Day: outubro 6, 2020

Ana Carla Abrão: Fraternidade

‘A tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não’

Quando escreveu o Samba da Bênção, há mais de meio século, Vinicius de Moraes, o branco mais preto do Brasil, não imaginaria um mundo tão cheio de ódio e divisão como o atual. Menos ainda uma situação como a que vivemos hoje, em que o isolamento e distanciamento físico se impõem, empurrando a alegria das noites boêmias para o campo de uma memória quase distante.

Mas de tudo, a maior das distâncias entre o Rio de Janeiro de então e o atual que agoniza, afundado em um mar de corrupção e violência, é a da desigualdade social. Mas o Brasil é o Rio de Janeiro. Entre os altos e baixos nos índices de concentração de renda e de redução da pobreza nesses tantos anos, voltamos a piorar e pioramos muito. Exclusão, marginalização e ausência de oportunidades para tantos são as características do Brasil de hoje. Temperadas por intolerância, polarização e a desinformação propagada por fake news.

É sobre tudo isso, ou melhor, sobre o combate a tudo isso que versa a nova encíclica papal. Não por coincidência, a 3.ª encíclica do papa Francisco foi tornada pública no dia em que se celebra São Francisco de Assis, o mais fraterno dos santos cristãos. Fratelli Tutti, a encíclica social recheada de conceitos econômicos, busca mobilizar não só os católicos, mas todas as pessoas do bem, em torno do que há de melhor nas nossas capacidades humanas: o encontro, a convergência, a empatia, a união, a compreensão, a inclusão e a fraternidade. Num mundo tão marcado pelo desencontro, nela o Samba da Bênção ressurge, lembrando-nos que, apesar disso, a vida é a arte do encontro – entre pessoas, entre povos, entre nações. E é desse encontro que um mundo melhor surge.

Embora cometa o erro de usar o termo neoliberalismo de forma excessivamente dogmática, o capítulo V da encíclica destaca a importância de termos políticas melhores. Políticas melhores são aquelas que permitem a geração de emprego, uma melhor distribuição de renda, a inclusão das minorias e o fim das injustiças. Contrapõem-se às ações populistas que visam à perpetuação de grupos no poder e ao interesse individual, lideranças transformadoras que pensam no bem comum e no desenvolvimento econômico e social. Aqui, segue o texto, a grande questão é o trabalho. Ser popular de verdade é dar condições para que todos possam se desenvolver e viver das suas capacidades, iniciativas e forças. Sem negar a importância das redes de proteção social nas sociedades genuinamente fraternas, seu caráter provisório e a necessidade de focalização são um destaque. Da mesma forma, o texto chama a atenção para a degeneração do termo “popular”, por líderes populistas em busca do interesse imediato. Tendo como única finalidade a garantia de votos, responde-se às exigências populares, sem que se avance na árdua tarefa de proporcionar às pessoas as oportunidades e os recursos para o seu desenvolvimento, de forma perene e sustentável.

Não, Fratelli Tutti não foi escrita para o Brasil em resposta à falta de apetite que vemos no governo atual em avançar numa agenda de reformas estruturais que nos devolva a capacidade de crescer e de gerar emprego e renda para uma população que empobrece a cada dia. Não, ela não foi escrita para colocar luz na incapacidade do governo e dos agentes públicos de atacar os privilégios e enfrentar grupos de interesse que jogam o País num impasse diário. Impasse que gera como resultado uma opção distributiva sempre cruel. Ela também não foi escrita para mostrar que a principal motivação para a ampliação do programa universal de renda básica, sem desenho e sem fonte clara de financiamento, é a eleição de 2022 e à custa de um país ainda mais pobre e capturado pelo clientelismo. Ela tampouco visa ao Brasil quando cita a importância da abertura entre os países, do acolhimento dos povos, da importância da sustentabilidade ambiental. O mesmo vale para o horror crescente que são a intolerância, o fomento ao ódio ou à agressividade que tomaram conta do debate. Não, ela não foi escrita para o Brasil, mas foi.

Fratelli Tutti clama por fraternidade e método. Fraternidade com método significa estabelecer relações pessoais, institucionais e de política pública que tenham por objetivo o bem comum e a proteção da democracia. Incluir, tolerar, reduzir as diferenças sociais, gerar oportunidades para todos e trabalhar por um mundo melhor é ser fraterno. No Brasil, infelizmente nunca estivemos tão distantes disso. Hoje somos mais intolerantes, menos fraternos e também mais desiguais. E por isso mesmo, mais tristes. Que o Samba da Bênção, que é só fraternidade, continue nos lembrando que “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não”.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman


Míriam Leitão: Novo entrave na reforma tributária

Por Alvaro Gribel (interino)

A notícia de que o governo estuda acabar com a declaração simplificada do Imposto de Renda para financiar o Renda Cidadã já é um novo entrave na reforma tributária. Ontem, em audiência na Comissão Mista do Congresso, o secretário da Receita, José Barroso Tostes Neto, e a assessora especial do Ministério da Economia, Vanessa Canado, se recusaram a responder perguntas dos deputados e senadores que queriam saber detalhes da proposta. Se a Comissão já tinha dificuldades em avançar, ganhou mais um ponto de incerteza e discórdia.

“Vamos nos limitar a falar sobre os tributos sobre consumo”, justificou Vanessa Canado, referindo-se à primeira fase da proposta encaminhada pela equipe econômica há mais de dois meses. Ao mesmo tempo em que o governo não conclui o projeto, deixa vazar estudos para financiar o programa de assistência social com ideias que deveriam estar na reforma tributária.

A grande questão é: como financiar o Renda Cidadã? O governo tem três opções. Tira de alguém, aumenta tributos ou se financia no mercado, ampliando o déficit. Em cada uma delas, há consequências. Ampliar o déficit significa perder apoio do mercado, com disparada do dólar, queda da bolsa e encarecimento da dívida. Aumentar imposto, ou reduzir subsídios, vai mexer diretamente com o bolso das famílias ou das empresas. E fazer a consolidação de outros programas sociais nada mais é do que tirar de quem precisa para dar a quem também precisa. Ontem, como revelou O GLOBO, falou-se em cortar dos supersalários, o que demandaria comprar briga com a elite do funcionalismo.

