Day: agosto 19, 2020

Webinar da Biblioteca Salomão Malina analisa livro Lavoura Arcaica

Encontro online será realizado em 9 de setembro com transmissão ao vivo na internet

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A Biblioteca Salomão Malina vai discutir, no dia 9 de setembro, das 18h30 às 20h, o livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, durante encontro mensal do Clube de Leitura Eneida de Moraes, que será realizado pela internet. O evento online terá transmissão ao vivo na página da biblioteca no Facebook. A retransmissão em tempo real será realizada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em sua página na rede social e em seu site.

Raduan Nassar recebeu o Prêmio Camões, em 2016. No catálogo virtual da biblioteca, os interessados podem acessar o arquivo em PDF do livro. Outras obras também podem ser solicitadas por meio do whatsapp oficial da unidade (61 984015561), usando o serviço de empréstimo delivery.

Assista ao vídeo!

https://www.facebook.com/salomaomalina/videos/643771759611692/

Lavoura Arcaica é o primeiro romance escrito por Raduan Nassar, publicado em 1975. A história, em que há a presença do novelesco e do lírico, conta a história de André, um jovem do meio rural arcaico que resolve abandonar sua numerosa família do interior para morar em uma pequena cidade, fugindo da vida asfixiante da lavoura, da rigidez moral de seu pai e de sua paixão incestuosa pela irmã Ana.

André, que é o narrador da história, se encarrega de revelar o avesso de sua própria imagem e, consequentemente, o avesso da imagem da família. Nesse conflito de visões de mundo, que está no centro da desordem da lavoura, se desdobram temporalidades que tensionam o existir do protagonista.

O núcleo familiar em que se desencadeia a trama de Lavoura Arcaica é de imigrantes árabes do Líbano para o Brasil. O livro é dividido em duas partes: a primeira é “A partida” e a segunda, “O retorno”. Esta divisão corresponde à temática e inversão que Nassar faz da história bíblica do filho que deixa a casa e retorna, a parábola do filho pródigo.

Premiação e cinema

Em 1976, o livrou ganhou o prêmio Coelho Neto para romance, da Academia Brasileira de Letras, cuja comissão julgadora tinha como relator o crítico e ensaísta Alceu Amoroso Lima. Recebeu também o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e menção honrosa e o título de autor revelação, concedidos pela Apca (Associação Paulista de Críticos de Arte).

Além dessas premiações, o livro também recebeu uma adaptação cinematográfica. Em 2001, o filme Lavoura Arcaica foi lançado, com direção e roteiro de Luiz Fernando Carvalho, a partir da obra de Raduan Nassar. A versão cinematográfica do livro recebeu mais de 50 prêmios e, em novembro de 2015, entrou na lista feita pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

Sobre o autor

Raduan Nassar nasceu, em 1935, em Pindorama (SP). Cursou direito e filosofia na USP (Universidade de São Paulo). Exerceu diversas atividades e estreou na literatura em 1975 com Lavoura arcaica. Tem livros traduzidos na Espanha, França e Alemanha e é considerado um dos maiores estilistas da língua portuguesa.

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Roberto DaMatta: Apagar o passado

Vivemos momento em que se acende alerta de apagão político-moral

A consciência demanda organizar o passado. Há muitas formas de lidar com o tempo. Em sociedades sem escrita, nas quais a morte de um velho seria equivalente à perda parcial de muitos fatos e mitos — algo próximo da destruição de uma biblioteca nacional —, trata-se de um desastre inafiançável.

Será que um dia vamos conhecer nosso passado milenar? Ou existem passagens que simplesmente sumiram, como a poeira das galáxias e das nossas invisíveis almas?

O leitor pode se sentir incomodado pelo assunto. Eu, cronista enviesado, que, se não estou, devo ingressar na cavilosa lista dos antifascistas convictos, apenas reitero que muito do que fizemos é esquecido, senão propositadamente apagado, porque seria prova de incoerências, crimes, projetos hediondos e contradições incontornáveis, sobretudo em coletivos fundados na autoridade do pai, do rei, do supremo sacerdote ou do juiz.

Investigando nossas vidas, descobrimos coisas que apagamos e muitas outras que programamos esquecer. Quando esquecemos de boa-fé e eventualmente ferimos alguém, acertamos o mal-estar por meio de pedidos de desculpa ou perdão. No mundo jurídico-político anistiamos, formalmente suprimindo fatos passados. Reinterpretações desfazem e mudam o passado. Pedir desculpas, perdoar e anistiar “lavam a alma” e são passaportes para recomeços. Mas, para apagar ou esconder o passado debaixo do tapete, como é comum no Brasil, é necessário um penoso, discutível e complexo refazer histórico-social — tipo, como esquecer a ditadura militar. É preciso o autoritarismo forte presente para controlar, conforme sabia o Grande Irmão de George Orwell, o passado.

Eis dois episódios que agasalhei na memória. Ambos ocorreram com um professor, inglês até a alma, que havia programado um jantar de sexta-feira com a esposa e, ao chegar em casa, com ela desentendeu-se. Algo banal, como uma toalha suja, despertou ressentimentos e, com eles, um inesperado ódio expresso em memórias amargas e frases agressivas. Em meio à tempestade, porém, o marido abriu um parêntese similar a uma desculpa e denunciou o mal-entendido. “Querida”, disse, “isso não está acontecendo. Eu vou sair e entrar novamente em casa e nós vamos jantar conforme combinado”. E assim foi feito.

Um outro evento com o mesmo professor confirma, quem sabe, essa capacidade humana de desconstruir, cujo melhor e mais dramático exemplo é o elo entre paz e guerra. Depois de uma impecável conferência em impecável estilo britânico para uma plateia encantada numa universidade do sul dos Estados Unidos, fomos jantar com um colega que hospedou o conferencista. Na manhã seguinte, fui tomar café com o anfitrião, que perguntou ao professor num misto de curiosidade e provocação: “Eu acho”, disse, “que fui muito ofensivo ontem, não?” Ao que, com notável elegância, o professor retrucou: “O que ocorreu ontem foi tão desagradável, mas tão desagradável, que eu simplesmente apaguei da minha memória”.

