Day: outubro 3, 2020

Marcus Pestana: Orçamento, tributos e renda mínima

A Lei Orçamentária é peça central na democracia. Busca ordenar a aplicação dos recursos coletados pelo governo junto à sociedade na forma de tributos, e explicitar de forma transparente o perfil do gasto governamental.

Para quem não se alinha a perspectivas demagógicas há a consciência de que o orçamento não é um saco sem fundo. Há a famosa, e às vezes frustrante para muitos governantes, restrição orçamentária. A sociedade admite certo nível de carga tributária sancionada politicamente e sabemos que ela no Brasil já é alta. E se as receitas são finitas, as despesas não podem ser ilimitadas.

Isto impõe inevitavelmente um conflito distributivo embutido no orçamento. Ao se destinar muito a salários e previdência, sobra menos para as políticas de educação. Se gasto muito com incentivos e subsídios fiscais, os recursos disponíveis para a saúde e a segurança serão menores. E assim por diante. Governar é fazer escolhas. E não adianta apelar para palavras mágicas como “vontade política”. Déficits e endividamento irresponsáveis são irmãos gêmeos da inflação, da fuga de investimentos e de juros altos.

A situação fiscal já era gravíssima no quadro herdado do Governo Dilma. Em função disso, como âncora de credibilidade, o Congresso Nacional aprovou o teto de gastos, no Governo Temer. Com a eclosão da pandemia, situação absolutamente extraordinária, foi necessário ampliar os gastos à custa da elevação da dívida pública. Agora, a realidade bate à porta. Precisamos ampliar gastos com o SUS e mantermos abertos os mais de dez mil leitos de UTI criados para enfrentar o coronavírus. Necessitamos equacionar as questões da renda mínima e da desoneração da folha. E o dinheiro é curto, o equilíbrio fiscal essencial e é grave a situação do déficit e da dívida.

O ex-presidente Fernando Henrique sempre afirma que o mais importante é o governante oferecer um rumo ao país. E isto está faltando. Não há um plano global e concatenado para atacar toda esta complexa situação. Ao contrário as propostas surgem e somem de forma desordenada e errática. Em um momento fala-se na volta da CPMF, imposto de baixa qualidade, regressivo e cumulativo, rejeitado pela população e pelo Congresso Nacional. Recentemente, o governo anunciou o financiamento do “Renda Cidadão” com recursos do FUNDEB, o que é um absurdo porque só a educação pode dar resposta definitiva à pobreza e a miséria, e com a postergação do pagamento dos precatórios, que muitos interpretaram como uma “pedalada fiscal” contra o teto de gasto.

De onde viriam então os recursos? Dá trabalho, mas não há escolha. É fundamental uma reforma tributária que não só simplifique nosso sistema, mas também corrija graves distorções com as faixas mais ricas da população pagando proporcionalmente muito menos impostos que a classe média e os mais pobres. Além de um corte progressivo e firme de incentivos e subsídios fiscais de eficácia questionável. É essencial uma reforma administrativa com efeitos imediatos que combata privilégios e desperdícios, dando mais eficiência ao governo. E uma parte do ajuste inevitavelmente teria que vir do crescimento econômico, totalmente possível, se houver uma estratégia global e articulada, clara e crível.

Como disse o filósofo romano Sêneca: “Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde ir”.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Raul Jungmann: Qual o projeto nacional para a Amazônia?

No primeiro debate nacional com o Presidente Trump, o candidato democrata Joe Biden disse que amealharia 20 bilhões de dólares para em conjunto com outros países “resolver” (sic) o problema do desmatamento da Amazônia. Falou bobagem, naquele que foi um dos piores debates televisivos já vistos.

A soberania do Brasil sobre o seu território é intocável, inegociável e não está em discussão ou aberta a quaisquer negociações. Desde o início do fim do neo-colonialismo, após a 1ª guerra mundial, o direito internacional não admite o mandato de outros países sobre nações e territórios soberanos – caso do Brasil.

Já após a II Grande Guerra, alguns temas e questões ganharam status de direito internacional positivo, como é o caso do fundo dos oceanos, espaço, o Ártico e Antártida, refugiados e direitos humanos, em graus variados de extensão e adimplência.

Mesmo o direito internacional que sustenta a imposição da paz e/ou a estabilidade das nações pela ONU, não incide sobre a tutela do território das nações em conflito ou em guerra civil. Entretanto, é inequívoco, o direito internacional tem evoluído, sobretudo numa era de globalização acelerada, para a mitigação, compartilhamento e/ou responsabilização da soberania das nações, em temas como, por exemplo, o direito das gentes e o meio ambiente.

Em especial nesse último caso, e no que toca as mudanças climáticas, a internacionalização do direito e as responsabilidades comuns, ainda que assimétricas, têm sido progressivas e inexoráveis.

A forma que temos de harmonizar essa tendência global com a nossa soberania é assumirmos, integralmente, nossa responsabilidade pela preservação da Amazônia, que é impossível de ser assegurada sem um projeto de desenvolvimento sustentável integral. O que é o mesmo que dizer, sem desenvolvimento sustentável não há como preservar a Amazônia.

A questão de fundo é que, entre nós, não há consenso sobre que projeto, que desenvolvimento sustentável será esse. O que existe são projetos em disputa, sem que haja uma estratégia nacional, um rumo definido para a região. Enquanto não definirmos o que queremos para a Amazônia, é preciso e urgente conter e reprimir a sua devastação.

Toda ajuda e apoio externos, desde que por nós definidos em razão dos nossos interesses e soberania, devem ser bem-vindos. Igualmente, é inequívoco que a exploração desenfreada de reservas indígenas e/ou ambientais e o desmatamento em curso desservem à nossa soberania e aos interesses do Brasil.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Adriana Fernandes: Encrenca geral

O que mais preocupa nessa confusão é que o desenho do Renda Cidadã está escanteado

O ambiente hoje em Brasília é o mais negativo possível e o resultado tem sido a escalada acelerada de deterioração da confiança com os rumos da economia do País.