Depois de encontro com o ministro Paulo Guedes, pela manhã, o relator do Orçamento, Márcio Bittar, prometeu para quarta-feira a divulgação da fórmula. Disse que será “dentro do teto”. Vindo de quem chamou de “hipócritas” os que criticaram a postergação do pagamento de precatórios, pode-se esperar qualquer coisa.

Na reforma tributária, ainda são muitas as discordâncias, segundo o secretário José Tostes. “Temos feito dezenas de reuniões com os estados, avançamos em alguns pontos, mas não conseguimos avançar em relação aos temas dos fundos, do comitê gestor, da transição para o novo tributo, imposto seletivo e o Simples”.

Em live semanal da Arko Advice, uma das consultorias mais ouvidas pelo mercado financeiro, o cientista político Murilo de Aragão brincou que o governo Jair Bolsonaro parece um carro velho, pois “faz muito barulho e anda pouco”. Sobre a reforma tributária, disse que ela “respira por aparelhos” e não vê possibilidade de aprovação de nenhum projeto relevante até a sucessão nas presidências da Câmara e do Senado, em fevereiro do ano que vem. Ao que tudo indica, o ano de 2020 já está perdido.

Ganha, mas não leva

Donald Trump é o candidato do mercado financeiro nas eleições dos EUA e sobre isso não há dúvidas. Ontem, após a saída do hospital, as bolsas subiram e o dólar se enfraqueceu no mundo, com aumento da confiança. Mas há investidores que já começam a ficar com a pulga atrás da orelha com a possibilidade de o presidente conseguir a reeleição, mas perder o comando das duas Casas. Hoje, os republicanos controlam o Senado mas desta vez a maioria pode ser democrata. Nesse caso, uma vitória de Joe Biden poderia ser bem recebida, pela maior chance de governabilidade, tendo o Congresso ao seu lado.

Baixo volume

Apesar da alta de 2,2% do Ibovespa, o volume de negócios continua baixo. Nos últimos 21 pregões, não chegou a R$ 20 bi, o que significa um clima de cautela. Ontem, mesmo com a valorização, foram negociados apenas R$ 17,8 bi em papéis. O risco de furar o teto fez voltar o temor de um novo rebaixamento do rating brasileiro no final do ano. Até a quinta-feira, última estatística disponível, os investidores estrangeiros retiraram R$ 88,27 bi da bolsa.

Sobrou para o café

A política ambiental do governo Bolsonaro põe sob desconfiança até quem não tem mais relação com o desmatamento. A ONG Rainforest Alliance Brasil, que certifica fazendas exportadoras de café com o selo sustentável, foi consultada por compradores europeus para saber se o setor cafeeiro tem derrubado florestas no Brasil. Se no passado o café foi o grande vilão, hoje esse papel está com a soja e a pecuária. “O café no Brasil não é hoje um problema de desmatamento. Primeiro que ocupa uma área relativamente pequena, depois porque está em áreas consolidadas há muito tempo”, disse Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas.


Andrea Jubé: Cuidado com a onça!

Para Renan Calheiros, “só a política dirá o que é possível fazer”

A “velha política” enfrentou revezes na eleição que consagrou Jair Bolsonaro e o bolsonarismo. Notórios caciques foram varridos das urnas, enquanto outros se enroscaram na Lava-Jato.

Mas o mundo dá voltas, e dois anos depois, são os velhos caciques que voltam a dar as cartas e ditar o ritmo do jogo.

Eleito com a bandeira da antipolítica, o presidente Bolsonaro nem titubeou: quando o cerco apertou, com a abertura de três inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) que emparedam a ele e seus aliados - e tendo a prisão de Fabrício Queiroz como estopim -, ele repetiu seus antecessores e escolheu o lado certo onde se acomodar.

O presidente seguiu a máxima preconizada pelo decano dos decanos na política, o ex-presidente do Senado e do MDB Jader Barbalho: “Caititu, se andar fora do bando, vira comida de onça”. Em bom português: isolamento em política é sentença de morte.

É por isso que Bolsonaro uniu-se à velha política, e a velha política uniu-se a Bolsonaro.

A sequência de jantares entre autoridades dos últimos dias é a prova de que a lição de Jader não prescreveu: ninguém quer ficar à deriva. Na batalha naval, navio que sai da esquadra é o primeiro a ser abatido.

Ontem o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas abriu a casa para um jantar de tentativa de reconciliação entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), num esforço coletivo para evitar o naufrágio da agenda econômica num cenário de caos fiscal.

É certamente singular que os idealizadores do evento sejam o senador Renan Calheiros (MDB-AL), três vezes presidente do Senado, e o ex-senador e ministro do TCU, Vital do Rêgo.

“Qualquer crise tem que ser resolvida com conversa. Só a política dirá o que é possível fazer”, disse Renan à coluna, sobre os arrufos entre Guedes e Maia.

Renan é professor, enquanto o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), virou seu aluno nas coxias. Egresso do baixo clero, Alcolumbre elegeu-se com o discurso de que mudaria “tudo isso que está aí”. Caiu nas graças do “Muda, Senado”.

Menos de um ano depois, assim como Bolsonaro, caminhava de braços dados com os decanos do Senado. Porque, ao fim e ao cabo, “quem sabe, faz”. Política não é ofício para amadores. E o próprio “Muda, Senado” está em declínio.

Renan perdeu a eleição para o quarto mandato à frente do Senado, mas não perdeu a destreza na articulação. Depois de um período de isolamento forçado em sua fazenda em Murici, Alagoas, para fugir da pandemia, e após submeter-se a uma cirurgia para retirada de nódulo benigno do rim em São Paulo, Renan é navio que retornou à esquadra.