Se fazemos, podemos desfazer. Democracias podem desandar em regimes policialescos que trazem do passado escravocrático um viés semelhante ao dos nazifascismos e estalinismos.

Vivemos um momento no qual se acende um alerta de apagão político-moral que suspende o bom senso. A direita bolsonarista tem como simbólico um inacreditável terraplanismo — um contrassenso indicativo de uma postura, digamos o mínimo, radicalmente irracional. Na política, não há dúvida de que se quer um presidencialismo absolutista. Uma outra contradição que, ao lado de um patológico familismo presidencial, completa a negação de solenes promessas de campanha.

Em suma: testemunhamos tentativas de apagar o dito que se transforma num não dito, incompatível com uma necessária estabilidade capaz de minar a autoestima e o respeito internacional, sobretudo em tempos de pandemia num mundo globalizado.

Se esquecemos as implicações morais da escravidão e as obrigações igualitárias da República, por que, como adverte o jornalista Carlos Alberto Sardenberg no GLOBO, não livramos, por meio de um apagão legal, o principal condenado da Lava-Jato, avocando que o magistrado foi parcial?

Mas, se isso for admitido, como o plano da lei e o caráter dos magistrados ficam perante todos os condenados na mesma operação anticorrupção que ainda está em curso?

Para quem duvida que o autoritarismo protofascista nacional é avesso ao igualitarismo, seria cabível livrar somente o ex-presidente, quando todos os seus asseclas foram investigados por um mesmo magistrado? Para os leigos em jurisprudência, tal livramento seria mais um “Você sabe com quem está falando?” na área criminal. Sabemos que a realidade pode ser manipulada, mas, por isso mesmo, temos consciência de limites. Um deles é a morte ou, no caso, o supremo suicídio da estrutura jurídica nacional. Esse instrumento que sustenta o regime republicano num simples ideal: o de que todos são iguais perante a lei, no caso, os julgados e condenados…

Resta candidamente avisar que apagar passados impede construir futuros.


Cristiano Romero: A reforma esquecida

Reformar Estado não é demonizar servidor público

No país das reformas que nunca são concluídas, a administrativa é inadiável. Na verdade, deveria ter sido feita antes mesmo da reforma previdenciária e, agora, deveria ser apreciada antes da reforma tributária, que atolou e cujo destino é o fracasso, uma vez que trata de interesses inconciliáveis da União com os demais entes da Federação, dos Estados mais ricos com os menos afortunados e do governo central (leia-se, o Fisco) com as empresas.

Sem que se reforme o Estado brasileiro, o gasto público continuará sendo alto e pouco efetivo. A carga tributária (em torno de 33% do PIB), uma das maiores dos países em desenvolvimento, terá que ser sempre elevada para bancar despesas crescentes - mesmo nesse patamar, a arrecadação não cobre desde 2014 nem sequer a despesa primária (conceito que não inclui o gasto com juros).

Sem reforma, os serviços públicos prestados à população, principalmente a mais pobre, serão sempre de baixa qualidade. A competitividade das empresas brasileiras face aos concorrentes internacionais estará sempre comprometida, o que é ruim para todos, porque isso gera menos riqueza, portanto, menos empregos, menos renda etc.

O Brasil tem um Estado caro e um serviço público de baixa qualidade. Isso torna irrefutável a necessidade de reforma. Tem algo errado e, sem demonização do funcionalismo público, a sociedade precisa acordar para o problema. Tome-se o caso da educação: apesar dos avanços ocorridos desde a promulgação da Constituição, em 1988, especialmente no que diz respeito à universalização do ensino básico, o gasto chegou a 6% do PIB, mas a qualidade não acompanhou.

O senador Antonio Anastasia (PSD-MG) criou, com a ajuda da colega Kátia Abreu (PP-TO) e do deputado Tiago Mitraud (Novo-MG), a Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa (FPMRA). Sem alarde, o grupo está dialogando com todas as partes envolvidas no tema, para formular um conjunto de projetos de lei, além de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), destinados a reformar profundamente a forma como o Estado brasileiro funciona.

A frente, presidida pelo deputado Mitraud, apresentrará as propostas em setembro. A estratégia de separar os projetos por assunto, em vez de colocar todos num só, é realista. É possível que alguns aspectos das mudanças tenham amplo apoio dos parlamentares e outros, menos. Para evitar tumulto e corrida por pedidos de aposentadoria, fato recorrente na tramitação de propostas que alteram direitos individuais e coletivos, Anastasia, que é funcionário público licenciado (professor de direito da UFMG), informa que a reforma não mexerá nos direitos adquiridos de quem já está no serviço público.

Pretende dialogar com o ministro Paulo Guedes.
Por incrível que pareça, o país andou para trás na área administrativa. Anastasia lembra que, entre 1938 e 1985, o governo federal teve um órgão central - o Dasp - para gerir todas as carreiras do serviço público. Era uma espécie de RH do serviço público. No início da Nova República, o Dasp foi extinto e a Constituição de 1988 acabou submetendo todas as carreiras debaixo o Regime Jurídico Único. Criou-se uma anomalia, cujo maior prejudicado, claro, é o usuário de serviços públicos.

Esse regime instituiu uma aberração - a isonomia salarial entre as diferentes carreiras do serviço público. O objetivo era evitar que os salários de determinadas carreiras se tornassem muito mais altos que o de outras. Ora, além de não fazer sentido, a regra criou em Brasília uma espécie de corrida ao ouro. Como não havia mais o Dasp, os funcionários dos diferentes órgãos fortaleceram seus sindicatos e foram à luta, ano a ano, em busca de vencimentos mais e de outras vantagens.