Está tudo parado ou rodando em círculo: Renda Brasil (ou Cidadã), reforma tributária, Orçamento de 2021, PECs fiscais de cortes de despesas, reforma administrativa e votação de vetos importantes, como a prorrogação da desoneração da folha para 17 setores.

A cada bate-cabeça em torno das medidas e novos sobressaltos – como o desta sexta-feira entre os ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho – a piora dos indicadores do mercado se acentua.

A articulação que acontece no momento, e deve prosperar, é tirar o Renda Cidadã do teto de gastos, mesmo que temporariamente.

Se não houver algum tipo de entendimento nos mais urgentes pontos elencados acima, o Brasil vai entrar em 2021 num voo cego com os efeitos da pandemia da covid-19 ainda mostrando a sua cara.

Até aqui não há o que comemorar do novo eixo de articulação política com o Centrão montado para avançar a pauta econômica em três etapas de validação: acerto Ministério da Economia-líderes do governo; Líderes-Palácio; Bolsonaro-validação; e, por último, Palácio-líderes dos partidos aliados.

A batalha de sobrevivência de Guedes e da sua agenda pode até embaralhar esse jogo e tem servido de folclore para desviar a atenção para o fato de que todos os sinais apontam que está em curso uma inflexão da política econômica. Ela já começou apesar do uníssono grito de “vamos manter o teto de gastos”.

O deadline da mudança indicado por muitas dessas lideranças é da eleição da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em 2021.

A monumental trapalhada do anúncio do financiamento do Renda Cidadã com recursos dos precatórios e do Fundeb mostrou que essa articulação não está dando certo. Por quê? A disputa pela presidência do Senado e da Câmara se antecipou e nada, absolutamente nada, se move sem que a eleição do início do ano que vem para o comando das duas Casas esteja na conta.

A tentativa dos partidos do Centrão de tomar a presidência da Comissão Mista de Orçamento do deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), é mais um capítulo do que está acontecendo. O deputado Arthur Lira (PP-AL), à frente da manobra, acirrou a tensão e adiou a sua instalação. Elmar é aliado do presidente Rodrigo Maia e Lira candidatíssimo a ficar no seu lugar. Eleição na veia.

Faltando três meses para o fim do ano, é uma irresponsabilidade que a comissão não esteja discutindo saídas para o País em 2021. A guerra na CMO pode, inclusive, levar a votação do Orçamento e do Renda Cidadã para o ano que vem, “sob nova direção”.

O mais preocupante dessa encrenca geral com o Renda Cidadã é que governo e Congresso têm deixado escanteado o desenho do próprio programa. Tanto é que o Ministério da Cidadania pouco se envolve.

O governo ainda está voltado à primeira geração das políticas de transferência de renda, quando o mundo já está na terceira ou quarta geração, alerta o economista João Marcelo Borges, especialista em políticas educacionais.

Consultor do BID na época que o organismo emprestou US$ 1 bilhão para o governo aumentar os beneficiários do Bolsa Família, no início dos anos 2000, adverte que o substituto do auxílio emergencial não pode resultar de considerações meramente fiscais ou assistenciais.

Diz Borges: “Salvo raras exceções, que apontam a necessidade de usar o Cadastro Único e incorporar o conhecimento acumulado, a discussão sobre o Renda Cidadã tem se dado apenas em torno das fontes para seu financiamento, do teto de gastos e do valor do benefício”.

Um programa da magnitude que se discute (cerca de R$ 60 bilhões) não pode se restringir a elas. Há uma década se discutia portas de saída para o Bolsa Família. Hoje, parece que o debate é apenas sobre a largura da porta e sobre sua sustentação. É um retrocesso de duas décadas.


Miguel Reale Júnior: Organizar a oposição

Não há que entregar o jogo, asfaltando o caminho do autoritarismo digital

Recente pesquisa de opinião pública atribuiu a Bolsonaro 40% de aprovação, isso na mesma semana em que o Brasil passou pela vergonha de discurso irresponsável do presidente da República na ONU, no qual disse ter a Justiça atribuído aos governadores a condução das medidas no campo da saúde pública, além de culpar “índios e caboclos” pelos incêndios na Amazônia. O resultado da pesquisa revela a consagração do embuste como expediente para enganar uma população que admira mais o histrionismo do governante do que a realidade visível.

Membros da imprensa e da sociedade civil se manifestaram contra o desplante do discurso. Mas grande parte de nosso povo não quer ler nem ouvir manifestações revestidas de racionalidade e não alimenta interesse em se informar e minimamente avaliar os fatos.

Em maio, quando 30% consideravam o governo Bolsonaro bom ou ótimo, foram lançados vários manifestos tradutores do sentimento e pensamento dos demais 70%, destacando-se o documento editado pelo movimento Estamos Juntos. Do manifesto realçam dois parágrafos. “Somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”; e “Temos ideias e opiniões diferentes, mas comungamos os mesmos princípios éticos e democráticos. Queremos combater o ódio e a apatia com afeto, informação, união e esperança”.

Outro manifesto, de cerca de 600 juristas, intitulado Basta, destacava que o País estava em crise política “quando já imerso no abismo de uma pandemia que encontra no Brasil seu ambiente mais favorável, mercê de uma ação genocida do presidente da República”. E mais adiante sinalizava: “Todos nós acreditamos que é preciso dar um BASTA… Não nos omitiremos. E temos a certeza de que os Poderes da República não se ausentarão”.

Hoje estamos quase virando minoria e, em vez de se ter dignidade do presidente nesta devastadora crise sanitária, o que há é continuada falta de solidariedade e de coragem de sua parte. Em 18 de setembro ele fez chacota das medidas de isolamento, ao dizer a agricultores: “Vocês não pararam durante a pandemia. Vocês não entraram na conversinha mole de ‘fica em casa’, ‘a economia a gente vê depois’. Isso é para os fracos”.

Exigia-se, nos manifestos, que houvesse afeto, informação, presença dos Poderes da República. O que se vê, todavia, da parte de Bolsonaro é apenas desprezo pela dor dos doentes e de seus familiares, humilhação dos receosos de contrair o vírus causador de tantas mortes, ofendendo todos os que se cuidam ao chamá-los de fracos. Elogia, assim, o ideal infantil do Superman, que munido de substância milagrosa, a cloroquina, uma anticriptonita, enfrenta o vírus de peito aberto.