O ex-presidente do Senado estava perdendo terreno para seu adversário histórico em Alagoas, o líder do Centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL) - pule de dez do Planalto para a sucessão de Rodrigo Maia na Câmara. Como num jogo de tabuleiro, Lira vem expandindo seus domínios: depois de se instalar no gabinete presidencial, abriu espaço para que seu correligionário, o deputado veterano Ricardo Barros, se consolidasse na liderança do governo.

O decano Renan, num piscar de olhos, reagiu e agora se articula para virar patrono da reconciliação de Guedes e Maia.

Depois da alta hospitalar, Renan e a senadora Kátia Abreu (PP-TO), uma de suas fiéis aliadas - e voto declarado na reeleição de Alcolumbre -, reuniram-se com Guedes no último dia 24. Sondaram o terreno para a reconciliação.

Foi preciso esperar a recuperação de Maia, em isolamento compulsório pelo coronavírus. (Olha a onça!)

Ultrapassado o risco de transmissão da covid-19, Renan e Vital encontraram-se com Maia no último sábado. Receberam o sinal verde do presidente da Câmara para organizar o jantar com Paulo Guedes. Bruno Dantas, ligado a Renan, seria o anfitrião.

Maia foi receptivo ao encontro com Guedes. Como mostrou o Valor hoje, interessa a Maia dar fôlego à agenda de reformas em seus últimos meses no comando da Casa. A reforma tributária votada, ao menos na Câmara, é a ambição de Maia.

“É uma briga inútil, não serve pra nada, é perde, perde”, definiu Renan, em conversa com a coluna, sobre o entrevero entre Maia e Guedes. “Eu me coloquei à disposição para selar as pazes”, disse o senador, esclarecendo que tudo que lhe interessa é uma “agenda mínima de reformas, com responsabilidade fiscal”.

Guedes e Maia nunca se bicaram. Mas a política fabrica relações para as quais Deus torce o olho. Em novembro de 2018, antes da posse de Bolsonaro, Guedes declarou que bastava dar “uma prensa” no Congresso para que a reforma da Previdência fosse aprovada. De lá para cá, foi uma sucessão de aspas desastradas. Mas a política é feita com pragmatismo, e não com o fígado.

Por isso, há esperança de reconstrução das relações após o jantar de ontem idealizado por Renan. “Espero que a conversa seja produtiva”, emendou o senador.

A pauta-desejo de Renan contempla a reforma tributária, a eliminação de “subsídios ineficientes e de salários acima do teto no setor público”, uma alíquota diferenciada para quem ganha acima de R$ 50 mil. “Só a politica pode fazer esses balizamentos”, defendeu Renan.

Discípulo de Jader Barbalho, nem Bolsonaro quis saber de isolamento, com medo de virar comida de onça. Somente na última semana, ele jantou duas vezes com o ex-presidente do STF Dias Toffoli. Uma das refeições foi na residência do ministro Gilmar Mendes.

Com três inquéritos assombrando a família Bolsonaro, o presidente quer andar em bando também no Supremo Tribunal Federal. Um deles será a despedida do decano Celso de Mello do STF, que relata o caso.

Mello sustenta que Bolsonaro tem de prestar depoimento pessoalmente à Polícia Federal porque é investigado na denúncia formulada pelo ex-ministro Sergio Moro. Significa na prática impor um constrangimento ao presidente da República.

Nessa conjuntura, expoentes da ala extremista, como Olavo de Carvalho e Sara Winter, protestaram nos últimos dias contra os movimentos de Bolsonaro para outras bandas. Olavo e Sara que se cuidem: vão virar comida de onça.


El País: Sem rumo na economia, Bolsonaro costura arranjos frágeis e mantém rota de colisão com Guedes

Gestão sofre crises periódicas com embates do ministro, que perdeu a confiança plena do Planalto, com Marinho e Maia. Jantar sela tentativa de trégua com o presidente da Câmara

A falta de rumo do presidente Jair Bolsonaro na condução da política econômica de seu Governo tem produzido crises periódicas, a conta-gotas. A emergência sanitária do coronavírus aprofundou os titubeios de Bolsonaro em relação à política de seu ministro Paulo Guedes num momento em que o presidente começa a ouvir outros conselheiros econômicos, mas não parece, ainda, decidido a rifar o economista que o ajudou a chegar ao poder. Auxiliares do mandatário dizem que, ainda nesta semana, ele deverá fazer declarações públicas para demonstrar que há unidade de pensamento entre o Planalto e a Economia. Ainda que o faça, será como usar um esparadrapo para conter uma hemorragia.

O motivo é que os impasses de fundo permanecem. Em jogo está a manutenção do teto de gastos públicos, uma promessa de Guedes que parece cada vez mais sob ameaça se não houver novos impostos ―algo a que Bolsonaro e boa parte de seus aliados se opõem. Está em jogo também, e principalmente, o financiamento do Renda Cidadã, um novo programa que pretende substituir o Bolsa Família como uma marca que Bolsonaro quer deixar na área social. O Governo não chega a um acordo sobre de onde viriam os recursos para bancá-lo. Todas as tentativas lançadas como possíveis anteriormente ―como o uso de verbas de precatórios, dos recursos do Fundo da Educação Básica ou a extinção de outros programas sociais― foram prontamente rechaçadas pelo Congresso e por atores do mercado financeiro.

É neste panorama já pantanoso que o ministro da Economia fez inimizades na Esplanada, de seu colega de gabinete, Rogério Marinho (Desenvolvimento), ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Na noite desta segunda-feira, Guedes e Maia reuniram-se para selar um armistício, depois de ambos se atacarem em discursos públicos. Guedes havia se queixado que o parlamentar não tinha comprometimento com a agenda econômica, teria se aliado à esquerda e interditado a agenda de privatizações. Maia, por sua vez, respondeu, chamando o ministro de “desequilibrado”.

