempo e a história de Nicholas Winton, o inglês que organizou o resgate está na rede, em vários vídeos. Quem quiser, poderá cultivar suas emoções por alguns minutos. O título de um deles é “Nicholas Winton, o herói anônimo da Segunda Guerra”.

Amy e Kassio

O ministro Gilmar Mendes não gosta que se façam paralelos entre a Corte Suprema dos Estados Unidos e o Supremo Tribunal Federal.

O que aconteceria com a escolha da juíza Amy Coney Barrett, indicada para o tribunal, se dissesse aos senadores americanos que seu marido trabalha lá, mas não sabe exatamente o que ele faz? E se o senador em cujo gabinete o cidadão está lotado, também não souber?

O desembargador Kássio Nunes Marques não soube dizer aos senadores o que sua mulher faz no gabinete do senador Elmano Férrer. Nem ele.

Nunes Marques explicou aos doutores que o custo de vida em Brasília é muito caro. Treze milhões de desempregados encaram o custo de vida sem salário algum, mas faça-se justiça: ela é economista e não advoga nas Cortes de Brasília.

Jesse Barrett, o marido de Amy, é advogado criminalista e trabalha numa banca em Indiana.


Ricardo Noblat: Bolsonaro mente enquanto a Amazônia pega fogo

O exercício permanente e obstinado do engodo

Por ignorância, estupidez ou conveniência, as declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre a Amazônia foram de um extremo a outro nesses quase dois anos de (des)governo. Ainda no primeiro semestre do ano passado, ele disse que a Amazônia estava oquei e chamou de feia a mulher do presidente francês, preocupado com a destruição da maior floresta do planeta.

Em meados deste ano, ante o aumento do número de focos de incêndio por lá, Bolsonaro negou que a Amazônia pegasse fogo porque o clima, ali, é úmido. O que pegava fogo, segundo ele, era a periferia. Não disse que o fogo ateado na periferia deve-se à ação humana criminosa e ao desinteresse do Estado em detê-la. A omissão do Estado só fez crescer desde que ele tomou posse.

Na última quinta-feira, durante cerimônia de formatura de alunos do Instituto Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores, Bolsonaro deu pelo não dito até então para afirmar que não há “nada queimado” na Amazônia, sequer “um hectare de selva devastada”. Sim, foi isso mesmo que você leu: nada queima na Amazônia e nenhum hectare de selva foi devastado.

Aproveitou a ocasião para anunciar que, em breve, vai convidar diplomas estrangeiros para um sobrevoo de uma hora e meia de parte da floresta entre Manaus e Boa Vista. Assim eles poderão constatar que a Amazônia não arde. Na verdade, o sucesso da viagem dependerá da rota traçada e da perícia do piloto para passar longe dos trechos em chama e desmatados.

Ainda faltam dois meses para 2020 acabar, mas na Amazônia o número de focos ativos de calor já ultrapassou o total registrado nos 12 meses de 2019, informa o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O bioma Amazônia registrou este ano 89.734 focos. Em todo o ano passado, 89.176. Até anteontem, o número já era quase o dobro do visto no mês inteiro de outubro do ano passado.

O que Bolsonaro diz não se escreve ou não deveria ser escrito. Mas o pior é que se escreve, quando nada porque não é normal que um presidente da República minta tanto ao seu país e ao mundo.


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro em seu habitat

Depois de abandonar o PSL e a 'nova política', Bolsonaro testa os generais

Com o fiasco da “nova política” nos governos estaduais e o escanteio do PSL em favor do Centrão no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro volta ao seu habitat político e apoia o “velho” também nas eleições municipais. Mas, assim como o “novo” não funcionou nos governos e no Congresso, o “velho” não está dando para o gasto na disputa pelas prefeituras. Entre o “velho” e o “novo”, tem prevalecido a experiência e a confiança.

Os “novos” e meteóricos Wilson Witzel, juiz de carreira eleito no Rio pelo PSC, e Carlos Moisés, bombeiro militar eleito em Santa Catarina pelo PSL, estão deixando a política pela porta dos fundos, afastados dos governos dos seus estados pelas vias política e jurídica. Não têm experiência e cancha para a complexidade da política e, aparentemente, não entraram nela apenas “por ideologia” e “pelo bem comum”…

Talvez por isso, talvez não, Bolsonaro desistiu de um exército (atenção, em minúscula…) que só tem dado dor de cabeça e mergulhou de volta na sua velha turma de 28 anos de Congresso. Apoia o prefeito Marcelo Crivella no Rio e o sempre candidato Celso Russomanno em São Paulo, ambos do Republicanos. Mas suas candidaturas derretem ao ritmo de Amazônia e Pantanal.

Inelegível, Crivella recorre à Justiça Eleitoral e tem um recorde: 58% de rejeição, o que sugere chance zero de vitória. Quem lidera é o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM), efetivamente o que tem mais experiência. E quem emerge para disputar com ele o segundo turno é Martha Rocha (PDT), mulher, delegada e de um partido brizolista – referência política que ainda resiste no Rio. Empatada com Crivella, ela é seguida de perto por Benedita da Silva (PT).

Em São Paulo, repete-se o script das duas eleições anteriores: Russomanno dispara na frente e vai se desmilinguindo, desta vez pendurado em Bolsonaro. Revela-se um mau negócio. Depois de fotos com o presidente, ele disparou na rejeição, despencou nas intenções de votos e foi superado pelo prefeito Bruno Covas, do PSDB.