Clamava-se por ação dos Poderes da República, mas há um alarmante silêncio dos principais atores políticos, a começar pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que em sua ambição de reeleição, manifestamente inconstitucional, se fazem de surdos.

Nos manifestos requeria-se informação veraz, mas o que se tem é desinformação. Na ONU o presidente disse: “Por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação. Ao presidente, coube o envio de recursos e meios a todo o País”.

Mentira. O voto do ministro Fachin, relator da Adin 6.341, bem esclarece ser “competência comum dos entes federativos a adoção ou manutenção de medidas restritivas durante a pandemia da covid-19. Assim, a princípio, tanto a União quanto os Estados e os municípios podem (e devem) adotar imposição de distanciamento social”. O ministro Gilmar Mendes, no seu voto, elucida: “Todas as esferas federativas que compõem o SUS (União, Estados, municípios e Distrito Federal) possuem deveres e responsabilidades com a saúde pública, e é de todas elas que devem ser cobradas atuações administrativas eficazes, preventivas e de assistência”.

A verdade deixou de ser um valor, haja vista Bolsonaro blasonar-se, com sucesso, da concessão do auxílio emergencial, quando propusera só R$ 200 e foi o Congresso a impor o triplo. No lugar de sinceridade, união e afeto, vive-se a criação artificial de inimigos e a exploração do medo, geradora de crenças salvacionistas e polarizadoras.

O que fazer diante desse quadro? Como diz Milagros Pérez Oliva no El País (27/9), não se tem antídoto certo para afrontar a teoria da conspiração do neopopulismo.

Contudo não há que entregar o jogo, asfaltando o caminho do autoritarismo digital. Cumpre fazer o debate, mesmo que com isso se venha a ser acusado de fazer parte da conspiração.

Cabem, então, novos manifestos dos grupos de maio passado e ocupar as redes sociais, denunciando com firmeza o atual descalabro político, econômico e moral. É hora de organizar a oposição sem partido, visando a preservar a racionalidade e a democracia.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Demétrio Magnoli: Um milhão de mortos pelo coronavírus assombra arautos da 'gripezinha' e desmente profetas

Marcos redondos têm valor simbólico, mas pouco significam na análise estatística

Marcos numéricos redondos têm valor simbólico, mas pouco significam para a análise estatística. Dias atrás, mundo afora, as manchetes destacaram a (falsa) ultrapassagem da fronteira do milhão de mortos por Covid-19. Certamente o limite foi rompido antes, mas não enxergamos a placa graças à subnotificação generalizada. De qualquer forma, é um sinal da escala da pandemia —e, ainda, um alerta sobre a arrogância humana.

Um milhão é muito ou pouco? Não vale comparar a pandemia com fenômenos cujas causas, temporalidades e espacialidades são distintas, como guerras, atentados terroristas, mortes no trânsito ou tsunamis. Pandemias devem ser cotejadas com pandemias; doenças com doenças.

A tuberculose mata, anualmente, cerca de 1,5 milhão; a diarreia infecciosa, 1,4 milhão; a Aids, 950 mil; a malária, 620 mil; as gripes comuns, 650 mil. A OMS estima até mais um milhão de óbitos pelo coronavírus antes da vacinação em massa —e isso com o cortejo de restrições sanitárias aplicadas pelos governos. É muito.

Ninguém sabe ao certo quantos morreram na gripe espanhola de 1918. As estimativas variam de 18 milhões a 50 milhões. A mortalidade giraria, portanto, entre 1% e 2,7% da população mundial de 1,8 bilhão. Naquele ano, pela última vez na história, registrou-se crescimento demográfico global negativo. A Covid, em contraste, ceifará menos que 0,03% da população do planeta e será praticamente indetectável nos gráficos da dinâmica demográfica. É pouco.

Muito ou pouco, depende do ponto de vista. O número assombra os arautos da "gripezinha". Osmar Terra, guru especialista de Bolsonaro, profetizou um máximo de 2.000 mortes no Brasil, num ciclo epidêmico limitado a 13 semanas. Qual seria o saldo de óbitos pelo vírus se, como queria o presidente, tivéssemos escolhido prosseguir a "vida normal"?

Na ponta oposta, o milhão global de mortos desmente os profetas que, inspirados pelo Imperial College, imaginaram algo como uma reedição da gripe espanhola. Atila Iamarino projetou "um milhão de pessoas mortas" —mas apenas no Brasil e somente até o final de agosto. Isso, no "cenário de mitigação que a gente está fazendo", ou seja, fechando "escola, transporte, trabalho". Qual seria nosso saldo de miséria, desemprego, desespero e violência social se, como queria o fundamentalismo epidemiológico, tivéssemos optado pela via do "lockdown" eterno?

O erro é parte da experiência humana: ninguém deve ser estigmatizado por equívocos de boa-fé. Mas as profecias hiperbólicas simétricas evidenciaram complexos intercâmbios entre o discurso científico e as narrativas políticas.

Os 2.000 de Terra ajudaram a extrema-direita a conferir um simulacro de legitimidade científica ao negacionismo criminoso de Bolsonaro. O milhão de Iamarino contribuiu com o esforço da esquerda de reivindicar o impossível para, na sequência, acusar todos os governantes adversários de negligência criminosa. A polarização política fecha caminhos à difícil busca do equilíbrio entre as demandas contraditórias da saúde, da economia e das liberdades públicas.

Até aí, porém, singramos na superfície. Atrás das profecias minimalistas oculta-se a arrogância diante da natureza: o vírus pode ser ignorado, pois a economia é tudo. Já as profecias maximalistas expressam a arrogância diante da sociedade: a vida social, o emprego, os direitos individuais podem ser cancelados indefinidamente, pois o vírus é tudo. Numa ponta, despreza-se a perspectiva aterradora de pessoas morrendo sem atendimento às portas de hospitais superlotados. Na outra, a paisagem perversa da militarização das cidades, de suas periferias e favelas, decorrente da estratégia utópica de supressão completa dos contágios.

