Day: outubro 7, 2020

Lígia Bahia: Consensos e omissões na saúde

Programas de candidatos são imprecisos e medrosos

As cidades são responsáveis diretas por parte da oferta de serviços e financiamento das ações de saúde. Em 2019, 23% das internações, 44% dos procedimentos ambulatoriais e 30% dos recursos financeiros para o SUS foram originados nos municípios brasileiros. Além da geração de atividades e receitas próprias, os municípios recebem repasses da União e estados e realizam convênios com instituições públicas, filantrópicas e privadas.

Como a procura por cuidados e a insatisfação com o atendimento ocorrem nos municípios, as eleições para prefeitos e vereadores propiciam um debate objetivo sobre saúde, especialmente ao coincidirem com uma crise sanitária global. A maioria dos 14 programas que concorrem à prefeitura do Rio de Janeiro menciona consequências da transmissão da Covid-19 e contém propostas concretas e coincidentes para ampliar a saúde pública.

São pontos de convergência entre candidaturas situadas em qualquer ponto do gradiente esquerda-direita: a expansão das unidades de atenção básica; a adoção de tecnologias de informação, seja no âmbito administrativo, seja como complemento ao atendimento presencial; e a disposição para organizar e dinamizar o complexo de pesquisas e produção de vacinas, testes e equipamentos. A valorização de necessidades especificas de saúde para a população negra e LGBT é quase consensual. Fica explícita, inclusive, no programa do PSL (ex-partido do presidente Bolsonaro) e escondida na plataforma do prefeito, candidato à reeleição.

Segundo os programas eleitorais, o SUS carioca ficará maior, terá informações mais acessíveis por meios digitais e assistência digna, decorrente da redução de preconceitos e estigmas, bem como da articulação da prefeitura com as universidades, Fiocruz e indústrias setoriais. Mas as justaposições sobre a importância do SUS não se repetem na definição sobre como, com quem e quando essas medidas serão efetivadas. Os documentos programáticos são obrigatórios para o registro de candidatos a cargos executivos, mas não existem regras sobre conteúdo e forma. Cada partido político ou coligação decide sobre a divulgação de suas proposições. Existem programas-livros e outros com menos de dez páginas. Apesar das diferenças de tamanho, as ideias sobre a execução das políticas propostas são quase sempre difusas, apenas se examinadas detidamente permitem detectar divergências.

Todos são favoráveis ao SUS, ao crescimento das atividades de saúde pública, mas as soluções variam desde gastar mais R$ 5 bilhões com saúde no primeiro ano de mandato até a redução de despesas. Tampouco existe concordância sobre os profissionais de saúde. As promessas incluem a contratação de seis mil para a rede pública, aumentar salários e realizar concursos, mas também retomam a velha acepção — comprovadamente inviável desde os anos 1970 — de credenciar consultórios médicos particulares. Críticas às organizações sociais unem as candidaturas de esquerda e a de Crivella. A defesa do modelo de delegação da gestão a terceiros ficou a cargo dos partidos Novo, Socialista Cristão e Social Liberal. As filas de espera para consultas especializadas, exames e internações são motivo de preocupação, mas seguem não equacionadas. O único candidato que avança nas metas para fazer a fila andar afirma que, no final de seu mandato, a demora será 30% menor. Um desconto com pouco sentido prático. Pessoas com catarata, que não conseguem sair de casa porque não enxergam, em vez de permanecer assim durante 365 dias, serão condenadas a ficar nessa condição durante 255 dias em 2024. A espera seguiria sendo interminável

Temas tabus estão ausentes. São cinco mulheres candidatas, e praticamente zero palavra sobre aborto. A cidade “pestilenta”, denominada túmulo dos estrangeiros no final do século XIX, foi objeto de políticas efetivas de saúde pública. Em 2020, a cidade com a mais elevada taxa de letalidade por Covid-19 entre os municípios brasileiros tem um SUS degradado, concentrado nas áreas de maior renda. Os programas eleitorais estabelecem um terreno comum para o debate sobre saúde, mas são imprecisos e medrosos. Temos tempo até novembro para exigir coerência e elucidação das plataformas eleitorais.


Hélio Schwartsman: O fim da epidemia

Será um fenômeno muito mais psicológico do que físico

A pandemia foi deflagrada por uma causa muito concreta, o Sars-CoV-2, mas seu fim será um fenômeno muito mais psicológico do que físico. A esta altura, acho que ninguém mais acredita que o vírus possa ser eliminado. Ele está se tornando endêmico e deve permanecer entre nós por muito tempo, cada vez menos perigoso, espera-se. E é a sensação de segurança que ditará o ritmo da volta ao normal pré-pandêmico.

Há motivos para cautelosa esperança. Os médicos vão aprendendo a tratar os diferentes quadros críticos que a doença é capaz de provocar. A mortalidade do paciente grave já caiu significativamente do início da epidemia para cá.

A imunidade coletiva, sobre a qual muito se especulou, parece ainda distante, como indicam as várias segundas ondas registradas principalmente na Europa. Mas é importante notar que, antes de atingirmos os limiares necessários para alcançar a proteção comunitária, reduções no contingente de suscetíveis irão tornando as cadeias de transmissão do vírus menos eficientes. É possível que o uso mais disseminado das máscaras, ao diminuir a dose viral nos episódios de infecção, contribua para que os casos mais recentes sejam de menor gravidade.