A maluquice ensejou a seguinte situação: nas disputas judiciais, diante da ausência do Dasp, quem representa a União é um funcionário público do mesmo órgão cujos servidores estão em litígio por mais salário e benefícios. O incentivo não poderia ser pior, logo, é fácil entender por que o funcionalismo goza de vencimentos e vantagens incomparáveis aos da média dos trabalhadores do setor privado.

Reformas institucionais
Os livros de história nos contam que a sociedade brasileira demanda, desde sempre, a realização de reformas institucionais para modernizar o país e destravar o crescimento econômico. Nos momentos em que houve ruptura institucional - 1930, 1937, 1964 - ou transição pacífica de regime (1985), a necessidade de promover reformas foi o motivo condutor (o “leitmotiv”) das mudanças.

Em 1930, a República proclamada havia 41 anos era manca. A elite política de apenas dois Estados (São Paulo e Minas Gerais), amparada por oligarquias rurais dos segmentos de café e pecuária, comandava o país. A Ilha de Vera Cruz, tão rica em possibilidades, padecia de atraso injustificável.

Não tinha mesmo como ser diferente: a era republicana nasceu de um golpe militar, entre outras razões, porque os barões do café e proprietários rurais em geral não engoliram a decisão (tardia, muito tardia) do imperador Dom Pedro II, tomada um ano antes, de abolir a escravidão. Além de não aceitarem o fim da infâmia com a qual convivemos durante 400 anos - e que se tornou, por essa razão, uma das principais características de nossa sociedade -, os fazendeiros queriam ser indenizados por ter perdido “patrimônio” (os escravos).

Transcorridas quatro décadas, a política do café com leite viveu seu ocaso e Getulio Vargas assumiu o poder, em 1930, por meio de uma “revolução”. O terreno era minado porque São Paulo, o Estado mais rico e principal sustentáculo da República Velha, não se aquietaria com facilidade. Getulio chegou ao poder com a promessa de implantar uma série de reformas, mas sua preocupação era uma só: evitar a tomada do poder por São Paulo. Em 1932, os paulistas tentaram tomar o poder, não deu certo e, desde então, jamais um getulista conseguiu triunfar eleitoralmemte no Estado.

Em 1937, por meio de um golpe militar dentro do golpe, Getulio instaura a ditadura do Estado Novo. Em 1945, cai, mas, o general (Eurico Dutra) que lhe apoiou oito anos antes ganha a eleição presidencial. Getulio vence o pleito seguinte e, como em 1930, promete realizar reformas que modernizem o país. Acuado pela oposição e por setores das Forças Armadas, faz o oposto do que seria uma reforma modernizante - a institucionalização do monopólio estatal do petróleo e a criação da Petrobras; na mesma época, havia apenas 25% das crianças nas escolas, mas reforma para lidar com esse problema ninguém fez.


Fernando Exman: É necessário lembrar o óbvio sobre o teto

Disputa sobre o controle de gastos está longe de acabar

Viramos uma sociedade que não se espanta mais quando o presidente da República se vê compelido a convocar a imprensa para garantir, ao lado da cúpula do Legislativo, que respeitará a Constituição.

Na prática, esse é o substrato do que ocorreu na semana passada, quando o presidente Jair Bolsonaro chamou para uma reunião improvisada no Palácio da Alvorada o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ministros de Estado e líderes governistas no Congresso. A imprensa foi avisada que o presidente faria um pronunciamento após o encontro, organizado de última hora com o objetivo de acalmar o mercado e dissipar as dúvidas sobre a permanência no governo do ministro da Economia, Paulo Guedes.

Bolsonaro disse respeitar o teto de gastos e perseguir a responsabilidade fiscal. Guedes ouviu o que queria. O mercado decidiu acompanhar as cenas dos próximos capítulos.

Quem acabou se dando bem foi o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Convidado, o ministro Dias Toffoli tinha um problema de saúde e escapou da cena em que Bolsonaro teria que repetir mais uma vez o que tantas vezes já jurou ao tomar posse como deputado federal e ao assumir a Presidência da República.

Em todas essas ocasiões, o juramento exigido pela legislação não deixa margem para interpretações heterodoxas. “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil", afirmam em alto e bom som todas as autoridades recém-eleitas, antes de começarem a exercer seus respectivos mandatos.

Se o respeito à Constituição já é uma obrigação de qualquer cidadão, a inclusão dessas palavras nos termos de posse deveria servir para deixar ainda mais claro o compromisso e evitar maiores problemas.

Mas, nem sempre é assim. No caso de Bolsonaro, essa expectativa já havia sido frustrada quando ele participou de manifestações antidemocráticas em Brasília. O mesmo ocorreu quando declarou que "ordens absurdas" não deveriam ser cumpridas, após uma operação da Polícia Federal atingir seus aliados que estavam sendo investigados por suposto envolvimento na produção e no financiamento de “fake news”.

No caso do recente pronunciamento em frente ao Palácio da Alvorada, as discussões acabaram se concentrando no prestígio pessoal do ministro da Economia, que vem se esforçando para proteger as contas públicas do assédio da ala mais desenvolvimentista do governo. Ficou em segundo plano um ponto central do debate: o respeito ao teto de gastos é um mandamento constitucional que, até alcançar seu prazo de validade ou ser alterado por uma outra PEC, não deve depender da disposição pessoal das autoridades que estiverem à frente da máquina federal. Ele precisa ser devidamente observado ou o governo estará assumindo o risco de cometer uma irregularidade fiscal.

É bom ter isso no radar porque, apesar de uma aparente trégua entre as alas liberais e desenvolvimentistas do Executivo, esse debate não deve sair da pauta no curto prazo.