Um milhão é muito ou pouco? Sei lá. No meu mundo ideal, seria um chamado à humildade, à dúvida e ao diálogo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Cristina Serra: A despedida do decano

Celso de Mello é exemplo que deveria ser seguido por seus pares

Celso de Mello chegou ao Supremo Tribunal Federal em agosto de 1989, quando a Constituição ainda nem completara um ano de promulgada. Seus 31 anos na corte se entrelaçam com dramas e tensões da nossa história contemporânea que, em anos mais recentes, têm levado a um desgastante confronto do tribunal com os outros dois Poderes.

O julgamento do mensalão quebrou a redoma que protegia o STF da refrega político-partidária e acentuou disputas entre os ministros, agravadas sobremaneira pela Lava Jato. O excelente livro "Os Onze", de Felipe Recondo e Luiz Weber, mostra que, nestes tempos tumultuados, Celso de Mello atuou como vetor de alguma acomodação e equilíbrio sempre que procurado por pares menos experimentados em crises, como o primeiro relator da Lava Jato, Teori Zavascki, já morto.

Desde a ascensão do bolsonarismo, o decano também tem sido voz quase solitária na corte, na sua firmeza e altivez, a condenar as ameaças à Constituição, à democracia e ao Estado de Direito, repudiando em alto e bom som "intervenções castrenses" [ militares ] e práticas típicas do "pretorianismo". Quando os ataques ao STF pareciam estar em ponto de ebulição, no primeiro semestre deste ano, Mello, em mensagem privada (vazada à imprensa), também advertiu para os riscos de "destruição da ordem democrática", em processo semelhante ao que aconteceu na Alemanha nazista.

Conforme destacado no livro, Celso de Mello tem fama de ermitão. Não frequenta políticos, não vai a eventos sociais, não aceita convites para palestras, não visita o Palácio do Planalto. Envergando a toga, o ministro construiu reputação de credibilidade e independência, reforçada pelo decoro público exemplar e pela aversão aos holofotes.

Num Supremo conflagrado por interesses e conveniências nem sempre claros para a sociedade, é um exemplo de compostura que deveria ser seguido por todos os seus pares para o bem das instituições e da democracia no país.


Luiz Paulo Costa: O populismo autoritário e as eleições municipais

“Quais são as propostas concretas que a oposição tem apresentado?” Esta pergunta feita por vários analistas e operadores políticos convoca a cidadania a cumprir o seu papel fundamental. Em período de populismo autoritário a melhor oposição é a luta e o voto pela democracia. Representativa e consequentemente participativa é a vacina contra o vírus totalitário. E a Constituição Cidadã de 1988 reforçou o exercício da cidadania quando reconheceu em seu Artigo 1º o Município um ente federativo da União como os Estados e o Distrito Federal. Já a Constituição de 1946 da vitória dos Aliados contra o totalitarismo nos legou o entendimento de que ao município cabia tudo que fosse do seu peculiar interesse. Como a democracia representativa.

Mas a Constituição Cidadã de 1988 foi mais conclusiva com a cidadania ao incluir o município como um ente federativo e o seu direito à auto-organização através de suas Cartas Próprias, a Lei Orgânica Municipal. Se a Constituição Federal garante o Estado Democrático de Direito a todos os viventes do País e a Constituição estadual dos federados, a Constituição Municipal leva os seus princípios passíveis de serem exercidos pela cidadania em seu habitat natural: o município. Dizia Franco Montoro que as pessoas vivem no município e é aí que devem exercitar os seus deveres e direitos consagrados pelas Constituições da União e dos Estados.

As eleições municipais de 15 de novembro e o princípio republicano de todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido, oferece-nos uma oportunidade ímpar para trazer a democracia mais próxima do cidadão, o que é tudo o que o populismo autoritário não quer. Aliás, já chamava a atenção no artigo “O segundo inverno do governo Bolsonaro”, Pedro S. Malan, ministro da Fazenda no Governo FHC, no “Estadão” em 14/6/20, “que o Brasil elegerá nada menos que 5.570 prefeitos e cerca de 57.800 vereadores”: “Daí a importância das eleições municipais desse ano. Seus resultados terão forçosamente influência nas eleições de 2020.”

E não apenas pelo exercício do direito fundamental de ser governado numa república democrática por representantes eleitos pelo povo e de respirar-se agora também no município o ar da democracia em todos os seus sentidos. É que, como ente federativo, o município deixou de ser uma circunscrição administrativa e passou a ser um ente político com direito à sua auto-organização através da Lei Orgânica, a sua Constituição Municipal. É bom lembrar que o município precedeu a criação do próprio Estado. A Coroa portuguesa reconheceu a sua importância até na defesa do território colonizado contra as invasões holandesas e francesas recrutando os soldados. E a Declaração da Independência e a Proclamação da República foram também legitimadas pelas Câmaras Municipais.

Assim, a Lei Orgânica do Município é elaborada e promulgada pelas próprias Câmaras Municipais. Embora já existissem nos municípios do Rio Grande do Sul e após no Ceará, foi a Constituição Cidadã de 1988 que, consagrando o direto dos municípios à auto-organização, deu maior abrangência às Leis Orgânicas, como verdadeiras Constituições Municipais.

No Estado de São Paulo, a Câmara Municipal de São José dos Campos saiu à frente apresentando, em 1984, a sua Carta Própria com o apoio de renomados juristas e constitucionalistas como Dalmo de Abreu Dallari, Celso Antônio Bandeira de Melo, Michel Temer, Geraldo Ataliba, José Guedes, Bernardo Gomes de Melo, Luís César Amad Costa, baseada no princípio do peculiar interesse do município. E a Assembleia Legislativa com Proposta de Emenda Constitucional, mobilizando assim a opinião pública para o final reconhecimento do Direito à Auto-Organização Municipal pela Assembleia Nacional Constituinte com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988.

As eleições municipais de 2020 celebram também os 30 anos da elaboração e promulgação das Leis Orgânicas pelas próprias Câmaras Municipais. E como tal, os candidatos a vereador poderão discutir concretamente o seu conteúdo com os eleitores e os eleitos promover a sua revisão atualizando este estatuto constitucional municipal.