E há as vacinas. Elas exigirão certo tempo para ser testadas, produzidas, distribuídas e aplicadas, mas só a perspectiva de que estejam próximas já ajuda a criar um clima de que sair de casa não é tão arriscado.

Diferentes pessoas retomarão suas vidas em tempos diferentes. Há desde o bolsonarista clássico que nunca usou máscara nem deixou de ir a festas até o hipocondríaco renitente que está há meses entrincheirado e passa álcool gel até na comida. A segmentação também ocorre por tipo de atividade. É provável que o sujeito esteja disposto a enfrentar uma reunião presencial no trabalho antes de sentir-se seguro para jantar fora ou ir ao cinema.

Para alguns a epidemia vai durar mais que para outros.


Monica De Bolle: Trump e o vírus

O embate travado entre Trump e o vírus poderá, portanto, ser a batalha decisiva dessas eleições

Há uma semana estava eu escrevendo a coluna antes do primeiro debate entre Trump e Biden. Embora não soubesse que seria o show de deselegância, truculência, e falta de educação que foi, disse que o debate em si pouco mudaria o cenário eleitoral nos EUA por duas razões: muitos eleitores já estavam decididos e a eleição de fato já havia começado – em alguns Estados, é possível votar antes do dia 3 de novembro, assim como se pode enviar o voto por correio. No dia seguinte, quando a coluna foi publicada no jornal, fiz um post-mortem do debate no meu canal do YouTube. Mal sabia que tudo estava prestes a virar de ponta cabeça já que àquela altura – do pouco que se sabe sobre a linha do tempo – Trump já estava infectado. De lá para cá, soubemos que a Casa Branca se tornou um “covidário”, que no evento de nomeação da indicada para a Suprema Corte várias pessoas do círculo íntimo de Trump se infectaram, que o homem inabalável – imagem que adora projetar de si – passou três dias no hospital com o que parece ser um quadro mais grave de covid-19 do que os médicos estão dispostos a revelar.

Seguindo o script do reality show que já tem quase quatro anos de duração, Trump deu alta a si próprio no início da semana e voltou para a Casa Branca ainda no período contagioso e, nas palavras dos próprios médicos, não fora de perigo. Para projetar a imagem de homem forte que venceu o vírus, ainda que o vírus nele ainda esteja sabe-se lá fazendo o quê com o corpo frágil de um idoso com comorbidades, Trump desceu do helicóptero, subiu escadas, tirou a máscara. As imagens do vídeo capturaram com nitidez o esforço que fazia para respirar no momento em que removia a máscara e expunha fotógrafos e outros funcionários da Casa Branca às partículas virais que expelia. Por certo, seus apoiadores viram apenas a imagem intencionada, a do homem e seu vírus, do homem sem seu vírus como que por milagre. Qual o impacto desse teatro para as eleições? A resposta depende, em parte, do vírus.

Como bem sabem os especialistas, Trump ainda está no período crítico, aquele em que a doença pode se agravar a qualquer momento. Até o médico responsável por cuidar do presidente, o mesmo das ofuscações e das meias palavras para a imprensa, foi claro ao dizer que só estará mais tranquilo depois da próxima segunda-feira. Caso o quadro de Trump se agrave antes disso, a bravata terá sido em vão e a campanha do republicano estará definitivamente encerrada. Se for esse o desfecho, o mais provável é que Trump perca para o adversário democrata Joe Biden, sobretudo após as recentes falas sobre a doença e o vírus. Para quem não está acompanhando tão de perto, Trump disse que a covid-19 não é nada a temer – embora tenha matado mais de 210 mil pessoas nos EUA – e voltou a afirmar como fazia em março que a doença não passa de uma gripezinha. Para completar, disse que a população tem que aprender a conviver com o vírus, que a economia não pode parar, e que não é o momento de discutir pacotes de estímulo fiscal como fazia o Congresso antes de sua internação. Se for para dar mais recursos para a economia, enfatizou Trump, isso só ocorrerá depois das eleições.

Ainda que essas palavras o prejudiquem, há outra possibilidade. Recebendo os melhores tratamentos que a medicina de ponta pode oferecer, não é irrazoável que Trump se recupere. Nesse caso, a bravata terá valido a pena. A imagem do homem forte que combateu o vírus e venceu se implantará no imaginário norte-americano que ainda acredita na suposta excepcionalidade do país. A presunção de uma nação imbatível personificada por Trump poderá ameaçar seriamente as chances de Biden, ainda que o comportamento do presidente tenha sido condenável e que a gestão da epidemia tenha sido um desastre. Vejam: o imaginário americano não se move por sentimentalismos ou simpatias à la “facada de Bolsonaro”. O imaginário americano se move pela ideia de heroísmo e invencibilidade. É desse mito que Trump se alimenta para mesmerizar os suscetíveis, e não são poucos os suscetíveis.