Existe, no Congresso, a percepção de que cedo ou tarde os ímpetos populistas do presidente novamente colocarão à prova a fé do ministro no liberalismo do governo. As apostas vão de potenciais pressões sobre a política de preços dos combustíveis a divergências mais profundas sobre a elaboração ou a execução do Orçamento.

Até o início da pandemia, as diferentes visões existentes dentro do governo não eram capazes de gerar maiores turbulências. A ala mais desenvolvimentista acreditava que o cenário pós-coronavírus poderia até gerar oportunidades para o Brasil.

A visão era que o país demonstrara comprometimento com sua solvência ao aprovar a reforma da Previdência. Com vários países colocando suas taxas de juros em patamares negativos, acrescentavam essas autoridades, a ampla carteira de obras de infraestrutura e as mudanças regulatórias empreendidas pela atual administração atrairiam investidores estrangeiros mesmo sem o país conseguir reconquistar o grau de investimento.

Havia um discurso praticamente unânime na defesa da redução de investimentos públicos e na aposta de um crescimento econômico lastreado no setor privado - uma retomada sustentável que garantisse a recuperação das finanças do Estado. Porém, o cenário mudou com o aprofundamento da crise e a proximidade do período eleitoral.

Está em curso uma reacomodação das forças internas do governo. A ala desenvolvimentista tenta convencer Bolsonaro de que a realização de obras públicas é a melhor e mais rápida solução para a geração de empregos.

Enquanto a equipe econômica tenta resistir, esse mesmo grupo tenta emplacar o discurso segundo o qual a ampliação de investimentos em obras de infraestrutura hídrica e habitação deve ser enquadrada como um esforço de combate à pandemia. Afinal, argumentam, esgoto, água encanada e moradia de qualidade são essenciais para melhorar as condições sanitárias de milhões de brasileiros. Será difícil convencer o Congresso e o Tribunal de Contas da União (TCU) de que essa tese não representa uma burla ao teto de gastos, mas ela começa a ter simpatia no Palácio do Planalto.

Há ainda outro movimento embrionário que demanda atenção. O presidente e alguns de seus auxiliares esboçam a acusação de que a reação do mercado às articulações para furar o teto é um movimento especulativo contra o Brasil. Bolsonaro chegou a pedir mais patriotismo do mercado, ignorando o fato de que parte considerável das operações da Bolsa de Valores é feita por investidores estrangeiros.

Ainda há tempo de evitar que se abandone de vez uma postura mais capaz de atrair investimentos privados. O Brasil dependerá deles para retomar o crescimento.


Vinicius Torres Freire: O teto tem de cair, mas não com a fritura de Guedes e gambiarras eleitoreiras

Limite de gastos precisa de reforma profunda, mas governismo tenta avacalhar

As feias necessidades politizaram de modo imediato e ruim a discussão do teto de gastos: a necessidade da pobreza ora atenuada pelos auxílios emergenciais e a necessidade eleitoreira de Jair Bolsonaro.

Não haverá Renda Brasil sem um talho fundo em outras despesas sociais ou implosão do teto; não haverá nem breve temporada de investimentos “em obras” sem gambiarra para burlar o limite de gastos.

Essa tensão, como é óbvio, resultou na tentativa de neutralizar ou fritar Paulo Guedes a fim de dar um jeitinho no teto. Em decorrência, surgiu uma campanha reativa de defesa do teto que é muito razoável até certo limite, que é o de impedir uma avacalhação politiqueira do limite constitucional de gastos federais. Daí em diante, o movimento pende para a sacralização do que é apenas uma regra pragmática.

No caso de Bolsonaro e de seus novos amigos, a politização vulgar é bem evidente. Guedes apenas não foi chutado para escanteio ou para fora do estádio porque até este governo parece perceber que derrubar o teto de modo muito descarado seria contraproducente. Ou seja, teria efeitos econômicos negativos imediatos.

Mas Bolsonaro e seus aliados continuam com um problema eleitoral. O teto continua com seus problemas congênitos —mais dia, menos dia, será inviável econômica, social e politicamente. Logo, é preciso impedir a avacalhação do limite de gastos e ao mesmo tempo pensar em como reformá-lo.

Tal reforma, no entanto, exigiria um governo com um programa sério, profundo, e capacidade de negociar acordos amplos. Seria necessária uma política em que tal negociação fosse possível, mas o debate político está entre a paralisia e a imundície avacalhada.

Para o bem ou para o mal, o teto fazia efeitos em câmera lenta. A ruína de estradas, hospitais e pesquisa progrediria de modo gradual, afora algum desabamento. O corte do auxílio emergencial pode ser explosivo, porém.

Bolsonaro terá seu Renda Brasil apenas se der cabo do abono salarial, benefício anual de até meio salário mínimo para uns 23 milhões de trabalhadores, se der cabo do seguro-desemprego sazonal para pescadores e se cancelar algumas concessões tributárias. Difícil.

Haverá obras extras em quantidade perceptível, mas muito insuficiente, apenas se a manobra fura-teto tiver sucesso, o que provocará efeitos colaterais negativos.

Em si mesmo, o teto é inviável, como se sabia desde 2016. Mesmo que se reajuste o salário mínimo apenas pela inflação, que os servidores não tenham nem correção da inflação, que venham cortes de salários, não haverá dinheiro para aumentar investimentos. O funcionamento do governo (verba de saúde, pesquisa, universidade etc.) estará comprometido, para dizer o mínimo.

Economistas como Fabio Giambiagi, Guilherme Tinoco ou Bráulio Borges, para citar apenas alguns, têm feito sugestões sérias de mudança. Derrubar o teto, sem mais, é suicídio; sacralizá-lo é erro, tentativa de abafar uma discussão inevitável ou um modo de não explicitar um projeto puro e simples de redução do tamanho do Estado.

Difícil imaginar mudança que não combine limite de despesas com servidores, grande aumento de eficiência, contenção de reajustes do mínimo e da Previdência, gasto adicional em renda mínima, aumento e redistribuição de carga tributária, mais dinheiro para investimento público e alguma regra nova de teto.

Nota-se, pois, o tamanho da revolução que seria uma mudança séria. A reviravolta dessas entranhas é necessária, no entanto.


Míriam Leitão: O insustentável peso do auxílio

A Petrobras valia ontem a preço de mercado R$ 300 bilhões. O auxílio emergencial custa o dobro disso em um ano. Se fosse mantido por doze meses, seriam R$ 600 bilhões. Vinte vezes mais do que o Bolsa Família, que no mesmo período consome R$ 30 bilhões. O auxílio que tem tal peso nas contas é o que encanta o presidente Bolsonaro. O ministro Paulo Guedes oferece um prêmio de consolação: o Renda Brasil. Ele será insuficiente para manter a sensação dada a quem recebeu o auxílio nesta pandemia.

Esse é o centro de um dos dilemas de Paulo Guedes. O auxílio reduziu o peso da recessão e aumentou a popularidade do presidente. Contudo, tem um custo impagável. O outro dilema são os investimentos pedidos pelos militares e as obras defendidas pelos ministros setoriais. Separadas podem ter boas justificativas, todas juntas serão a pá de cal no programa que o ministro vendeu ao mercado como aquele que seria aplicado durante o governo Bolsonaro. Resta pouca coisa do programa original. Não foi feita a privatização, a reforma administrativa mofa na gaveta presidencial, a capitalização foi derrubada pelo Congresso, a abertura comercial virou um acordo com a União Europeia de incerta homologação. Se descarrilhar o gasto, nada restará.

Agosto é mês em que todo ministro da economia fica sob pressão porque fecha-se o orçamento e cada área quer evitar cortes. Desta vez é pior porque a situação é muito mais complicada. A pandemia elevou espantosamente os desafios fiscais do país. Luta-se pelo gasto imediato e pela despesa do ano que vem.

Renda Brasil: Mais de 20 milhões de famílias com benefícios de R$ 300
Há uma velha lei da selva brasiliense. Toda vez que o presidente tem que dizer que alguém está prestigiado é porque este alguém está sob ataque. Quem está forte não precisa ser fortalecido. No caso de Paulo Guedes, ele sentiu necessidade de reforçar a si mesmo e disse que Bolsonaro tem confiança nele e ele tem confiança no presidente.

O maior ataque ao ministro vem do próprio presidente. Guedes pode vencer as quedas de braço parciais contra os ministros Rogério Marinho, Tarcísio de Freitas ou até o general Braga Netto. Mas não será possível vencer um presidente em campanha eleitoral, enamorado de si mesmo, e com ouvidos abertos aos que prometem que todo aquele eleitorado será dele se ele continuar gastando, dando auxílios e inaugurando obras, mesmo as que não foram feitas por ele.

Bolsonaro não sabe governar. Sua agenda se resume à defesa dos clubes de tiro, onde seus filhos gostam de brincar, ao desregramento do trânsito, às vantagens corporativas de militares e policiais. Presidentes assim em épocas difíceis costumam criar falsos adversários, mentir sobre a realidade e entrar em campanha. Bolsonaro usou as três técnicas e com elas tenta encobrir sua incapacidade administrativa.

Entre Bolsonaro e seu objetivo há o tempo e os limites dos cofres públicos. Mesmo que o ministro da Economia aceite ceder, ele sabe que não pode ser por muito tempo. O Renda Brasil não terá o mesmo valor, nem a mesma amplitude do auxílio. Vai decepcionar muita gente. Para ter recursos precisará acabar com benefícios que tem defensores. O abono salarial, recebido por trabalhadores que ganham até dois pisos salariais, o seguro defeso, dado a pescadores em época de desova dos peixes, e a farmácia popular, que reduz o preço dos remédios para determinada faixa da população. Para acabar com esses programas será preciso travar batalhas difíceis.

Paulo Guedes é um defensor dos cofres públicos incomum. Ele cede mais facilmente aos argumentos do presidente. Bolsonaro pode dizer a ele que em 2023, depois de se reeleger, ele então privatizará, diminuirá o tamanho do Estado, abrirá a economia, mas que agora não dá porque precisa lutar contra os inimigos da esquerda que atacam seu governo. O ministro é inteligente, mas cairá nesta conversa facilmente.

Entretanto, chegará o dia em que o mercado verá que o rei está nu. Bastará olhar os números. A despesa primária este ano está indo para R$ 1,98 trilhão, o que é 27,6% do PIB. No ano que vem, terá que ser reduzida para 19,6% do PIB, em 2022, para 19,2%. Isso acontecerá por força do teto de gastos. Parte do governo quer que essa queda seja mais lenta. Mas a dívida está indo para 98% do PIB. E os juros futuros já ligaram o pisca-alerta.


Bruno Boghossian: Guedes ganha sua sétima vida, mas se torna o ministro mais frágil do governo

Com garantias de permanência do auxiliar, Bolsonaro força recuos e mantém ruídos na relação

Ainda na eleição, Jair Bolsonaro tentou abafar os primeiros rumores de que Paulo Guedes deixaria sua equipe. O economista era alvo dentro do comitê de campanha por sugerir a criação de um imposto nos moldes da velha CPMF. “O Paulo segue firme”, afiançou o candidato.

Apesar do aval público, o presidente manteve o conselheiro sob risco permanente. Bolsonaro precisou defender o auxiliar outras seis vezes. Negou sua demissão e simulou apoio a sua agenda. Em quase todos os casos, porém, forçou o ministro a recuar e preservou os ruídos da relação.