As Leis Orgânicas Municipais tratam desde a organização administrativa do município como também da participação popular, saúde, educação, meio ambiente, ciência e tecnologia, planejamento municipal (plano diretor de desenvolvimento integrado), transporte público, desenvolvimento social e rural, cultura, esporte e lazer. Enfim, de tudo o que diz respeito ao seu peculiar interesse, fixando princípios, diretrizes e ações.

Portanto, as políticas públicas no âmbito municipal são de responsabilidade de prefeitos e vereadores dentro de suas competências legislativas e executivas. E promover o exercício pleno da democracia representativa e participativa na Lei Orgânica do Município é um ato concreto de oposição ao populismo autoritário.

*Jornalista, escritor e vereador de 1977 a 1996 em São José dos Campos-SP


Ricardo Noblat: Paulo Guedes tornou-se obsoleto

Bolsonaro não o mandará embora, nem o impedirá de sair

De repente, o governo ficou pequeno demais para abrigar ao mesmo tempo os ministros Paulo Guedes, da Economia, e Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional. Uma dos dois acabará sobrando, e se depender do presidente Jair Bolsonaro, e dos militares que o cercam, não será Marinho.

Quem mais agrada um governante que só pensa em se reeleger? O ministro que diz: não pode gastar tanto assim ou o ministro que diz o contrário? Até quando Bolsonaro conseguirá se equilibrar entre Guedes e Marinho? Ou melhor: até quando conseguirá manter os dois no governo em meio a tanta turbulência?

Em conversa reservada, ontem, com investidores e economistas em São Paulo, Marinho criticou a política de Guedes e disse que ele foi o autor da proposta de dar um calote no pagamento de dívidas judiciais do governo para financiar o programa Renda Cidadã. Dias antes, Guedes negou que tivesse algo a ver com isso.

A reação de Guedes às críticas de Marinho foi imediata e dura. Mal desceu do carro à porta do seu ministério, Guedes foi logo dizendo que não acreditava que Marinho o tivesse criticado, mas se de fato o fizera, não passava de um “despreparado, desleal e fura-teto”. Se não acreditava porque atacou seu colega de governo?

Faltou o general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de governo, para puxar Guedes pelo braço e tirá-lo de cena como fez na semana passada. Marinho está para a reeleição de Bolsonaro como Guedes esteve para a eleição. Bolsonaro não mandará Guedes embora, mas não o impedirá de sair.

Resta saber se Guedes adotará a “receita Mandetta”. Ao concluir que seus dias como ministro estavam no fim, Henrique Mandetta decidiu que não pediria demissão. Se quisesse, que Bolsonaro o demitisse. Foi o que Bolsonaro acabou fazendo. Sérgio Moro, não, demitiu-se e aparentemente não se deu bem por ter agido assim.

As mil e uma utilidades do novo ministro do STF

Não é assim uma Brastemp, mas dará conta do recado

O chamado mercado financeiro, essa poderosa entidade sem rosto, sem sede própria, sem mandato obtido por meio do voto popular, mas capaz de dar as cartas no país, avisou ao presidente Jair Bolsonaro que não gostou nem um pouco da nomeação de Kássio Nunes Marques, “o nosso Kássio”, para ministro do Supremo Tribunal Federal na vaga de Celso de Mello.

Nada de pessoal contra ele. É porque o dito mercado se preocupa com Bolsonaro e aposta na sua reeleição. Por isso, teme que a escolha de Kássio, avalizada pelo senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, reforce a impressão de que o governo está aparelhando a mais alta corte de Justiça do país, e isso pode gerar maior insegurança jurídica, o que não é bom para os negócios.

Bolsonaro não está nem aí. A escolha relâmpago de alguém tão improvável como o desembargador piauiense não se deu apenas porque Bolsonaro é impulsivo. Teve muito cálculo político nisso. Era uma maneira de amarrar ainda mais o Centrão ao governo e de garantir a aprovação pelo Senado do nome do novo ministro. E de esterilizar a esquerda a quem Kássio já foi ligado.

Era também uma maneira de fustigar Celso, que detesta Bolsonaro e de quem se espera um duro discurso de despedida. E de não dar tempo ao ministro Luiz Fux para que sentasse na cadeira de presidente do Supremo e começasse a puxar as rédeas que o cargo lhe oferece. Por isso ele só ficou sabendo da nomeação de Kássio pela imprensa, e passou recibo do golpe que levou.

Fux e Bolsonaro não se bicam. No ano passado, aconselhado pelo ministro Dias Toffoli, Bolsonaro convidou Fux para um encontro. Fux agradeceu o convite, mas não foi. Bolsonaro compareceu em setembro último à cerimônia de posse de Fux que sucedeu Toffoli na presidência. Mas nem assim recebeu um tratamento especial. Fux é a favor da Lava Jato, Bolsonaro contra.

De resto, nas contas de Bolsonaro, quanto mais rápido o “nosso Kássio” possa envergar sua toga novinha em folha, mais se avizinhará a ocasião de Sérgio Moro, uma pedra no sapato dele, ter seu pedido de suspeição aceito pelo tribunal. Tudo indica que Kássio substituirá Celso na Segunda Turma, herdando todos os processos que a ele caberia julgar se não se aposentasse.

E ali, por ora, há dois votos a favor do pedido de suspeição de Moro no processo do tríplex do Guarujá que tornou Lula inelegível, e dois votos contra. Kássio poderá desempatar contra Moro – para satisfação de Lula e também de Bolsonaro. Condenado em outro processo, o do sítio de Atibaia, Lula dificilmente será candidato a presidente em 2022 como o PT quer.

Moro, candidato contra Bolsonaro, passaria a campanha tendo de explicar por que ganhou do Supremo o carimbo de juiz parcial. Quer carimbo pior? É com isso que sonha Bolsonaro. É para essas e outras cositas mais que o “nosso Kácio” foi nomeado. A sorte de Flávio, denunciado por lavagem de dinheiro e rachadinha, ao fim e ao cabo será decidida pelo Supremo. Acordão à vista.