Após um jantar na casa do ministro do TCU (Tribunal de Contas da União), Bruno Dantas, no entanto, ambos fizeram promessas de uma nova relação. Maia pediu desculpas a Guedes, reconhecendo ter sido “grosseiro” com o ministro ao longo das últimas semanas - “a única pessoa do governo que me apoiou” na eleição para o comando da Câmara, segundo ele. Já o ministro disse que os embates não foram “ofensas pessoais”, mas sim “trocas de opinião”. Mas ressaltou que "eu, caso eu tenha ofendido o presidente Rodrigo Maia ou qualquer político que eu possa ter ofendido inadvertidamente, peço desculpas também”, disse Guedes.

Esta foi a segunda vez que ambos tiveram de reatar o relacionamento. A primeira foi em março do ano passado, por conta da condução da reforma da Previdência, que acabou aprovada mais por dedicação do Legislativo do que do Executivo.

Maia já deixou claro que prefere tratar das negociações com o Executivo diretamente com o ministro-general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo. Para o parlamentar o que também está em jogo é a sua sucessão na presidência da Câmara. Ele quer fazer seu sucessor, enquanto que o Centrão, grupo de partidos de centro-direita que é a sustentação de Bolsonaro na Câmara, quer ter seu próprio candidato.

Maia, assim como o ministro, apoia o teto de gastos, o mecanismo orçamentário que impede uma despesa maior que a do ano anterior. Dificilmente o presidente da Câmara ou um sucessor apoiado por ele patrocinariam uma flexibilização do teto para votação na Câmara. Já um nome do Centrão poderia fazê-lo, conforme a temperatura do Legislativo ou a sinalização de Bolsonaro, que sabe que em 2021 terá, sim, de investir mais recursos públicos, sob o risco de manter o país em recessão por causa da pandemia de coronavírus e de olho na campanha de reeleição.

O pragmatismo que o presidente teve para se contrapor à sua base de apoio para se aproximar dos deputados do Centrão ou para garantir certa tranquilidade no Judiciário, com a nomeação de Kássio Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal, não tem se traduzido, até o momento na agenda econômica. “Para além de disputas individuais, uma parcela da razão desses conflitos é a falta de liderança do presidente em encaminhar a agenda econômica”, analisou o cientista político e sócio da Tendências Consultoria, Rafael Cortez. “Falta coesão entre os grandes tomadores de decisão. A busca pelo meio termo é cada vez mais difícil. É nessa hora que o presidente deve exercer o seu papel”, segue ele.

Se não bastassem as críticas vindas do Congresso a Guedes, ainda há o “fogo amigo” disparado pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Ex-secretário especial da Previdência subordinado a Guedes, ele falou para um grupo de economistas e investidores que seu antigo chefe era um “grande vendedor” e que estaria surpreendendo negativamente autoridades de Brasília. Apesar de discursar em outro sentido, Bolsonaro a confiança de Bolsonaro em Guedes está desabando.

“Os discursos do ministro Guedes não têm mais a mesma credibilidade do início do Governo. E, depois de acabar com o pilar do combate à corrupção com a saída de Sergio Moro da Justiça, agora, Bolsonaro está acabando com o seu pilar econômico”, disse o deputado Paulo Ganime, líder do Novo, partido que tem votado essencialmente com o Executivo no Congresso.

Antes considerado superministro, Guedes tem visto seu poder diminuir a cada dia. Em um ano e nove meses de Governo, ele perdeu a metade de sua equipe de assessores e não entregou quase nada do que planejava. Entre as promessas, estão as reformas tributárias e administrativas, além do pacote de privatizações. Na Esplanada dos Ministérios e no Congresso Nacional circula que ele não foi demitido ainda por duas razões: falta um nome de consenso para substituí-lo e Bolsonaro teme uma forte perda do apoio do mercado financeiro. “Guedes tem sido visto como uma pessoa que prometeu mundos e fundos, mas não entrega porque não tem competência política para entregar”, afirmou o economista e professor da Universidade de Brasília, José Luís Oreiro.

Se cair nas próximas semanas, o que ninguém crava ainda que irá acontecer, Guedes não será o primeiro a perder o posto diante de tantas críticas internas. No Governo Dilma Rousseff (PT), em 2015, Joaquim Levy deixou o ministério da Fazenda após embate com o seu colega do Planejamento, Nelson Barbosa, que acabou o substituindo. Na gestão Fernando Henrique Cardoso, em 1999, o presidente decidiu bancar Pedro Malan na Fazenda, quem caiu foi quem entrou em rota de coalizão com ele, o então ministro do Desenvolvimento, Clóvis Carvalho.


Cristina Serra: Massacre no Chico Mendes

Não tem como dar certo a fusão do Ibama com o ICMBio

Faça um esforço de imaginação. Pense que o governo convocou especialistas em biodiversidade, restauração florestal e gestão de parques nacionais para planejar o policiamento das ruas de São Paulo. A chance de dar certo é zero. Da mesma forma, não tem como dar certo a comissão formada por Ricardo Salles para estudar a fusão dos dois órgãos executivos mais importantes do Ministério do Meio Ambiente, o Ibama e o ICMBio. A menos, é claro, que dar certo neste caso signifique a ruína definitiva da proteção ambiental.

Dos sete integrantes do grupo, cinco são oriundos da Polícia Militar paulista. Um deles esteve envolvido no massacre do Carandiru. Em 1992, 111 detentos foram mortos quando a PM tomou o presídio para conter uma rebelião. Outro coronel foi dirigente da Rota, violenta tropa de elite da mesma PM. É nas mãos dessa gente que está o futuro do meio ambiente.

Ibama e ICMBio tem funções diferentes e complementares. O primeiro é responsável pelo licenciamento de empreendimentos econômicos com impacto ambiental e pela fiscalização para impedir crimes, como garimpo e desmatamento, atividades que cresceram exponencialmente sob a dupla Salles/Bolsonaro. O ICMBio cuida do nosso imenso patrimônio natural em 334 unidades de conservação, como parques nacionais e reservas biológicas, além da proteção das espécies ameaçadas de extinção.