Quando o fantasma do novo imposto incomodou a campanha de Bolsonaro, após o primeiro turno, o candidato quis proteger o economista. Disse que a ideia da CPMF era “um ato falho” e que não criaria novos tributos. Guedes ainda insiste, mas o chefe nunca abraçou o plano.

Na largada do mandato, os atritos da reforma administrativa levaram o presidente a repetir o script. Em outubro, Bolsonaro defendeu a pauta do ministro e disse que havia “100%” de confiança entre os dois.

Dois meses depois, disse estar “muito feliz com esse casamento hétero com o Paulo Guedes”, mas mandou abrandar a proposta que mudaria as regras do funcionalismo. “A equipe econômica entendeu”, comunicou. O texto foi para a gaveta.

No Carnaval seguinte, Guedes voltou a ser um problema. O ministro chamou servidores de parasitas e disse que, se o dólar estivesse mais barato, as empregadas domésticas iriam à Disney. “Ele vai ficar conosco até o último dia”, reagiu o presidente.

Bolsonaro refez o teatro em abril, na disputa entre o economista e os ministros que pediam mais dinheiro para obras. “O homem que decide a economia no Brasil é um só”, sentenciou. O presidente, logo depois, se juntou ao coro dos gastadores.

Sob pressão para abrir o cofre, Guedes ganhou sua sétima vida na segunda (17). Desta vez, Bolsonaro disse que a saída do auxiliar “nunca foi cogitada”. Com tantas garantias de permanência, ele se tornou o ministro mais frágil da Esplanada.


Ruy Castro: Sem caráter, como toda nuvem

Os eleitores de Bolsonaro o olham e ele está de um jeito; olham de novo e já mudou

A frase é conhecida: “Política é como nuvem —você olha e ela está de um jeito; olha de novo e já mudou”. Deve ter sido inventada na Europa do século 18, mas, no Brasil, é atribuída ao mineiro Magalhães Pinto (1909-1996). Em março de 1964, como governador de Minas Gerais, ele se passava por aliado do presidente João Goulart. No dia 31, sentindo a mudança na nuvem, partiu para derrubá-lo. Mas, ao contrário do que esperava, não ganhou nada com isso. Bem feito, quem o mandou estar com a cabeça nas nuvens?

Há políticos que mudam tanto que nem as nuvens os acompanham. Vide Jair Bolsonaro. Só os papalvos o acreditavam diferente, mas de hora em hora se parece mais com os políticos que fingia combater. Ao sentir, por exemplo, que suas bravatas o estavam isolando, fez como todos os governos antes dele —comprou o centrão, com ministérios, bancos e verbas. Uma das moedas dessa compra foi passar o pano em Michel Temer e mandá-lo oficialmente ao Líbano.

A Lava Jato, em nome da qual Bolsonaro se elegeu, tornou-se a inimiga a destruir, no que ele se juntou a Lula, José Dirceu, Gleisi Hoffmann, Temer, Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Renan Calheiros, Romero Jucá e, agora, Aécio Neves, Geraldo Alckmin e José Serra, todos, por acaso, políticos cujas contas não fecham.

Há dias, José Sarney insinuou que deseja uma aproximação —que Bolsonaro, se for esperto, aceitará. Sarney é indispensável para qualquer governo que queira se garantir, motivo pelo qual Lula e Dilma Rousseff se deram tão bem com ele durante 14 anos. Bolsonaro, aliás, refreou seu desprezo pelo Nordeste e, como Lula, também decidiu garantir lá os votos para sua reeleição. Mas, para isso, terá de gastar dinheiro que não tem, no que ameaça ser acusado de irresponsabilidade fiscal, como Dilma.

Os bolsonaristas não elegeram um mito, como eles acreditam, mas uma nuvem —sem caráter, como toda nuvem.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Elio Gaspari: Um terreno baldio chamado Palocci

O comissário petista avacalhou as delações

Não foi por falta de aviso. Em 2018, quando se falava numa eventual colaboração de Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda de Lula e quindim da banca, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, da Lava-Jato, dizia que aquilo que poderia ser uma delação do “fim do mundo” estava mais para “fim da picada”. Palocci negociava com o Ministério Público, mas sua colaboração foi rebarbada. O doutor estava na cadeia, onde cultivava uma pequena horta. Começou a conversar com a Polícia Federal e com ela conseguiu fechar um acordo que o levou para casa. Passaram-se alguns meses, e Carlos Fernando voltou à carga: “O procedimento de delação virou um caos”.

De nada serviram as advertências. O caos prosperou, e a colaboração de Palocci, com suas 86 páginas, foi astuciosamente divulgada pelo juiz Sergio Moro dias antes do primeiro turno da eleição de 2018.

Olhada de longe, foi explosiva. Examinada de perto, assemelhava-se à cabeça daqueles que Tancredo Neves queria maltratar: “Parece um terreno baldio, onde as pessoas que passam jogam o que querem”. Naquele terreno baldio havia lixo, mas lá estavam também coisas que poderiam ser investigadas. A ajuda do ditador líbio Muamar Kadafi às primeiras campanhas de Lula, por exemplo. Palocci indicou como o dinheiro teria chegado ao PT, mas não se conhece providência para puxar esse fio.

Num dos 39 anexos, Palocci contou à Polícia Federal que Lula acertou com o banqueiro André Esteves (BTG) uma conta-propina de R$ 10 milhões que seria abastecida pelos ganhos com informações privilegiadas. O comissário indicou detalhadamente como o banco foi favorecido. A PF quebrou sigilos, ouviu operadores e dois personagens que estavam colaborando com a Justiça.

Conclusão: “As afirmações feitas por Palocci parecem todas ter sido baseadas em dados públicos, sem acréscimo de elementos de corroboração, a não ser notícias de jornais”.

A Polícia Federal colheu o depoimento, Moro jogou-o no ventilador, e agora a própria PF concluiu que ali havia muito pirão e nenhuma carne.