Marco Antonio Villa: Bolsonaro e a elite rastaquera

No Brasil da barbárie, o chique é falar palavrões, desprezar a cultura, reduzir os complexos problemas nacionais a frases marcadas pelo senso comum

Entre tantos desastres do governo Jair Bolsonaro, um deles deve ser louvado. Permitiu que o ultra-reacionarismo de frações da elite brasileira aflorasse. O que ficou durante as últimas três décadas relativamente escondido, no fundo do palco, nos 21 meses de Bolsonaro na presidência foi paulatinamente assumindo o protagonismo e ocupando o primeiro plano do que, no Brasil, se chama de política. O ódio, a violência, a arrogância, a ignorância, a prepotência, se transformaram em qualidades indispensáveis para o exercício de funções públicas e louvadas como uma forma original, nova, de conduzir a res publica. O decoro virou objeto de museu. No Brasil da barbárie, o chique é falar palavrões, desprezar a cultura, reduzir os complexos problemas nacionais a frases marcadas pelo senso comum, ignorar o passado e desprezar as tradições nacionais e o povo brasileiro.

O obtuso que ocupa a chefia do Executivo federal é o seu representante. Mais ainda: é a sua mais perfeita tradução. Governa o Brasil como se ainda fosse um deputado do baixo clero e com relações perigosíssimas com o mundo da marginalidade. O presidente despreza a ciência, pois é mais fácil ser negacionista sobre qualquer tema. Tem enorme dificuldade de exercer a função presidencial, suas atribuições e responsabilidades. Transformou o Palácio do Planalto numa extensão do seu antigo (e patético) gabinete da Câmara dos Deputados — por onde passou por 28 anos sem deixar nenhuma contribuição ao país. Nunca entendeu a função do Estado. Repete ladainhas pseudo-liberais sem ter a mínima ideia dos seus significados. Stuart Mill, para ele, caso um dia cometesse o desatino da leitura, seria certamente tachado de comunista. Para esconder a ignorância usa da violência e dos instrumentos do aparelho de Estado. Apesar de desprezar a Constituição, a todo o momento faz uso da Carta Magna para coagir adversários políticos e preparar, se necessário, um golpe de Estado. Tem nos nazistas bons professores. Basta recordar a utilização que fizeram da Constituição de Weimar para chegar ao poder e, posteriormente, destruí-la e impor a ditadura.

A sociedade civil, até o momento, não conseguiu reagir à altura. Há também uma enorme carência de lideranças políticas. Hoje, o importante é, a qualquer preço, agradar o parvo que ocupa a cadeira que um dia foi de Juscelino Kubitschek. Mas — e isto vale uma tese — o mandrião prefere ter um círculo íntimo, uma caterva, da sua confiança, desprezando os rastaqueras que tudo fazem para agradá-lo. E la nave va.


Míriam Leitão: Bastidores de uma nova confusão

Por Alvaro Gribel (interino)

A confusão envolvendo os ministros Rogério Marinho e Paulo Guedes, ontem, começou na verdade na quarta-feira, com uma conversa entre o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, e investidores. Barros queria entender a reação negativa do mercado à proposta do uso de precatórios para financiar o Renda Cidadã e ouviu que, se o governo seguisse por esse caminho, o presidente Bolsonaro enfrentaria uma crise econômica tão severa quanto a que derrubou a presidente Dilma Rousseff. Rogério Marinho resolveu, então, ter o mesmo tipo de conversa para tentar, na visão dele, “acalmar” o mercado. Acabou colhendo o efeito contrário.

É preciso entender a razão para a desenvoltura do ministro do Desenvolvimento, Rogério Marinho. Na quinta-feira, ele havia levado o presidente Jair Bolsonaro ao interior de Pernambuco para a inauguração de uma adutora de água na pequena cidade de São José do Egito. Bolsonaro fez o que mais gosta: usou a festa preparada por Marinho para exercer a função de líder populista, contar piada e angariar votos. A aproximação entre os dois faz Marinho se sentir mais forte, a ponto de extrapolar funções de sua pasta e invadir território que seria do ministro da Economia.

Na reunião com economistas da Ativa Investimentos, Marinho teria dito que a ideia do uso de precatórios foi da equipe de Paulo Guedes. A ala econômica, por sua vez, bate o pé e diz que havia apenas estudos. Marinho também afirmou que Guedes tem a confiança do presidente Bolsonaro e que o governo mantém compromisso com a agenda fiscal. Mas afirmou que o ministro da Economia, apesar de entender de assuntos macroeconômicos, tem menos traquejo político e peca em detalhes na formulação de alguns projetos.

As versões do que Marinho disse circularam pelo mercado e azedaram a bolsa. O ministro Paulo Guedes, que já tem Marinho como desafeto, jogou gasolina na fogueira e o chamou de “despreparado, desleal e fura-teto” caso fosse verdade. Mais tarde, voltou a público para tentar colocar panos quentes na discussão. Marinho também emitiu nota para negar que tenha sido descortês com Guedes.

No mercado financeiro, os economistas estão com as barbas e os investimentos de molho. Ainda é fresca na memória a crise provocada pela saída de Joaquim Levy, após disputa com o ministro Nelson Barbosa. Dilma optou por Barbosa em 2015, levando o país a uma forte desvalorização cambial. Os investidores temem que Guedes possa estar com os dias contados no governo e que Bolsonaro abrace de vez a agenda desenvolvimentista em que sempre acreditou durante seus mandatos como deputado federal.

Guedes não é Malan

O episódio fez economistas lembrarem de uma disputa entre os ex-ministros Pedro Malan, da Fazenda, e Clóvis Carvalho, do Desenvolvimento, no governo FH, em 1999. Carvalho havia feito críticas à política econômica, e Malan, ao contrário de Guedes, não deu nenhuma declaração e costurou nos bastidores. Ao fim, conseguiu a demissão de Carvalho. Se Bolsonaro não é FH, Guedes tampouco é Pedro Malan. À noite, deu entrevista coletiva para dizer que “estamos falando de crise e confusão com a economia voltando”.