Pelo retrato de hoje, que sempre pode mudar, o segundo turno vai ser mais uma vez, como há décadas, entre PSDB e a esquerda. Mas tem novidade: Jilmar Tatto (PT) cresce a passos de tartaruga e a nova cara da esquerda é Guilherme Boulos (PSOL). Um segundo turno entre PSDB e PSOL tende a favorecer o tucano.

Sem surpresa, o PSL, que há apenas dois anos elegeu Bolsonaro, conquistou governos estaduais e formou uma das duas maiores bancadas da Câmara, vai de mal a pior na campanha. Com R$ 199 milhões do Fundo Partidário, mas sem Bolsonaro, sem protagonismo e sem lideranças no Congresso, disputa em 13 das 26 capitais com candidaturas próprias, mas só tem alguma chance em uma, Palmas, com uma mulher, Vânia Monteiro.

Eleições municipais não projetam o resultado de eleições presidenciais, mas são um bom momento de consolidar ou destruir personagens, mobilizar estruturas partidárias e militantes e jogar no ar questões fundamentais para o País. Ainda mais em tempos de pandemia, recessão, desemprego e um presidente capaz de desdenhar da pandemia, atacar o isolamento social, propagandear a cloroquina e agora desacreditar e guerrear contra a… vacina.

O PSL se esvai e o “novo” envelhece, mas o bolsonarismo fica. Além de saúde, educação, habitação, a eleição deve servir também para discutir realidade, princípios e, afinal, o que é, o que significa e o que projeta esse bolsonarismo. A semana, aliás, é excelente para isso. Depois de ficar com o tal guru da Virginia contra o general Santos Cruz e de humilhar o general Pazuello, Bolsonaro tem de optar entre Ricardo Salles e o general (Maria Fofoca) Ramos. Eleição municipal não tem nada a ver com isso? Qualquer eleição tem sim, e muito!

  • Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta

Vera Magalhães: Sem Ministério Público

Sob Aras, procuradoria se omite da função de fiscalizar e cobrar o governo

As ameaças de Jair Bolsonaro de dificultar a aprovação de vacinas contra o novo coronavírus pela Anvisa e sua afirmação reiterada de que o governo federal não vai comprar para fornecer a Estados e municípios e ao SUS a Coronavac, caso ela venha a ser a primeira a concluir as fases de teste de segurança e eficácia, explicitaram a completa omissão do Ministério Público Federal, sob Augusto Aras, em sua função precípua de fiscalizar e cobrar o poder público e representar a sociedade.

Essa omissão começou graças ao processo de escolha do procurador-geral da República: à revelia da própria instituição, apontado por Jair Bolsonaro justamente pelo fato de não ter se submetido à lista tríplice dos pares e depois de sucessivos encontros em palácios em que, depois, o presidente fazia questão de colocá-lo debaixo da asa e deixar claras as afinidades em defesa da “Pátria”, da “família” e sabe-se mais o quê.

De propósito, Bolsonaro tratou de manter Aras na lista dos “supremáveis”, aqueles que poderia indicar à cadeira de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Isso explica por que, por exemplo, ao pedir uma investigação a respeito das denúncias de Sérgio Moro contra o presidente, Aras tenha feito questão de incluir o ex-ministro como investigado por suposta denunciação caluniosa. Não vai dar em nada para nenhum dos dois, se depender dele, e a intenção sempre foi essa.

Mas não é só. A maneira como Aras montou a estrutura interna do MPF, centralizando nas estruturas próximas de si qualquer iniciativa de fiscalização do governo, amarrou os procuradores. Isso, conjugado com o aumento das ameaças de sanções disciplinares por órgãos, como o Conselho do MPF, funcionaram como mordaças não só para os atuantes em forças-tarefas, como a da Lava Jato, mas também em grupos antes muito ativos, como os de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, não por acaso áreas críticas para o governo Bolsonaro.

Procuradores que adotaram medidas contra o ministro Ricardo Salles foram questionados no Conselho por passarem por cima das instâncias encarregadas de fazer isso. Tentativa de censura explícita.

Agora, Aras determinou que as iniciativas quanto ao acompanhamento das ações governamentais no enfrentamento da pandemia de covid-19 fiquem a cargo de um “gabinete integrado de acompanhamento da covid-19”, ligado diretamente ao gabinete da PGR.

Bolsonaro cometeu todos os abusos que cometeu nesta semana, ameaçando boicotar a vacina, promovendo mais um remédio sem eficácia comprovada em solenidade oficial, dizendo que tentará influenciar uma decisão da Anvisa, agência que precisa ser independente, e o que fez o tal gabinete da covid do MPF?

No dia 21, o tal gabinete encaminhou a todos os procuradores, pela rede interna de e-mail, uma mensagem contendo o “resumo da coletiva de imprensa do Ministério da Saúde” e um “comunicado interministerial” do Ministério das Comunicações listando todas as iniciativas do governo no enfrentamento da pandemia. Apenas isso.

A atuação do grupo como mero porta-voz do Planalto revoltou os procuradores, que responderam à mensagem dizendo que esperavam que, na rede da instituição, se informasse o que o MPF pretende fazer para cumprir seu papel constitucional de representar os interesses da sociedade brasileira, nessa questão das vacinas, que vai caminhando para se transformar num grave impasse entre entes federativos.

A capitulação de um órgão que a Constituição fez questão de deixar desvinculado dos três Poderes justamente para assegurar sua independência é um sinal eloquente da redução do espaço democrático. Ela se dá muito concretamente em diferentes frentes. Quando a reação vier, e se vier, poderá ser tarde demais.

*Editora do BR político e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura