Day: junho 9, 2020

Coronavírus: Grandes produtoras despencam e pequenas decretam falência

Em meio à pandemia, empresas de plataformas de streaming são grandes beneficiadas, avalia Lilia Lustosa

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A pandemia da Covid-19 fechou salas de cinema, interrompeu filmagens, adiou lançamentos e fez com que milhões de profissionais perdessem seus empregos, de acordo com artigo da crítica Lilia Lustosa, publicado na 19ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade.

Acesse aqui a 19ª edição da revista Política Democrática Online!

De acordo com a crítica de cinema, em meio a esta crise sem precedentes na história do cinema, as empresas de plataformas de streaming saem como as grandes e, talvez, únicas beneficiadas, com suas ações atingindo índices altíssimos e com o número de clientes aumentando a uma velocidade “de contágio” maior que a do próprio coronavírus.

“Um a zero para a telinha nesta fase da era do streaming! E, sem querer tomar partido nessa disputa, a meu ver, incongruente, a sobrevivência da sétima arte parece estar assim ao menos assegurada, já que assistir a filmes se tornou um dos grandes antídotos para sobreviver à dura realidade do confinamento”, afirma Lilia, no artigo publicado na revista Política Democrática Online. “Nunca se assistiu a tantos filmes e séries como agora”, observa.

Lilia observa que as ações das grandes produtoras despencaram, e a maioria dos exibidores e das pequenas produtoras está decretando falência. “E o pior, tudo isso ainda sem solução no curto prazo, já que teatros, cinemas e shows estão entre as últimas atividades a serem retomadas, em função de suas naturezas aglomerativas”, lamenta a autora.

Independentemente do que está por vir, neste cenário pós-pandemia, o Estado terá papel decisivo na retomada da atividade cinematográfica, afirma Lilia, no artigo da Política Democrática Online. “No caso brasileiro, com vários lançamentos adiados e produções interrompidas, a Ancine pode (e deve) ser a grande ferramenta de reconstrução do cinema nacional”, sugere a autora.

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O Globo: Ex-marqueteiro de Bolsonaro rompe o silêncio - 'O Partido dos Robôs sem Voto'

Jorge William, da Agência O Globo

O empresário Marcos Aurélio Carvalho, um dos donos da AM4, foi peça-chave na campanha presidencial de Jair Bolsonaro em 2018. No fim daquele ano, contudo, deixou a equipe de transição de Bolsonaro após o vereador Carlos se incomodar com uma entrevista que deu ao GLOBO. Depois de meses em silêncio, Carvalho aceitou escrever um artigo para o Sonar sobre internet e política. Abaixo o artigo do ex-marqueteiro que ajudou Bolsonaro a virar presidente:

O Partido dos Robôs sem voto

A democracia moderna foi atravessada por um desafio inimaginável até pouco tempo: a ocupação da pólis por seres irreais. Quem são esses usuários que diariamente emplacam temáticas políticas nos trending topics do twitter, com uma capacidade quase imediata de mobilização em torno de hashtags perfeitamente bem combinadas, perfeitas até demais para serem verdade?

Há uma falha no teste do pato. “Se ele parece com um pato, nada como um pato e grasna como um pato, então provavelmente é um pato” – diz o ditado. E o usuário que se parece com eleitor, reclama como eleitor, apoia como eleitor, mas usa hashtags milagrosamente lançadas, em questão de minutos, aos assuntos mais comentados do momento? É robô.

Tudo que acontece de mais relevante na política nacional vira uma hashtag, ou mais provavelmente duas: uma de apoiadores e outra de detratores. Inicia-se, então, a batalha digital do dia.

Existem, porém, as batalhas reais e as batalhas que nascem forjadas e se tornam reais. As primeiras não deixam de interessar à análise do cenário dicotômico, mas as segundas merecem especial atenção crítica. Robô não vota. Então por que importa tanto o tumulto que ele faz? Porque a movimentação de usuários irreais tem o condão de pautar o debate. A aparência de que um assunto está sendo comentado faz com que ele passe a ser comentado de fato. Está feito o sequestro da pauta política de um país.