Indústria recupera em ‘V’

Falta pouco mas a indústria praticamente superou as perdas da pandemia. Os indicadores de confiança da FGV também mostram que os empresários do setor estão mais otimistas, em parte pela desvalorização do real, que dificulta importações e ajuda exportações. Também pode haver dois efeitos de ações do governo. Os recursos do auxílio emergencial, que ajudaram o consumo, e as linhas de crédito, que favoreceram empresas maiores, mais comuns na indústria. Superado esse problema, volta-se ao anterior: falta de competitividade.


Ascânio Seleme: Uma andorinha só

Indicação de Kassio Marques para o STF é uma indicação do movimento de Bolsonaro para o cento: o centrão

Trata-se de uma questão de ponto de vista, mas não se pode negar que o presidente Jair Bolsonaro evoluiu desde a sua posse. No dia 1º de janeiro de 2019, o capitão era a imagem do mal usando faixa. Era um extremista de direita disposto a dar um golpe. Foi assim até outro dia, quando deslocou-se para o centro, digo, para o centrão. Até a chegada de Bolsonaro ao poder, o centrão era o que havia de mais nefasto na política. O presidente andou uma casa, se moveu do pior para o ruim.

A indicação de Kassio Marques para a vaga de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal é uma indicação do movimento de Bolsonaro. Nenhuma dúvida que se trata de uma ação de natureza política, mas é com essa argamassa que se constrói entendimentos, pontes e saídas. O presidente está buscando consolidar para si uma posição mais confortável, uma alternativa viável para o seu governo, que mais patina do que anda para frente.

O fato novo neste e em outros episódios recentes é que Bolsonaro tem ouvido mais. A escolha de Kassio Nunes é o melhor exemplo disso. Mostraram ao presidente que a indicação de um extremista, de um terrivelmente evangélico ou de um amigo despreparado para o Supremo serviria apenas para irritar os demais ministros da Corte. Sozinho, o novo ministro não conseguiria ajudar a Bolsonaro, aos seus filhos ou às suas causas. Ao contrário, sua presença de um lado poderia acabar empurrando ministros simpáticos para o outro lado. Uma andorinha só não faz verão, lembraram a ele.

Bolsonaro ouviu seus novos interlocutores, refletiu, o que, convenhamos, é coisa rara em se tratando dele, e concluiu que uma indicação errada atrapalharia mais do que ajudaria. Conseguiu rapidamente encontrar um magistrado maleável, bem aceito por todos os lados, mas ainda assim um garantista, anti-lavajatista e conservador. A indicação deixou irados os terraplanistas e ultradireitistas que o guiavam até outro dia, como o falso guru Olavo de Carvalho. Bolsonaro fez um gol.

Não se espantem se outros movimentos forem feitos. Claro que não se pode esperar evolução muito maior do que a nomeação de um moderado para o STF, mas ainda há espaço para Bolsonaro se mexer. Se ele quisesse ganhar mais alguns pontos com o grande público, poderia aproveitar e passar logo a boiada toda, demitindo os vergonhosos ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores, o recém-empossado ministro da Educação e o secretário de Cultura, por exemplo. Mas não vai acontecer. O capitão gosta dos odiados e odeia os bem-amados.

Se houver mais movimentos em favor do centrão, mais fácil e lógico seria se eles acontecessem nos ministérios da área produtiva, como Infraestrutura, Agricultura, Minas e Energia. Claro que aí estão os melhores ministros deste governo, mas o problema é o tamanho da boca do centrão e como satisfazê-la. Quem também não pode mais se julgar garantido é o ministro Paulo Guedes. O mercado não se importaria, sobretudo se o substituto compartilhasse as ideias liberais de Guedes e não estivesse tão desgastado quanto ele.

Com o Posto Ipiranga outros cuidados teriam de ser tomados. Um deles, segundo gente que andou até outro dia à vontade no Palácio do Planalto, é não fazer a operação num dia de semana. Entre dez da manhã e meio dia de sábado, este o melhor horário para se demitir o ministro da Economia. Seu substituto liberal deve ser anunciado no mesmo comunicado. Se ação for bem trabalhada, quando a segunda chegar, o mercado seguirá seu fluxo normal, pacificado. Pode até haver uma leve oscilação da Bolsa para cima e do dólar para baixo.

Patriotas

Os generais do Palácio do Planalto são mesmo patriotas? Então por que concordam com toda barbaridade que se engendra no gabinete do terceiro andar, sem sequer demonstrar contrariedade ou constrangimento? Seus interesses aparentemente são outros, pessoais, e ajudam a desmistificar a imagem de guardiões da pátria.

Ciúmes de você

A ciumeira volta a cercar o gabinete do vice-presidente Hamilton Mourão. O problema é que o general é bem mais inteligente e muito mais claro ao falar do que o capitão. E fala todos os dias. Bolsonaro odeia isso.

Os bois

Do que Ricardo Salles é capaz todo mundo já sabia. Ele nunca escondeu sua irritação com ambientalistas e sua antipatia com regras preservacionistas. O que surpreendeu no episódio dos manguezais foram os bois do Conama, que sujaram sua biografias, algumas até boas, para sempre.

Censura parlamentar

O vereador Brizola Neto, do PSOL, foi denunciado ao Conselho de Ética da Câmara por ter erguido três cartazes durante a votação virtual do pedido de afastamento do prefeito Crivella. Eles diziam “Fora, Crivella e Edir Macedo”; “Fora, milícia” e “Impeachment já”. Por se manifestar visualmente a favor do seu voto, 21 vereadores o denunciaram por quebra de decoro. Uma vergonha coletiva. Uma espécie de pós-censura.

Luz para todos

A proposta 39 oferecida pelo GLOBO aos candidatos a prefeito é uma praga que atormenta os cariocas desde os tempos dos lampiões a gás. O assunto é tão velho quanto a taxa de iluminação pública. Mas, ficando apenas neste século, já em 2001, o jornalista Luiz Antônio Novaes, o Mineiro, não se cansava de alertar: “Cuidado ao sair à noite, o Rio é uma cidade escura, mal iluminada, o que potencializa a insegurança”.