A tal comissão criada para discutir "sinergias" entre os dois órgãos é jogo jogado. O objetivo é extinguir o ICMBio, que homenageia em seu nome o seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988, a mando de fazendeiros, no Acre. Em entrevista ao programa Roda Viva, logo que assumiu, o ministro disse considerar o ambientalista "irrelevante".

Não importa o que faça, Salles não conseguirá apagar a memória de Chico Mendes, reconhecido mundialmente como um herói que deu sua vida pela defesa da floresta. Já o ministro, por seus atos de lesa-natureza, terá como destino, ele sim, a irrelevância e a lata de lixo da história.


Pablo Ortellado: Pesquisadores veem risco de violência política na eleição americana

Um em cada cinco americanos que se identifica como democrata ou republicano considera justificado o uso de violência se o seu partido perder

Cientistas sociais de diferentes instituições de pesquisa dos Estados Unidos perceberam que investigavam em paralelo a aceitabilidade da violência política por cidadãos com forte identidade política.

Quando reuniram seus bancos de dados, descobriram que o país vive uma onda crescente de aceitação da violência política, o que pode culminar em uma explosão caso o resultado das eleições presidenciais seja contestado por uma das partes.

Em artigo no site Politico, os pesquisadores apresentaram números preocupantes: em setembro de 2020, cerca de um terço dos americanos que se identificam como democratas ou como republicanos considerava justificado o uso da violência para atingir objetivos políticos (33% dos democratas e 36% dos republicanos). O índice era de apenas 8% em 2017, passou para 12% em 2018, depois para 15% em 2019 e dobrou para 30% em junho de 2020, no contexto dos embates entre conservadores e progressistas nos protestos do Black Lives Matter.

Os pesquisadores estão particularmente preocupados com dados que sugerem que cada episódio de violência política torna mais aceitável violência adicional, num ciclo vicioso perigoso: logo após um episódio de violência política, a aceitação geral da violência parece subir.

Nos últimos meses, ações armadas dos dois campos resultaram em morte. Em agosto, dois ativistas do Black Lives Matter foram mortos a tiros por um apoiador da ação da polícia na cidade de Kenosha. Quatro dias depois, um militante de extrema direita foi morto a tiros por um ativista antifascista em Portland.

Além dessas mortes, casos de agressão se espalharam por todo o país no contexto dos protestos.

Episódios de violência armada também aconteceram em protestos contra as políticas de isolamento social, como as diversas invasões da Assembleia Legislativa de Michigan por ativistas de extrema direta pesadamente armados.

O dado mais preocupante descoberto pelos pesquisadores mostra que um em cada cinco americanos que se identificam como democrata ou como republicano considera bastante justificada a violência se seu partido perder as eleições presidenciais, em novembro (20% dos republicanos, 19% dos democratas).

Quanto mais forte a identificação partidária, maior essa abertura à violência.

Como Donald Trump insiste que o voto pelo correio pode levar a uma fraude eleitoral, e Hillary Clinton recomendou ao candidato democrata Joe Biden não reconhecer a derrota se o resultado for apertado, os pesquisadores acreditam que sua preocupação com uma explosão de violência em novembro é bastante pertinente.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Bernardo Mello Franco: O ministro tubaína e os descontentes

Não convém esperar muito de Kassio Nunes Marques, escolhido para substituir o decano Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. O desembargador foi apadrinhado por Flávio Bolsonaro e pelos próceres do centrão. Antes de passar pela sabatina no Senado, submeteu-se a um beija-mão na casa do ministro Gilmar Mendes.

O presidente Jair Bolsonaro fez questão de deixar claro: Marques deve a indicação à amizade, não ao saber jurídico. “Ele já tomou muita tubaína comigo, tá certo?”, disse, na quinta-feira. A frase não lustra a biografia do futuro ministro. Apenas sugere que o capitão conta com sua obediência no Supremo.

Até aqui, o maior trunfo do desembargador são os descontentes. Sua escolha irritou os seguidores mais radicais de Bolsonaro. Gente que despreza a democracia e esperava ver outro fanático no tribunal.

Silas Malafaia, o pastor boquirroto, considerou a indicação um “absurdo vergonhoso”. “É uma decepção geral”, resumiu. Sara Inverno, a extremista de tornozeleira, sentiu-se abandonada pelo Mito. “Não reconheço Bolsonaro. Não sei mais quem ele é”, dramatizou.

Olavo de Carvalho, o astrólogo da Virgínia, incitou sua tropa contra “o tal Kassio”. “Não tenho culpa de ser brasileiro, mas da vergonha não estou conseguindo escapar”, tuitou. Outros aliados usaram as redes do presidente para protestar.

As respostas mostraram que Bolsonaro deseja ter um pau-mandado no Supremo. Ele chegou a antecipar o voto de Marques sobre o direito das mulheres a interromper a gravidez. “Kassio é contra o aborto (votará contra a ADPF 442 caso seja pautada)”, escreveu. “Está 100% alinhado comigo”, acrescentou.

Os bolsonaristas de raiz não são os únicos insatisfeitos com o ministro tubaína. Sua indicação também decepcionou personagens que rastejavam pela vaga no Supremo. É o caso do procurador Augusto Aras, que se comporta como advogado do governo, e do ministro João Otávio de Noronha, que soltou Fabrício Queiroz. Agora os dois terão que engolir a frustração em silêncio.


Ricardo Noblat: Receita de coronavírus à italiana

Sem perder o medo

Mesmo que o assunto os aborreça, prezados leitores, sinto-me obrigado por razão de consciência a lembrar que a pandemia da Covid-19 ainda não foi debelada, talvez não seja tão cedo, se é que um dia será debelada. Nem mesmo o surgimento de vacinas a serem lançadas em breve garante imunização para sempre.