O embate travado entre Trump e o vírus poderá, portanto, ser a batalha decisiva dessas eleições. Trata-se agora da interação entre o sistema imune possivelmente turbinado por medicamentos ainda em fase de ensaio clínico e as artimanhas insidiosas do Sars-CoV-2. A política, assim como a economia, jamais dependeu tanto da medicina.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e Professora da Sais/Johns Hopkins University


Míriam Leitão: Governo dá voltas e não sai do lugar

Por Alvaro Gribel (interino)

O governo adiou mais uma vez o anúncio do Renda Cidadã. Segundo o relator Márcio Bittar, ficará para a semana que vem, mas há quem diga que Bolsonaro prefere decidir somente após as eleições municipais, no final de novembro. Sem dar uma solução para o financiamento do novo Bolsa Família, o clima continuará de volatilidade no mercado, com pressão sobre o câmbio e aumento dos juros da dívida. Nem o encontro de Paulo Guedes com Rodrigo Maia animou o mercado. A bolsa abriu em ligeira alta mas, nas palavras de um investidor, “ninguém acredita mais em historinhas”. É preciso colocar os números na planilha e provar que não haverá estouro do teto de gastos.

Quem participou do jantar com Guedes e Maia na noite de segunda-feira disse que o clima no encontro foi de franqueza e de que “não havia tempo a perder” na agenda de reformas. Mas faltou combinar com o presidente Bolsonaro, que está mais preocupado com as eleições e não quer correr o risco de perder apoio ao cortar benefícios de outros programas sociais. Por ora, o auxílio emergencial é suficiente para garantir sua popularidade, especialmente no Nordeste, até o dia da votação, e na visão de Bolsonaro a crise fiscal pode esperar.

No Congresso, as eleições para as presidências da Câmara e do Senado já afetam a agenda. Ontem, o centrão — com a ajuda da oposição —conseguiu obstruir a pauta. Os deputados Rodrigo Maia e Arthur Lira brigam pelo comando da Comissão Mista de Orçamento (CMO), no que está sendo visto como uma disputa prévia da sucessão na Câmara que ocorrerá em fevereiro.

O fim do auxílio emergencial pode provocar uma disparada do desemprego na virada do ano e afetar duramente o consumo, que tem sustentado a economia. Assim como o mercado, empresários aguardam pela decisão do novo programa social para calibrar os planos de contrações e os investimentos. Sem conseguir tomar decisões e arbitrar conflitos, o governo vai empurrando os problemas com a barriga. Como sabem os liberais, um dia a conta sempre chega.

Voz sem comando

Na entrevista coletiva após a reunião com Maia, Paulo Guedes voltou a falar por três vezes em Renda Brasil, o nome proibido por Bolsonaro. Vale lembrar o que disse o presidente no dia 15 de setembro: “Está proibido falar a palavra Renda Brasil. Vamos continua com o Bolsa Família e ponto final”.

Dois tipos de desculpas

Também chamou atenção na entrevista a forma como Maia e Guedes pediram desculpas um ao outro. Enquanto o presidente da Câmara olhou nos olhos de Guedes e lamentou ter sido “indelicado e grosseiro”, o ministro colocou tudo na condicional. “Caso eu tenha ofendido o presidente Rodrigo Maia, ou qualquer político, inadvertidamente, eu peço desculpas também, não há problemas”, disse Guedes, quando Maia já tinha deixado o local.

Tiro no pé

O economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale, acha que Bolsonaro pode dar um tiro no pé ao deixar para depois das eleições a decisão sobre o novo programa social. Ele entende que isso pode ser visto como estelionato eleitoral se houver cortes em outros programas para financiar o Renda Cidadã. “A oposição pode colar a imagem nele de que fez mudança em política social só depois da eleição. Foi assim no plano cruzado em 1986, quando os governadores do PMDB ganharam, e o cruzado começou a desmontar em seguida. Pegou muito mal e foi o início do processo de desmonte do partido”, lembrou. Sérgio também acha que o calendário ficará apertado em dezembro, pressionado pelas férias legislativas, em janeiro, a votação do Orçamento, e a proximidade das eleições para a presidência das duas Casas. “Pode ser que acabe tendo votação para postergar a decisão sobre o auxílio. Entra o ano que vem recebendo auxílio e depois tem decisão mais permanente sobre o Renda Cidadã”, afirmou.

Trump derruba as bolsas

O risco Trump voltou a derrubar as bolsas. Após fala do presidente americano contra o pacote de estímulo do partido democrata, os principais índices mundiais foram ao vermelho e o dólar subiu. Os investidores que começaram o dia enxergando um céu de brigadeiro, após a saída do presidente do hospital, viram a volatilidade disparar depois do tuíte do candidato republicano.


Vinicius Torres Freire: Sobra dinheiro na poupança, mas não se sabe se todo mundo volta a gastar

Reservas podem compensar fim dos auxílios, mas não se sabe se todo mundo volta a gastar

Está sobrando dinheiro na caderneta de poupança e aumentou a poupança no país durante a epidemia, como bem se sabe. O que vai ser feito desse dinheiro nos próximos meses vai influenciar o ritmo da despiora da atividade econômica.

Supõe-se que o gasto dessa poupança extra possa compensar, em parte, uma baixa no consumo provocada pela redução do valor do auxílio emergencial e de seu fim, previsto para dezembro. Mas pode ser que as coisas não funcionem assim, como em uma balança de pratos; o que sai por uma porta talvez não seja compensado pelo que entra pela outra.

Antes de mais nada, note-se que o valor dos recursos depositados na caderneta de poupança aumentou R$ 163,7 bilhões de setembro de 2019 para setembro de 2020 (em termos reais, considerada a inflação). Desconte-se desse total o valor dos depósitos que teriam ocorrido “normalmente” (no ritmo em que vinham no anterior ao do início da pandemia). Ainda seriam R$ 143,6 bilhões a mais, em um ano. Equivale a 2% do PIB. É muito dinheiro.

Poupança, ocioso dizer, não significa “depósitos na caderneta de poupança”, mas o que deixou de ser consumido, dada a renda disponível. Além do mais, as pessoas podem ter deixado o dinheiro até no colchão. Mais provável, o guardaram em um fundo de renda fixa ou em alguns tipos de título do Tesouro Direto, para citar duas versões mais “pop” de uma espécie de conta remunerada. Os mais remediados ou ricos, em investimentos mais complexos.

O conjunto inteiro de fundos de investimento captou R$ 178 bilhões nos 12 meses até agosto de 2020, segundo dados da Anbima (excluídos os fundos ditos estruturados). Mas o patrimônio dos fundos fica perto de R$ 6 trilhões; o da poupança, de R$ 1 trilhão. Logo, o aumento dos depósitos na poupança foi brutal.

Faça-se um exercício muito simples do que “tem para gastar” no país, poupado em cadernetas, opção provável dos mais pobres, que não raro as utilizam como conta corrente. O valor dos auxílios emergenciais e do benefício de manutenção de emprego foi de R$ 49,8 bilhões por mês (média de julho e agosto). Mal e mal, o excesso da caderneta banca o equivalente à renda de três meses de vida sem esses auxílios. Considerado o pagamento dos auxílios de R$ 300, digamos que o “excesso” de depósitos nas cadernetas compensaria a perda de renda até fevereiro.

Questão: as pessoas vão gastar essas e outras reservas? As mais pobres vão. Mas, primeiro, não sabemos quem guardou dinheiro, para começar. Segundo, quem guardou por precaução pode continuar preocupado, pois a epidemia desacelera, mas vai longe. Terceiro, o brasileiro escaldado por sete anos de crise pode ficar na retranca até que veja algum sinal de terra econômica à vista.

Há meses, faz-se a conta de quanto o rendimento do trabalho precisa crescer a fim de compensar o buraco que o fim dos auxílios vários vai deixar no potencial de consumo (os emergenciais, o seguro-desemprego ampliado, os dinheiros para estados e municípios). A poupança extra (o que se deixou de consumir na pandemia) seria um contrapeso, mas essa é apenas uma hipótese aritmética.

Um Renda Cidadã aliviaria a situação de parte dos mais pobres, mas não do consumo em geral, caso seja financiado por cortes em outras áreas. A despiora econômica até agora foi melhor do que a esperada, mas os auxílios começaram a minguar apenas neste outubro, quando a recuperação da renda do trabalho ainda é pequena.

A hipótese do balanço pode dar certo. Se não der, o risco de entrarmos em estagnação precoce ou em parafuso.


Elio Gaspari: Uma tesourada nos supersalários

Teto salarial tem mais buracos do que queijo suíço

A boa notícia foi trazida pela repórter Geralda Doca: a ekipekonômika quer criar recursos para financiar o programa de amparo social impondo um teto salarial para os servidores públicos: R$ 39,2 mil mensais e nem um tostão acima disso. A medida resultaria numa economia de pelo menos R$ 10 bilhões anuais para a bolsa da Viúva. Se essa ideia for em frente, Jair Bolsonaro poderá custear uma parte de seu projeto. Hoje o programa Bolsa Família protege 13,5 milhões de famílias e custa R$ 29,5 bilhões anuais.

O governo é obrigado a respeitar um teto de gastos. No entanto há um teto salarial para os servidores, e ele tem mais buracos do que queijo suíço. Entre setembro de 2017 e abril deste ano, 8.226 magistrados receberam pelo menos um contracheque com valor superior a R$ 100 mil. Em 565 ocasiões, 507 afortunados faturaram mais de R$ 200 mil. Há universidades onde professores sacam salários de R$ 60 mil. Dois ministros de Bolsonaro conseguiram mais de R$ 50 mil mensais.

Ninguém faz coisa ilegal. O reforço tem nomes bonitos: auxílio-moradia, tempo de serviço ou participação num conselho. A ideia do teto salarial está há tempo no Congresso, mas não anda.

O andar de cima de Pindorama tem suas astúcias. O teto real seria ilegal, porque fere direitos adquiridos. É o jogo trapaceado. Os direitos do andar de cima são adquiridos, os do andar de baixo são flexíveis.

Em 1851, Joaquim Breves, dono de grande escravaria e contrabandista de negros, dizia que a repressão ao tráfico ameaçava “a vida e fortuna de numerosos cidadãos, assim como a paz e a tranquilidade do Império”. Para felicidade geral da nação, a 13 de maio de 1888 atentou-se contra a propriedade privada, e aboliu-se a escravidão.

O andar de cima é esperto. Em 1831 o Brasil assinou um tratado com a Inglaterra pelo qual todos os escravizados que chegassem a Pindorama seriam negros livres. Depois do tratado, entraram perto de 800 mil negros escravizados, e até 1850 só oito mil foram resgatados. Desde 1818, a lei determinava que eles prestassem serviços à Coroa por 14 anos. Em 1835 criou-se um sistema de concessão, ancestral das Parcerias Público-Privadas. O magano ia à Coroa, pedia um negro e pagava uma anuidade equivalente ao que o escravizado lhe trazia trabalhando por um mês. Enquanto a PPP durou, foi um negócio da China. Os dois maiores políticos do Império, o Marquês do Paraná e o Duque de Caxias, conseguiram 21 e 22 cada um. Os dois principais jornalistas da época, Firmino Rodrigues Silva e Justiniano José da Rocha, também foram concessionários. A eles se juntaram barões, marqueses, juízes, médicos (inclusive o presidente da Academia Imperial) e parentes da governanta de D. Pedro II. Um desembargador ganhou 14 negros.

Se um fazendeiro do Vale do Paraíba comprasse um escravizado trazido por contrabandistas, comprava um risco. Se um “africano livre” da turma da PPP morresse, bastava pedir outro. Assim cevou-se a elite da Corte. Nela, poucos personagens de Machado de Assis trabalham.

Serviço:

Todas as informações referentes aos escravizados estão no magnífico livro “Africanos livres”, da professora Beatriz Gallotti Mamigonian, e em sua tese de doutorado “To be a Liberated African in Brazil”, que está na rede.


Ruy Castro: Trump, a bomba humana

Não sejamos cínicos. O mundo não torceu pela recuperação dele

Milhões perderam seus empregos por causa do coronavírus. Donald Trump não. A pandemia não obrigou a Casa Branca a fechar as portas. Em consequência, Trump continuou batendo o ponto, recebendo o salário e contando com as benesses de seu cargo, inclusive a de ter sua vida salva.

Não sejamos cínicos. Foi com euforia que o mundo recebeu a notícia de que ele caíra vítima da doença que já afetou 35 milhões de pessoas e cuja gravidade sempre negou. Nada de condolências ou preces hipócritas pela sua recuperação. Multidões torceram para que ele passasse pelos mesmos horrores que nossos parentes e amigos, como o de ser entubado, e, quem sabe, se juntasse ao mais de um milhão de pessoas que o vírus levou. Entre outros motivos, para que alguém menos irresponsável tomasse as rédeas nos EUA e interrompesse o nefasto exemplo que Trump dá a governantes beócios.

Daí o encanto com que acompanhamos a batelada de remédios que os médicos bombearam no seu organismo por uma miríade de orifícios. Trump foi recheado com coquetéis de anticorpos sintéticos, antivirais, melatonina, zinco, aspirinas e antiácidos, associados a quilos de drogas heavy metal como dexametasona, remdesivir e REGN-COV 2, enquanto eles o mantinham respirando com jatos de oxigênio capazes de inflar o dirigível Hindenburg. Só não lhe deram cloroquina porque queriam salvá-lo, não matá-lo.

Com tudo isso, não admira que ele tenha levado apenas três dias para ressuscitar, voltar ao trabalho e jogar fora a máscara. O problema agora é: quem vai proteger a Casa Branca da bomba humana que Trump se tornou, despejando perdigotos por onde passa e atingindo colegas, burocratas, seguranças, faxineiros e até os pobres correspondentes?

Trump declarou que se sente melhor hoje do que "há 20 anos". Mentira. Há 20 anos ele estava apalpando mocinhas em público. Agora já não lhe serve de nada fazer isso.

*Ruy Castro é jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues


Bernardo Mello Franco: Um Nobel para Raoni

O Comitê Norueguês divulgará na sexta-feira o vencedor do prêmio Nobel da Paz. A edição deste ano tem 318 candidatos. Como reza a tradição, a lista completa é mantida em segredo. Nela está o nome do cacique Raoni Metuktire.

O líder caiapó tem cerca de 90 anos de idade. Sabe-se que ele nasceu no início da década de 1930 na antiga aldeia Kraimopry-yaka, em Mato Grosso. Em 1954, conheceu os irmãos Villas-Bôas e virou porta-voz da causa indígena. Tornou-se um dos principais defensores dos povos da floresta.

Raoni virou celebridade global em 1989, quando fez uma turnê ao lado do cantor Sting. Eles visitaram 17 países em busca de apoio a duas bandeiras: a preservação da Amazônia e a demarcação de terras. Antes disso, o cacique já havia ajudado a inscrever os direitos dos índios na Constituição.

No ano passado, o caiapó fez novo giro internacional para denunciar o agravamento das queimadas e do desmatamento no Brasil. Foi recebido pelo Papa Francisco e pelo presidente da França, Emmanuel Macron. O presidente Jair Bolsonaro se irritou com a viagem. Na tribuna da ONU, apelou a um nacionalismo de araque e chamou o líder indígena de “peça de manobra” de governos estrangeiros.

Os ataques do capitão não abalaram o velho cacique. Neste ano, ele enfrentaria desafios muito maiores. Sobreviveu a uma hemorragia digestiva, à contaminação pelo coronavírus e à morte da mulher, Bekwyjkà.

Apesar da campanha a seu favor, Raoni não aparece entre os mais cotados para o Nobel da Paz de 2020. A ativista sudanesa Alaa Salah, o oposicionista russo Alexei Navalny, a Organização Mundial da Saúde e o Comitê para a Proteção dos Jornalistas despontam nas listas de favoritos.

A história de luta do caiapó não é o único motivo para torcer por uma zebra. Nas últimas semanas, Bolsonaro voltou a atacar as demarcações e tentou culpar os índios pela destruição da Amazônia. Um Nobel para Raoni ajudaria a mobilizar o mundo em defesa da floresta e dos primeiros habitantes do Brasil.