A ciência é pop

A pandemia de coronavírus restabeleceu na consciência da maioria dos brasileiros a importância da ciência na vida das pessoas. Há muito tempo, cientistas não eram ouvidos e levados em conta de maneira tão consistente e de forma tão recorrente. O GLOBO criou uma coluna diária especialmente dedicada à ciência, todos os veículos dão hoje a ela muito mais espaço. As universidades públicas também ganharam ao serem revigoradas moralmente com o bom assédio aos seus mestres e pesquisadores.

Stand by

Fiquem prontos. Foi isso o que Donald Trump disse aos supremacistas brancos quando solicitado a repudiá-los. Só mesmo nos Estados Unidos um homem destes continua com chances de ganhar uma eleição presidencial. Se fosse fotografado com uma modelo de biquíni sentada no seu colo seria varrido do mapa. Vai entender.

Stand back

Por sorte, Trump pode também perder a eleição de 3 de novembro. O imbatível de seis meses atrás pode ter de entregar o poder a Joe Biden, escolhido pelos democratas para perder, já que no ano passado, sem pandemia e com a economia americana em modo boom, ninguém acreditava numa derrota de Trump.

Racismo no futebol

Contrariando Neymar, o presidente da federação Francesa de Futebol, Noel Le Graet, disse que não há racismo nos campos franceses. Patrice Evra, ex-jogador que atuou pela seleção francesa por dois anos, respondeu ao dirigente afirmando que há sim, e acusou Graet de ser ele próprio um racista. Segundo Evra, todas as vezes que o presidente da República ou outra estrela da política nacional visitava a concentração da seleção, os jogadores negros eram colocados nas extremidades para a foto oficial. Ao lado das autoridades, só os brancos, por ordem de Graet, disse Evra.

Fundo para jornalismo

A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) lança na terça-feira um manifesto pela taxação das grandes plataformas digitais em favor do jornalismo profissional. O evento terá transmissão ao vivo pelo Facebook, uma das entidades que a Fenaj quer taxar mais pesadamente. O objetivo é usar o dinheiro recolhido para formar um fundo de fomento que poderia ser usado pelas empresas jornalísticas. Para receber as contribuições, as empresas teriam de garantir os empregos dos seus jornalistas.

Cultura e riqueza

Em Nova York, o setor de arte e cultura movimentou US$ 120 bilhões em 2019, ou 7,5% do PIB da cidade. No Rio…


Merval Pereira: Há lugar para os dois?

Não foi a primeira vez, não será a última. A disputa de poder entre o ex-superministro da Economia Paulo Guedes e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, se desenvolve no terreno pantanoso da crise econômica que mais uma vez vivemos. Não há dinheiro para investimentos, para programas sociais, e a disputa entre os “desenvolvimentistas” e os “monetaristas” volta à tona, como acontece com freqüência quando há crise econômica.

No governo João Figueiredo, aconteceu a disputa entre o ministro do Planejamento, Mario Henrique Simonsem, e o da Agricultura, Delfim Netto. No governo Fernando Henrique, houve o embate entre o ministro do Desenvolvimento Clóvis Carvalho e o da Fazenda, Pedro Malan. No primeiro caso, perdeu o Planejamento, no segundo, ganhou a Fazenda.

Num governo em que a linha econômica era definida por Guedes, incontestável em certo momento, seria impossível que o ministro Tarcisio Freitas, da Infraestrutura, conseguisse verbas para obras com o apoio de ministros “da casa”, como os generais Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Braga Netto, da Casa Civil. Mas foi o que aconteceu.

O ministro do Desenvolvimento, Rogério Marinho, uniu-se aos militares desenvolvimentistas e montou sua base longe do ministro da Economia Paulo Guedes, que o havia indicado para o cargo depois de tê-lo como assessor durante a reforma da Previdência.

Era o começo do fim de mais um superministro do governo Bolsonaro. A disputa de bastidores ontem chegou ao público com o vazamento de uma palestra do ministro do Desenvolvimento para uma platéia de economistas de uma corretora de valores. Provavelmente de propósito, já que é um político experiente, Rogério Marinho criticou seu colega de governo e principal figura da economia, aparentemente como troco à atitude de Paulo Guedes de renegar a utilização de precatórios para financiar o Renda Brasil.

Marinho garantiu que a idéia foi de Guedes, que realmente esteve na reunião com os políticos onde se definiu a composição do programa social, e, no anúncio oficial ao lado do presidente. O ministro Rogério Marinho, sentindo-se respaldado, disse aos economistas que o programa sairá “do melhor ou do pior jeito”, o que deu a impressão aos investidores de que estava avisando que o Renda Brasil sairá mesmo que fure o teto.

Há informações de que Marinho está negociando com os políticos retirar o programa social do teto de gastos, e criar um imposto que possa financiá-lo. Os políticos não querem mais conversa com Guedes, se consideraram traídos com a mudança de atitude sobre os precatórios.

Marinho ainda teria feito, segundo as versões, comentários nada elogiosos à capacidade técnica do ministro Paulo Guedes. Ao saber, pelos jornalistas, das críticas, Guedes chamou Marinho de “desleal”, “despreparado” e “fura-teto”, estabelecendo os campos de ação de cada um.

Caberá ao presidente Bolsonaro decidir a parada, como coube a Fernando Henrique demitir Clóvis Carvalho para reafirmar a predominância do ministro Pedro Malan na política econômica. Carvalho havia feito um discurso em reunião do PSDB, na presença de Malan, com críticas à política econômica, chegando a dizer que “cautela, a partir de certo ponto, é covardia”.

Foi assim também em 1979, quando a disputa entre o ministro do Planejamento, Mario Henrique Simonsem, e o da Agricultura, Delfim Netto, acabou com o pedido de demissão do primeiro. Delfim foi para o ministério do Planejamento, indicou o novo ministro da Fazenda, Ernane Galvêas, e assumiu a direção da economia.

O presidente Bolsonaro encontra-se na mesma situação de Figueiredo, esperando que alguém peça demissão. Tudo indica que não há espaço para os dois no mesmo governo, que já não é o mesmo de quando Paulo Guedes era o Posto Ipiranga. Já não parece estar em condições políticas para conseguir a demissão de Rogério Marinho, que tem o apoio dos ministros militares do Palácio do Planalto e do Centrão.