Celebremos o fato de que o pior já passou, pelo menos é o que parece. A primeira morte por coronavírus no Brasil aconteceu em 12 de março. Foi de uma mulher de 57 anos, em São Paulo. Em 5 de agosto, o Ministério da Saúde informou que 1.437 pessoas haviam morrido nas últimas 24 horas e 57.152 infectadas.

A média móvel de mortes nos últimos 7 dias foi de 659. É o 13º dia seguido com essa média abaixo da casa dos 700. Mesmo assim o país registrou 398 mortes pela Covid-19 nas últimas 24 horas, o equivalente à lotação completa de dois Boeings 737-800. É de 146.773 o total de óbitos desde o começo da pandemia.

O fantasma da segunda onda do coronavírus já assombra a Europa. E a Itália, que viveu momentos trágicos no primeiro semestre do ano, é apontado como o país que aprendeu a lição e que está pronta para enfrentar o que virá. O primeiro ingrediente da receita italiana foi a rigidez do isolamento que, aqui, nunca foi para valer.

O segundo ingrediente, a gradual volta à normalidade, com grupos de atividade econômica divididos para que fossem criadas as regras de segurança de cada setor. O terceiro: o grande número de testes com rastreamento de casos. E o quarto: o período de quarentena obrigatória fixada em 14 dias, e não em sete.

Todo mundo usa máscara, e a multa é absurda para quem desrespeitar a ordem. Os estádios estão reabrindo aos poucos, assim como as escolas. Os concertos seguem proibidos. O maior aliado dos italianos é o medo.

Está tudo ficando numa boa para Bolsonaro

Um ano inesquecível para ele

Está tudo ficando numa boa para Bolsonaro, e a continuar assim, mesmo com pandemia, este ano terá sido melhor para ele do que foi 2019. Aquele abraço efusivo no ministro Dias Toffoli, seguido por generosas fatias de pizza regadas a vinho de boa marca, acabou por selar a paz entre o presidente e o Supremo Tribunal Federal.

Quem ouviu falar mais do inquérito das fake news aberto por Toffoli e conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes que fechara o cerco ao gabinete do ódio comandado de dentro do Palácio do Planalto pelo vereador Carlos Bolsonaro, o Zero Dois? Nem do inquérito, nem do gabinete do ódio que, por enquanto, hiberna.

O presidente e o tribunal passaram o pano sobre a ocasião em que o país esteve à beira de uma crise institucional. Foi no final de maio último quando a Polícia Federal saiu à caça de bolsonaristas radicais, esculachou alguns e prendeu outros. Bolsonaro convocou sua tropa e ameaçou pôr o Supremo em recesso.


José Casado: Xeque de Xi em Bolsonaro

Nunca o Brasil esteve tão dependente da China

Jair Bolsonaro começa a perceber que fez um mau negócio ao se meter na guerra econômica dos Estados Unidos contra a China.

Apostou num tratado de comércio com Donald Trump. Fracassou. No melhor cenário, vai chegar ao meio do mandato com um acordo de compra de material bélico nos EUA e “facilidades” de vistos para empresários.

Idealizou uma “reinvenção do Brasil” à sombra de Trump, na definição do burlesco e inepto chanceler Ernesto Araújo, e hostilizou o Partido Democrata, que controla a Câmara. O troco veio num documento público: “Nos opomos firmemente a qualquer tipo de acordo comercial com o governo Bolsonaro”. A frase dá a dimensão das dificuldades num eventual governo Joe Biden.

Amadorismo diplomático custa caro. Bolsonaro ajudou a propagar ideias hostis aos chineses, como o “comunavírus”. Acreditou na ficção da “nova ordem” à margem da China, a potência emergente. Mas, no meio da guerra de Trump contra o “exército tecnológico de 5G” da Huawei, apelou ao líder Xi Jinping por socorro para viabilizar um leilão de petróleo.

Em silêncio, Pequim mudou de tática. Um ano depois, o xeque de Xi: nunca o Brasil esteve tão dependente da China. Entre janeiro e agosto aumentaram em 14% as compras chinesas no mercado nacional. As vendas totais aos EUA caíram 32%.

Hoje, Pequim é destino de 40% das exportações do agronegócio. É o maior cliente e, também, o comprador quase exclusivo (72%) de soja. As aquisições de alimentos já superam em US$ 5 bilhões a soma das compras feitas por EUA, América Latina, Europa, África e Oriente Médio. A trading estatal chinesa Cofco prevê aumento de importações em 5% ao ano durante a próxima década.

Bolsonaro ficou prisioneiro no front da guerra EUA-China. Terá de decidir se aceita a tecnologia 5G da Huawei. É escolha política com consequências, como nas questões ambientais do acordo Mercosul-União Europeia. Começa a descobrir a falta que faz a diplomacia profissional na condução da política externa.


Carlos Andreazza: Já era

O governo é covarde porque, querendo flexibilizar o teto de gastos, deveria liderar o debate

O teto de gastos já era. Ao menos como o conhecemos, já era. Questão de tempo até que sua revisão se imponha. Aquele teto assentado no governo Temer, em tempos (agora sabemos) de paz: já era. O mar virou. Está dado. A flexibilização virá. Já era. E também Paulo Guedes, o flexível: já era. (Isso, claro, se tiver sido algo — que não fachada liberal-reformista para o estelionato eleitoral bolsonarista — alguma vez neste governo.) Se fica ou não, é irrelevante. Hoje: irrelevante. Para algum efeito produtivo: irrelevante. Trata-se de um ministro da Economia —de um gigantesco Ministério da Economia — publicamente esvaziado de qualquer poder político. Já era.

Para Jair Bolsonaro, contudo, é bom — ainda bom — que fique. Menos por enganar algum crente retardatário na viabilidade de um projeto de poder reacionário, que se expande abrindo as velas pragmáticas do populismo, abarcar um programa de reformas estruturais do Estado. E mais por ser Guedes — minion que é — um batalhador apaixonado, operário mesmo, testando ao máximo a elasticidade de sua cervical liberal, pela reeleição do presidente; o seu problema, este também dado, consistindo em incompetência, em incapacidade para entregar.