A estrepitosa colaboração de Palocci incriminou algumas das maiores empresas do país, constrangeu cidadãos, alimentou vinditas e ações espetaculosas. O encanto que o andar de cima teve pelo então ministro da Fazenda permite supor que ele mantivesse relações promíscuas com alguns maganos. O médico que o PT elegeu prefeito de Ribeirão Preto em 1992 acumulou considerável patrimônio, devolveu uma parte, ralou uma cadeia e hoje está preso em casa. Tornou-se símbolo do “fim da picada” e do “caos” previstos e denunciados pelo procurador Carlos Fernando. Sua colaboração, liberada durante a campanha eleitoral pelo juiz que desafortunadamente viria a aceitar o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, caminha para ser o que sempre foi: uma ardilosa construção para tirá-lo da carceragem de Curitiba.

Palocci transformou em realidade a piada do advogado que, na madrugada de 24 de agosto de 1954, teria sido chamado para atender um cliente preso com uma faca ensanguentada, saindo de um quarto de pensão do Catete onde estava, morta, uma mulher. O advogado não sabia o que fazer, até que, às oito e meia da manhã, um rádio anunciou o suicídio de Getúlio Vargas.

O rábula virou-se para o delegado e disse: “Doutor, esses dois eventos são conexos.”


Vera Magalhães: Alô, alô, marciano

Marciano desavisado que olhasse as manchetes do Brasil nesta terça-feira acreditaria nos versos de Rita Lee, segundo os quais 'pra variar estamos em guerra'

O marciano desavisado que olhasse as manchetes do Brasil nesta terça-feira, uma semana antes do prazo final para o envio do Orçamento de 2021 ao Congresso, acreditaria nos versos de Rita Lee, segundo os quais “pra variar estamos em guerra”.

O senhor da guerra é Jair Bolsonaro, cuja última diatribe é esquadrinhar uma divisão de recursos que privilegia a Defesa em detrimento da Educação durante uma pandemia que vitimou centenas de milhares, continua comendo solta e deixou estudantes em casa por um ano, muitos dos quais ao Deus-dará.

Pelo último esboço da proposta que tem de ser enviada até o dia 31, a Defesa teria R$ 8,2 bilhões a mais de dinheiro que a Educação.

Em tempos de uma “briga danada” pelo Orçamento, como afirma o próprio presidente, a escolha de prioridades diz tudo sobre o governo de turno, mais preocupado em recompor o que considera “injustiças” com os militares cometidas desde a redemocratização, que na verdade são apenas um tremendo reforço a privilégios seculares.

Enquanto isso, num país em que uma menina de 10 anos tem de ser submetida a um aborto legal porque engravidou do tio que a estuprava seguidamente desde os 6, educar crianças e jovens não é uma urgência.

Bolsonaro pode estar se sentindo com a bola toda dada sua circunstancial subida nas pesquisas. Mas essa receita descompensada de dilmismo fiscal, populismo nacionalista à la Médici e delírios chavistas de militarização não têm como resultar em boa coisa na plena vigência de alguns estatutos legais.

São eles a Constituição, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a já condenada lei do teto de gastos, pelos quais os demais Poderes precisam zelar. Paulo Guedes resolveu ficar e tapar de novo o nariz a tudo que está sendo feito pelo chefe, e que representa a negação cabal de sua doutrina liberal.

Agora também parece disposto a bater continência e abrir as burras da Viúva para um projeto de hipertrofia da Defesa que não esconde a velha crença de Bolsonaro de que se, lá na frente, precisar fechar o STF e o Congresso, vai precisar do cabo e o soldado satisfeitos e engajados no seu projeto.

PARTIDOS: Recuperação de Bolsonaro embaralha cenário para 2022
A momentânea reação de Jair Bolsonaro nas pesquisas acabou por embaralhar ainda mais o já embaraçado novelo partidário brasileiro. O maior nó é o verdadeiro “plot twist” que pode fazer com que os bolsonaristas depois de rodar e rodar voltem ao PSL velho de guerra.
Se acontecer, será um recasamento de conveniência, sem amor algum envolvido e com ainda mais desconfiança que da primeira união.

Pragmático às raias da tosquice, Bolsonaro admitiu na última live nas suas redes sociais que o tal Aliança pelo Brasil encalhou, depois de tanta pompa e circunstância em seu anúncio.

Depois de desovar filhos e aliados em legendas aleatórias, como o Republicano de Marcelo Crivella, e flertar com o PTB do condenado e ex-preso Roberto Jefferson, o capitão admite voltar à velha casa alugada.

Não são os belos olhos de Luciano Bivar ou a tendência do presidente à conciliação que inspiram esse movimento, mas o cofre do Fundo Partidário, algo que Bolsonaro nunca engoliu que, tendo sido conquistado às suas custas, ficasse para trás no divórcio.

O barata voa com a súbita ascensão da popularidade de Bolsonaro também acirrou os ânimos no Partido Novo. Assim como entre os “farialimers” (com licença, Raul Juste Lores), na sigla, há quem alimente a esperança de que o ministro Paulo Guedes dispute com João Amoêdo a candidatura novística em 2022.

O plano é incentivado pelo empresário Salim Mattar, que deixou o Ministério da Economia, mas segue próximo a Guedes, tem ascendência sobre uma ala da bancada federal da sigla e não esconde o desejo de jogá-la de vez na base aliada.

Isso enquanto o fundador do partido defende que candidatos a prefeito e atuais detentores de mandato do Novo se afastem o quanto antes do governo iliberal de Bolsonaro.

A disputa tende a esquentar à medida que a campanha municipal for para a rua e ficar evidente que muitos candidatos do Novo são, na verdade, bolsominions que trocaram o amarelo pelo laranja, que está mais na moda.