Zuenir Ventura: A inveja do ministro

Salles deve se corroer ao comparar sua biografia com a de Chico Mendes

Comentando a possível fusão do Ibama com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), pretendida pelo ministro Ricardo Salles, o leitor Mario Barilá Filho escreve para advertir que é preciso garantir que o nome do líder seringueiro seja mantido na instituição que resultar dessa operação, cujo objetivo seria apagar qualquer memória da luta do ambientalista pela Amazônia, que causou o seu assassinato. “O ódio de Ricardo Salles por Chico Mendes é comparável ao ódio que os grandes fazendeiros sempre sentiram pela Princesa Isabel.”

Na véspera, Bernardo Mello Franco escrevia em sua coluna o artigo “A segunda morte de Chico Mendes”, em que falava também desse desejo de eliminar o nome do seringueiro da estrutura do governo. E lembrava que Salles, com um mês no cargo, classificou o símbolo da luta pela preservação da Amazônia como “irrelevante”. “Que diferença faz quem é o Chico Mendes neste momento?”

Na época, o que mais me chamou a atenção foi o tom de deboche do ministro ao exibir seu ressentimento. Ele não se conformava que a História mantivesse viva a memória de alguém que ele chamava de “irrelevante”. Era preciso promover a segunda morte de Chico Mendes. Só que ele está vendo que foi mais fácil assassinar Chico Mendes do que se desfazer de seus feitos.

Desculpem a autorreferência, mas esse é um tema que me é muito caro, profissional e sentimentalmente. O assassinato de Chico em 1988 foi minha cobertura jornalística mais importante, rendendo para mim o Prêmio Esso, o livro “Chico Mendes —crime e castigo” e a tutela da principal testemunha, um garoto de 13 anos que tive que esconder aqui em casa, no Rio, para não ser assassinado também.

Salles deve se corroer de inveja ao comparar a biografia do “Herói dos povos da floresta”, a quem a ONU considerou um líder global na defesa do meio ambiente, com a de um ministro famoso pelas besteiras que disse e fez. A mais famosa foi propor “passar a boiada” para que ele, enquanto isso, fraudasse a legislação ambiental.

O duro é ele saber que, mais do que irrelevante, ele é danoso.


Fernando Exman: Guedes continua sob ataque especulativo

Modelo de superministérios é alvo de críticas

Brasília enfrenta por estes dias aquela época do ano marcada pela extenuante transição entre a seca e o início da temporada de chuvas. A estiagem chega ao seu ápice, pelo menos do ponto de vista de quem habita a capital federal construída no meio do cerrado, com taxas de umidade relativa do ar que se aproximam dos 10%. A torcida geral é para que qualquer chuvisco seja o prenúncio de um período mais fértil, mas o tempo é traiçoeiro e pode decepcionar os mais ansiosos. Neste clima insistentemente árido se desenrolou o jantar de segunda-feira promovido para reaproximar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro Paulo Guedes, da Economia.

Para quem desejava ter notícias positivas, até que chuviscou. Gestos públicos foram feitos: o presidente da Câmara desculpou-se por chamar o chefe da equipe econômica de “desequilibrado”. Guedes, por sua vez, reconheceu os trabalhos prestados por Maia desde fevereiro do ano passado para assegurar a aprovação de itens da agenda econômica e outros projetos de interesse do governo.

Poucas horas depois do encontro, não se fala em vencedor ou derrotado. O jantar serviu a ambos, que buscavam um reposicionamento no jogo e podem ter percebido que, juntos, têm mais a ganhar neste momento.

Maia andava afastado da cena por causa da covid-19, enquanto Guedes precisava dar um novo lustre à imagem do governo e se reapresentar como interlocutor privilegiado do Executivo com a cúpula da Câmara. O MDB aproveitou a oportunidade para lançar uma boia em direção ao ministro da Economia, antes que Guedes seja arrastado pela correnteza para o alto mar, ao mesmo tempo em que se mostrou um parceiro estratégico de Maia nesta reta final de gestão à frente da Casa.

A mensagem geral foi a defesa do teto de gastos, hoje a preocupação central dos agentes do mercado e dos políticos que passaram a vincular o respeito a esta regra às perspectivas de permanência do ministro da Economia no governo.

O ambiente era propício. O anfitrião era o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU). Junto com Maia, o dono da casa desempenhou um papel central na confecção da proposta de emenda constitucional do Orçamento de guerra, instrumento que flexibilizou as regras fiscais deste ano para viabilizar, por parte do governo, o combate aos efeitos da crise decorrente da pandemia tanto na economia quanto na vida de milhões de famílias.

Dantas é o relator natural dos assuntos relativos à área econômica no TCU, o que lhe confere ainda maior legitimidade para tratar desses temas em contatos reservados ou pronunciamentos públicos. E ele tem se mostrado um defensor do teto de gastos na Corte de Contas, a despeito do assédio de integrantes do governo favoráveis à flexibilização do dispositivo constitucional que se tornou a principal âncora fiscal do país.

Os demais convivas eram principalmente do MDB, o partido que esteve à frente das articulações para a implementação do teto durante o governo Michel Temer. A sigla relata o Orçamento de 2021, a PEC do Pacto Federativo e não hesitará em ocupar os espaços políticos que a conjuntura lhe oferecer.