Daí por que perdeu o Renda Brasil — programa a cuja formulação se agarrara como maneira de sustentar algum protagonismo competitivo. Perdeu. Bolsonaro lhe tirou esse último trampolim, também talvez o chão derradeiro. Ninguém precisa ser um trabalhador — o presidente nunca foi — para identificar alguém ruim de serviço.

Ninguém precisa ser um trabalhador para reconhecer alguém esforçado, que veste a camisa. Alguém — ainda — útil. Guedes, este útil abnegado, então convertido em mero tocador de boi de piranha; o animal lançado ao sacrifício sendo algum entre seus secretários, estimulados a propor ideias colocando a cabeça não na janela do debate público, mas na linha da guilhotina, ou um parlamentar que, seduzido pelos holofotes, aceite ser balão de ensaio para propostas esdrúxulas de como financiar o ex-Renda Brasil.

Guedes, tocador de boi de piranha — se com sorte. Se não for ele mesmo o próprio bicho. Questão de tempo.

Fato é que o teto de gastos já era. Fato é que o Renda Cidadã virá. E que é o governo o principal agente — embora oculto —para que assim seja. Para que um amontoado de impasses se arraste até o final do ano, o país pressionado pelo fim do auxílio emergencial, até que do Congresso venha o consenso de que só se poderá custear o segundo reformando o primeiro. Sobre o Parlamento recaindo, mais uma vez, todo o ônus político do que, para o ente mercado, será movimento de irresponsabilidade fiscal.

O desgaste de conceber e viabilizar políticas públicas pesando no lombo do Congresso. A colheita dos dividendos eleitorais a ser novamente de Bolsonaro. Padrão.

O Planalto investe na projeção de um fato consumado. Estabelece a demanda. Os milhões assistidos pelo auxílio emergencial. Define a agenda. O Renda Cidadã virá para não desassistir os pobres depauperados pela peste. Então, controla os tempos da crise, já crispados por um calendário espremido por eleições. Manipula a seu favor a convenção social — por mais gastos — decorrente das exigências econômicas de uma pandemia. Induz às sinucas. Faz circular várias formas — absurdas — de bancar a demanda. Interdita as factíveis, por impopulares — ou por mexerem com interesses corporativistas. Desincumbe-se da carga — do prejuízo —das escolhas inerentes a administrar. E empurra a responsabilidade — a solução — ao Legislativo. Padrão.

Um governo covarde. Que avançou para uma etapa em que já nem mais bota a cara. Que quer e terá um Bolsa Família para chamar de seu; mas lavando as mãos sobre como incrementá-lo. Que dá palanque a um senador como Marcio Bittar, relator do Orçamento, planta nele a ideia estúpida de financiar o programa por meio de calote a dívidas da União já transitadas em julgado, endossa — ladeando-o — o anúncio do que seria a solução, colhe a reação desejada, que interdita mais uma possibilidade, e então descarta a suposta alternativa que não apenas apoiara, como fornecera.

O governo é covarde porque, querendo flexibilizar o teto de gastos, poderia — deveria — abrir e liderar o debate sobre sua revisão. Talvez seja mesmo necessário. A discussão seria fundamental. O governo é covarde porque, querendo rever o teto de gastos, prefere — em campanha eleitoral permanente — rolar prerrogativas, jogar com a (vaidosa) independência de outro Poder e lhe parasitar as iniciativas.

É questão de tempo, pois, até que o Parlamento comande a costura por um novo teto de gastos. Questão de tempo. Improvável, no entanto, que seja sob a presidência de Rodrigo Maia. Caso irônico em que o ex-rigoroso Guedes —ora a dizer que a manutenção do teto representa sua última fronteira —deveria agradecer ao presidente da Câmara por ter ainda desculpa para dissimular seu bolsonarismo essencial.


Eliane Cantanhêde: O último a saber

Na guerra do ‘desequilibrado’ com o ‘despreparado’, Bolsonaro esquece Guedes

O presidente Jair Bolsonaro desautoriza Paulo Guedes num dia e no outro também e ontem o ministro foi o último a saber do encontro do chefe e do general Luiz Eduardo Ramos com seus dois maiores inimigos, o deputado Rodrigo Maia e o ministro Rogério Marinho. Soube por uma foto em que só aparecia Maia. À vontade, íntimo da “casa”, o fotógrafo foi Marinho.

Guedes acusa Maia de boicotar as privatizações, Maia chama Guedes de “desequilibrado” e Guedes ataca Marinho como “despreparado”, por admitir publicamente furar o teto de gastos. Logo, a coisa está animada na cúpula do governo, com o presidente no meio de uma guerra entre o “desequilibrado” e o “despreparado”. Ou melhor, no centro.

O tema da reunião, informou-se, foi de onde tirar dinheiro para o Renda Cidadã, mas como assim? O ministro da Economia, dono da chave do cofre, não estava presente, não foi convidado, nem sequer foi comunicado. E chiou. Como anda com os erros à flor da pele, envolto em dúvidas e convivendo dia a dia com a insegurança da própria equipe, dá para imaginar que a chiadeira não foi lá das mais calmas e elegantes.

O Planalto e Bolsonaro tiveram um trabalhão para convencê-lo de que se tratava de um cafezinho inocente e que o presidente mantém inalterados tanto a defesa do teto de gastos quanto a confiança e apreço pelo seu Posto Ipiranga. Se o próprio Guedes tem lá suas dúvidas, certamente o mercado e a opinião pública não ficam atrás.

Quando se pergunta no governo qual a diferença entre Sérgio Moro e Paulo Guedes, a resposta é uníssona: Moro, segundo eles, com replique nas redes bolsonaristas, foi “desleal”, “mau caráter”, uma “surpresa”, enquanto Guedes não é nada disso e é praticamente indemissível.