Rosângela Bittar: O artilheiro e seu canhão

Com um profissional no papel de formulador da tática, Bolsonaro foi cuidar dos disparos de canhão

O primeiro sinal para o início do espetáculo da sucessão soou como um alarme. E os adversários de Jair Bolsonaro na disputa à Presidência acordaram, embora tarde. Luciano Huck, que já teria decidido disputar, permanece indiferente ao tempo e não se anuncia. O que não lhe tira a vantagem de ser o candidato mais perto do povo, mas aprofunda sua desvantagem de distanciamento do mundo político. Desperdiça a campanha municipal como palanque ideal para uma aproximação necessária da máquina indispensável à disputa eleitoral.

Empenhado em tirar efeito das providências do Estado no combate à pandemia, João Doria está em situação oposta. Candidato mais próximo da máquina política, está sem condições, no momento, de mergulhar no burburinho municipal e misturar-se ao povo.

Ciro Gomes, sem mandato ou cargo que fixe sua imagem, e desgastado pela memória de embates anteriores, parece não ter um plano de recomeço. Talvez ainda intimidado pelo jogo petista que já voltou às mesas de bar: Lula poderá ser candidato? Fernando Haddad terá fôlego?

Sobre Sérgio Moro o que ressalta é a falta de iniciativa para transpor o paredão artificialmente erguido para que sua candidatura se viabilize. Falta-lhe de um tudo e, como para os demais, o tempo de construção é agora.

Um novelo que precisa ser urgentemente desfeito sob pena de a reeleição de Bolsonaro se consolidar muito cedo. O candidato no futuro que está no cargo presente pode abusar da oferta de benesses ao eleitorado e aos cabos eleitorais. Se acrescentar a estas vantagens a de não ter adversário, quando se sabe que terá, apenas adia-se a brecha da fraqueza.

Fortes candidatos a deputado federal, fundamentais na campanha presidencial, devem sair do quadro de perdedores das eleições municipais. O projeto em que vão se engajar precisa estar claro, no dia seguinte. Enquanto Bolsonaro for o único palanque presidencial na campanha municipal, sua vitória é presente de mão beijada.

Política é isto, correr atrás. Sem ritual, dispensando apresentação e até o próprio anúncio de sua nomeação, o experiente Ricardo Barros assumiu a liderança do governo com apenas um aviso aos navegantes. Mas é como se tivesse dito o que todos ouviram: “Coube-me, como professor, formar a aliança majoritária; basta me dizerem, no momento certo, para quê”. Com um profissional no papel de formulador da tática e da estratégia, retaguarda coberta, Bolsonaro foi cuidar dos disparos de canhão.

Colocou nas ruas uma campanha na clássica tradição brasileira. Para os pobres, demagogia. Dinheiro na veia da especulação, para os ricos. Daí, a questão. Até quando o assistencialismo continuará decidindo as eleições no Brasil? País, o nosso, que se projeta na fusão de imagens políticas da Venezuela, da Bolívia e da Argentina, para consolidar o pobre retrato eleitoral da maltratada SudAmerica.

O sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso prevê que assim será enquanto a desigualdade se mantiver brutal. E a indiferença da classe dominante recrudescer, por interesse eleitoral ou inação. “Ela (a classe dominante) não se abala.”

Não está fechado o espaço para um projeto alternativo ao assistencialismo, mas, como se sabe, não há partidos interessados em apresentá-lo. Não é impossível, também, que alguém, individualmente, vocalize um caminho novo, como admite o ex-presidente. “Mas é preciso que o povo acredite.”

A opinião pública sente-se traída. Bolsonaro conseguiu fazer crer que romperia com a era PT. Na primeira oportunidade, assumiu métodos e medidas que combatia.

Há, sim, uma expectativa de que ainda aparecerá alguém capaz de provar que a era Bolsonaro precisa ser encerrada. Se não, e a economia não atrapalhar, o populismo demagógico, mais uma vez, vestirá a faixa.


Bernardo Mello Franco: Cavalo de Troia

O ministro Edson Fachin considera que as eleições de 2022 estão em risco. Em palestra na segunda-feira, o vice-presidente do TSE alertou para o avanço do autoritarismo no Brasil. Ele disse que é preciso proteger a democracia antes que seja tarde demais.

Sem citar nomes, Fachin afirmou que as ameaças começaram na última disputa presidencial. “A escalada do autoritarismo no Brasil após as eleições de 2018 agravou os males da saúde da democracia”, disse, no VII Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral.

Nas palavras do ministro, o país pegou a “contramão da História” e passou a conviver com “surtos arrogantes e ameaças de intervenção”. “O futuro está sendo contaminado por despotismo, e lamentavelmente nos aproximamos do abismo”, avisou.

Fachin recorreu à Grécia Antiga para explicar a enrascada do Brasil atual. Ele disse que “há um cavalo de Troia” dentro da fortaleza democrática erguida pela Constituição de 1988. “Esse cavalo de Troia apresenta laços com milícias e organizações envolvidas com atividades ilícitas”, acrescentou.

O ministro citou o livro “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Os autores descrevem a nova tática dos autocratas: em vez de promover rupturas violentas, minam a democracia por dentro para se eternizar no poder.

Segundo os cientistas políticos, os inimigos da democracia incentivam a violência, demonizam adversários e sabotam as regras do jogo, ameaçando não aceitar derrotas nas urnas. Para Fachin, o Brasil já apresenta todos esses sintomas de “recessão democrática”. “As eleições presidenciais de 2022 podem ser comprometidas se não se proteger o consenso em torno das instituições”, alertou.

Em março, Jair Bolsonaro declarou que a disputa de 2018 teria sido fraudada para impedir sua vitória no primeiro turno. Passaram-se cinco meses e ele nunca apresentou provas da acusação. Em desvantagem nas pesquisas, Donald Trump passou a dizer que só será derrotado se a eleição americana for manipulada. É questão de tempo para o capitão imitar mais essa.