Ainda é cedo, contudo, para se ter uma nova previsão do tempo de Brasília.

A permanência do ministro da Economia segue sob ataque especulativo - por parte de alas do próprio governo, segmentos do Congresso e setores do mercado. Seu rigor fiscalista é questionado pela ala desenvolvimentista do Executivo, que escorou o presidente Jair Bolsonaro em seu pior momento e o ajudou a estancar as turbulências institucionais entre os Poderes que poderiam se converter num processo de impeachment.

Cessaram as ameaças ao mandato do presidente e, agora, esses setores insistem na ampliação de seus orçamentos e dos investimentos públicos.

No Congresso, a trégua esboçada durante o jantar só será realmente testada quando o ministro e Maia precisarem se sentar à mesa para discutir os temas que os levaram ao rompimento.

Um deles é a reforma tributária e a intenção do Executivo de instituir um novo imposto sobre transações financeiras. Maia sempre foi contra a recriação de uma contribuição nos moldes da antiga CPMF, mas, conforme revelou o Valor, tinha sido procurado por articuladores que tentavam convencê-lo a retirar os obstáculos à discussão do tema. Em contrapartida, o governo concordaria em levar adiante a proposta de reforma tributária por ele defendida.

Então veio o rompimento, quando o governo decidiu adiar as discussões sobre a reforma tributária para depois das eleições municipais. A estratégia interditou não só os trabalhos da comissão mista que trata do assunto, mas também atrapalhou os planos de Maia para a etapa final de seu mandato à frente da Câmara.

De forma inadvertida ou não, Guedes também acabou se intrometendo na disputa pela sucessão de Maia, ao levantar a suspeita de que o deputado teria fechado um acordo com os partidos da esquerda para se reeleger na última disputa. Em troca dos votos, diz o rumor que é rechaçado pelo grupo de Maia e aliados, haveria o compromisso de bloquear a agenda de privatizações do governo.

Quem ficou ofendido pode contra-argumentar que no início de julho Guedes estabeleceu um prazo de até 90 dias para fazer quatro grandes privatizações, mas depois não voltou mais ao assunto.

O ministro e seus auxiliares precisarão enfrentar as críticas que apontam para a pasta da Economia quando se fala do imobilismo do governo nas últimas semanas. Argumenta-se que ficou explícita a falta de contrapontos dentro da equipe econômica, algo que seria fundamental para uma melhor tomada de decisão do chefe do Executivo.

Esses críticos apontam, também, que a saída de Sergio Moro da Justiça e Segurança Pública teria demonstrado a Bolsonaro que a exoneração de superministros gera problemas pontuais absolutamente contornáveis, diante da popularidade pessoal do presidente. O ministro da Economia terá ainda mais problemas, se começar a pregar no deserto.


Bruno Boghossian: Bolsonaro não quer abrir mão de conservadores nem de radicais

Reação do presidente a ataques da ultradireita é sinal político relevante

Sob fogo, Jair Bolsonaro correu para fazer um aceno aos segmentos mais conservadores de seu eleitorado. No púlpito de um templo da Assembleia de Deus, o presidente dobrou a aposta: prometeu nomear para o Supremo no ano que vem não apenas um ministro terrivelmente evangélico, mas um pastor, e sugeriu que as sessões do tribunal deveriam começar com uma oração.

O recado não era direcionado só a líderes e fiéis que acompanhavam o evento, na última segunda (5). Bolsonaro tenta mostrar aos militantes de sua base ideológica mais agressiva que mantém um compromisso com sua agenda, apesar da aproximação do governo com o centrão e da escolha de Kassio Nunes para o STF.

Apesar da aparente troca de pele, Bolsonaro sabe que não pode abrir mão nem dos 30% de brasileiros que se declaram evangélicos, nem dos líderes radicais que mobilizam as franjas dessa base. Não foi coincidência ele ter dito que está especialmente chateado com o pastor Silas Malafaia, autor recorrente de campanhas de mentira e ódio nas redes.

O próprio Bolsonaro se alimentou da fúria e da desinformação para vencer a eleição. É curioso, portanto, que ele tenha se incomodado com as críticas que recebeu nos últimos dias. "Baseado em que fato concreto você critica Kassio Nunes?", perguntou a um seguidor. "Você não procurou fontes sobre todas essas acusações", disse a outro.

Além dos ataques feitos pela base ideológica, a reação de Bolsonaro carrega sinais políticos relevantes. O governo, que já usou o peso de sua máquina para defender militantes radicais no STF, agora também não demonstra interesse em se afastar dos integrantes dessa linha.

O presidente quer manter o apoio de conservadores moderados e conquistar eleitores distantes dos extremos do debate público. Ainda assim, ele se recusa a tratar militantes de ultradireita como marginais. São eles os responsáveis por campanhas de linchamento virtual que ajudam o governo. Bolsonaro sabe que pode precisar deles nos tempos difíceis.


Ricardo Noblat: Bolsonaro infecta o Supremo com a nomeação de Kassio Nunes

Os danos colaterais serão enormes

Algumas perguntas a respeito da surpreendente nomeação do desembargador Kassio Nunes Marques para ministro do Supremo Tribunal Federal já havia sido respondidas. Como o nome dele chegou ao presidente Jair Bolsonaro? Foi levado pelo advogado Frederick Wassef, aquele que escondeu Fabrício Queiroz em sua casa de Atibaia, e avalizado pelo senador Flávio Bolsonaro.