Na verdade, o que ministros diziam de Moro às vésperas da queda dele é o que dizem agora de Guedes: um pilar do governo; o presidente sabe a importância que ele tem; aliás, gosta muito dele, pessoalmente; a chance de ele sair é zero… Era zero com Moro e é zero com Guedes, mas só até a próxima curva.

Paulo Guedes é teimoso e duro na queda, não vai engolir desaforo calado, como Moro, e depois sair atirando. Ele está guerreando pela sua posição a céu aberto, botando a boca no trombone e se esforçando para manter unida o que resta da equipe econômica, depois da “debandada” que lhe tirou os secretários da Receita, do Tesouro, das Privatizações e da Desburocratização.

Só conseguiu salvar o da Fazenda, que recebeu “cartão vermelho” do presidente, mas se manteve – com o compromisso de boca fechada. Esse compromisso Bolsonaro não vai arrancar de Guedes. Ficando ou saindo, ele vai continuar sendo Guedes, sem papas na língua.

O script continua como previsto: depois de perder uma atrás da outra no governo e passar a ser sistematicamente criticado no mercado e na mídia por falar muito e entregar pouco, Guedes sobe e desce, sobe e desce, numa montanha-russa. Como na queda de Moro, ministros e assessores penduram-se no telefone para jurar que Guedes está firme feito uma rocha, mas assim mesmo começa a bolsa de apostas para lhe suceder, que nem vale citar aqui, para não botar mais fogo no circo.

Mais do que nomes, aliás, tem-se uma certeza: não será nenhum nome óbvio. E por que essa certeza? Basta ver como foram as escolhas para Educação, Saúde e Supremo: Carlos Alberto Decotelli, Milton Ribeiro, Eduardo Pazuello e Kassio Nunes.

Nomes fora de qualquer lista, soprados ao ouvido sensível do presidente, que leva a sério quem toma tubaína com ele e está cada vez mais se lixando para a gritaria de robôs bolsonaristas, ou chororô de derrotados. E não se assustem com um sucessor de Guedes do Centrão, ou apadrinhado pelo grupo. Sinto informar. Guedes ainda não perdeu, mas o Centrão já venceu!


Merval Pereira: De corpo e alma

Nada mais exemplar do establishment que Bolsonaro prometeu destruir do que a reunião promovida pelo ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal em sua casa em Brasília nesse domingo. O almoço, que em qualquer país civilizado provocaria escândalo, começou às 14 horas e foi até a noite, com futebol e pizza. A fauna brasiliense presente ia de advogados que atuam no Supremo, políticos de vários matizes, presidente do TCU e, por último, mas não menos importante, o presidente da República em pessoa, que está sendo investigado pelo STF.

Bolsonaro tenta separar o corpo da alma, pelo menos finge querer. De um lado, entendeu que precisa de acordos políticos e aproximações com o Congresso e o STF; e de outro, enfrenta os radicais que querem afrontar o Congresso e o STF, na batida do início do governo, o que não é possível numa democracia.

Bolsonaro entendeu que por esse caminho ia acabar sofrendo impeachment, porque não há possibilidade de governar em guerra com o Congresso e o STF. E a guerra com os dois outros poderes pressupõe uma visão democrática deformada. Os três poderes são equivalentes, e é preciso obter uma posição majoritária através de negociações.

Como só sabe fazer a baixa política, do toma lá, dá cá, que viveu durante os 30 anos como parlamentar do baixo clero, e prometeu acabar quando Presidente, aproximou-se da ala mais conservadora do STF e do Centrão, que sempre está com todos os governos em troca de favores, poder, emprego.

Atacado por seus próprios aliados nas redes sociais, acusado de ter feito acordo com o diabo, ou seja, a esquerda, Bolsonaro tenta se defender como se sua alma estivesse onde sempre esteve, junto aos radicais da extrema-direita, enquanto seu corpo circula pelos bastidores do establishment “porque tenho que governar”.

A indicação do desembargador Kassio Marques, escolhido por Dilma Rousseff para o TRF-1, e a amizade repentina com Dias Toffoli, ex-advogado do PT, mostram para seus radicais uma promiscuidade inaceitável, embora aceitem sem grandes protestos os acordos políticos com o Centrão, que significam abandonar definitivamente o combate à corrupção.
Toffoli à frente do Supremo, cargo que deixou recentemente, marcou sua gestão pela proximidade com o presidente Bolsonaro, com quem assinou um pacto político totalmente inadequado. Os então presidentes do STF Nelson Jobim e Gilmar Mendes firmaram pactos republicanos com os poderes Executivo e Legislativo, mas com o objetivo de tornar a Justiça brasileira mais eficiente.

Nada semelhante ao pacto firmado por Dias Toffoli, à frente do Supremo, com o objetivo de apoiar as reformas que tramitam no Congresso, sobretudo a Previdenciária, que estava em discussão naquele momento. Não há na história recente exemplo de pacto político de que tenha participado o Poder Judiciário. Por uma razão muito simples: é nele que desaguarão as demandas dos que se sentirem afetados pelas reformas. O Judiciário não pode fazer pactos sobre assuntos que vai julgar.

Aliás, foi o que disse o novo presidente do Supremo, ministro Luis Fux, ontem em uma palestra. Fux ficou de fora dos convescotes de Brasília desde o primeiro dia em que o desembargador Kassio Marques foi com Bolsonaro à casa de Gilmar Mendes ser oficializado como o candidato a substituir Celso de Mello.

Ao assumir o cargo, disse que o Supremo terá “autoridade e dignidade” fortalecidas, e advertiu que a harmonia entre Poderes “não se confunde com subserviência”. A relação de Fux com o presidente Bolsonaro começou marcada pela liturgia do cargo, o que só fará bem à democracia brasileira.

O abraço fraternal dado em Bolsonaro não seria mais apertado em Lula, antigo mentor de Toffoli que, cedo, descobriu que tem mais anos pela frente de Supremo do que Lula de expectativa de poder.