Quem conduziu Kassio pela mão para audiência no Palácio da Alvorada com Bolsonaro? Foi o senador Ciro Nogueira, presidente do Partido Progressista, um dos líderes do Centrão, e alvo de ações da Lava Jato. Kassio apresentou-se como candidato a uma vaga de ministro no Superior Tribunal de Justiça, que é o que ele era. Bolsonaro gostou da conversa e decidiu: “Vai para o Supremo”.

Faltava resposta pelo menos a uma pergunta: por que a pressa de Bolsonaro em nomear Kassio se a vaga do ministro Celso de Mello, o decano do Supremo, se ele só se aposentará na próxima semana? Seria uma descortesia, mas não só. Seria romper com a praxe seguida pelos presidentes anteriores de gastar algum tempo para refletir melhor sobre os nomes de aspirantes à vaga.

Com a descoberta, ontem, de que o currículo de Kassio está impregnado de falsos títulos acadêmicos e de alguns duvidosos, a resposta à pergunta sobre o motivo de tanta pressa parece evidente. Era preciso correr contra o tempo para que o teste do currículo do desembargador não desse positivo para mentiras. A dar, que isso só ocorresse depois de sua aprovação pelo Senado.

Além de Bolsonaro, a operação “Acelera, Kassio!” envolveu dois ministros do Supremo, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, líderes do Centrão como Nogueira, e David Alcolumbre (DEM) presidente do Senado. Gilmar e Toffoli talvez não soubessem dos furos no currículo do seu futuro colega. Avaliaram que ele seria mais um aliado das teses que defendem dentro do Supremo.

Nogueira é conterrâneo de Kassio, ambos do Piauí, e seu amigo. Interessado em cargos onde quer que eles estejam, o Centrão uniu-se a Bolsonaro e compartilha também o seu propósito de desmanchar a Lava Jato. Para tal, a presença de Kassio no tribunal seria mais um voto certo. Alcolumbre… Bem, esse quer se reeleger presidente do Senado e faz o que Bolsonaro lhe pede.

Ainda está por vir muita coisa capaz de criar dificuldades para a nomeação de Kassio. Se não pôde fechar o Supremo como cogitou no final de maio último, sem encontrar apoio nem mesmo entre os militares que o vigiam de perto, Bolsonaro conseguiu infectá-lo com o poderoso vírus da banalização. O que antes era só desprestígio do tribunal agora é de todo o Poder Judiciário.

E com severos danos colaterais a serem registrados no exterior, afinal, Kassio pôs no currículo cursos e títulos fantasmas de universidades de boa reputação. Não se espere, porém, nenhuma reação do Supremo em legítima defesa de sua imagem conspurcada. Falta fibra à boa parte dos seus integrantes, coragem para se insurgir, e sobram receios.

Ah, as fraquezas humanas! Quem não as tem? Dos 11 ministros do Supremo, um cometeu o mesmo pecado de Kassio; outro deve sua indicação à mulher do presidente que o nomeou; outro contou com a colaboração de uma empresa para ser aprovado pelo Senado; outro foi reprovado em concursos para juiz; e outro agradeceu de joelhos à mulher do governador que o ajudou a chegar lá.

Por que Kassio Nunes não pode ser ministro do Supremo

O que a Constituição exige

O desembargador Kassio Nunes Marques, nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro para ministro do Supremo Tribunal Federal, disse ontem a um grupo de senadores, em conversa reservada, que já sabe como driblar os efeitos deletérios da descoberta de que seu currículo está repleto de falsos títulos.

Segundo ele, a Constituição não exige do indicado que seja formado em Direito. Basta que tenha mais de 35 anos, menos de 75, e reputação ilibada. Usará desse argumento para defender-se nos próximos dias. Esqueceu-se de dizer que a Constituição exige também “notável saber jurídico”. E aí está o nó. Ou deveria estar.

“Notável”, segundo os dicionários, é toda pessoa renomada, destacada e famosa por suas obras ou seus feitos. Uma pessoa insigne. Sem a produção de obras ou feitos relevantes ou as duas coisas, não há notabilidade em termos técnicos e jurídicos. Assim entenderam os autores da Constituição em vigor desde 1988.

José Afonso da Silva, o professor de Direito Constitucional mais citado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal em seus votos, ensina em um dos seus muitos livros:

“[…] não bastam, porém, a graduação científica e a competência presumida do diploma; se é notável o saber jurídico que se requer, por seu sentido excepcional, é porque o candidato deve ser portador de notoriedade, relevo, renome, fama, e sua competência ser digna de nota, notória, reconhecida pelo consenso geral da opinião jurídica do país e adequada à função”.

Kassio não tem esse perfil. Ou porque é muito jovem, 48 anos apenas, ou porque se formou muito tarde, a acreditar-se no que ele diz. Ou simplesmente porque não escreveu livros nem é autor de feitos relevantes. Decididamente, sua competência não é reconhecida “pelo consenso geral da opinião jurídica do país”.

De resto, seus poucos e ralos títulos estão sendo contestados pelas entidades que supostamente os conferiram. Precisa mais?