A movimentação de uma expressiva quantidade de usuários falsos tem a perigosa capacidade de criar uma bolha inflacionária política ou eleitoral. O que significa isso? Que ela traz uma falsa robustez a uma ideia, a uma pessoa ou a uma causa. Esse conjunto de robôs desprovidos de título de eleitor cria uma “bolha” de apoiadores - frágil, posto que mentirosa. Mas a demonstração da ampla adesão à ideia chama mais gente, desta vez pessoas reais. É uma bolha inflacionária política e eleitoral, na medida em que carrega uma pessoa nos ombros invisíveis de celulares conectados a contas falsas e entrega a ombros verdadeiros de quem sentiu que estava aderindo a um forte movimento, “que subitamente eclodiu”. Então, pouquíssimo importa que robô não vota, não comparece a manifestação, não bate panela na janela, desde que ele consiga fazer pessoas reais, capazes de tudo isso, aderirem ao movimento.

Não pode ser subestimada a grande susceptibilidade de uma pessoa real se juntar a um movimento de origem falsa. As pessoas entram diariamente nas redes sociais em busca de um tema para comentar. Não é mais só uma questão de programação comportamental, é também uma questão de pertencimento. Se uma hashtag entra para os trending topics, para muitos isso significa quase automaticamente que o assunto em torno dela merece um comentário ou uma ação.

Muita ficção científica foi produzida no passado, especulando sobre robôs usurpando empregos e até postos de comando humanos; mas pouco se imaginou sobre robôs usurpando o debate público humano, o debate sobre a própria forma de uma sociedade humana se organizar e se deixar liderar.

Qual é o grande mal disso? Justamente pela fugacidade do “assunto do momento”, a batalha política passou a ser diária, pontual e pormenorizada. Houve um claro esvaziamento da política de identificação de ideias e propostas, em favor da política de identificação de posturas e falas, cotidianamente. É um rumo perigoso para se tomar: o debate político deixar de ser sobre ideias e passar a ser sobre circunstâncias. A transitoriedade do apoio gera graves crise de representatividade e de capacidade de se liderar, pelo prazo necessário para fazer qualquer diferença.

Se esses fatos estão postos e estamos falando de uma realidade enquanto ela acontece (vide batalha de hashtags do dia), o que se há de fazer? Muito se debate, acertadamente, sobre regulação, investigação e inibição da presença digital fake. Mas conhecem-se os desafios de se controlar algo que é pouco rastreável, que desconhece fronteiras territoriais e faz-se esbarrar em alcances jurisdicionais.

Sem dúvidas, a melhor forma de encarar é escancarar. Não se questiona a importância de a comunidade digital global continuamente trabalhar para evoluir em segurança, rastreabilidade e confiança; e de as comunidades jurídicas amadurecerem os debates sobre controle, responsabilização e desmobilização. Mas a contribuição mais eficaz e imediata virá – e já tem vindo – das iniciativas de jogar luz sobre as trevas da mobilização robotizada em torno de pautas políticas.

Não tem fidelidade partidária no Partido dos Robôs sem Voto. É preciso apostar alto na “trollagem” contra os robôs. Isso significa expor suas contradições, suas obviedades, suas falhas, seus movimentos e suas inconsistências. Talvez seja essa uma boa releitura moderna do enigma da esfinge. Precisamos decifrar as redes a serviço do fake, sob pena de vermos devorado o debate público tal como se conhece. Nas urnas: um homem, um voto. Nas redes: um homem, um post.


El País: Moraes manda Governo Bolsonaro retomar divulgação total de dados da covid-19

Ministro do Supremo concedeu liminar a pedido de partidos de oposição. Antes, pasta havia fornecido boletim incompleto. Mortes vão a 37.312, segundo consórcio de veículos de imprensa

O Governo Bolsonaro sofreu mais um revés nas mãos do Supremo Tribunal Federal. No fim da noite de segunda-feira, o ministro da Corte, Alexandre de Moraes, concedeu uma liminar aos partidos oposicionistas Rede e PCdoB que obriga o Ministério da Saúde a restabelecer o formato de divulgação integral dos dados da pandemia do novo coronavírus. A pasta, dominada por militares e sem ministro titular desde a saída de Nelson Teich, decidiu, na sexta, aplicar uma mudança drástica no boletim diário sobre a pandemia, incluindo a ocultação de dados totais sobre a covid-19 no Brasil. A alteração foi alvo de uma bateria de críticas, do Congresso Nacional à Organização Mundial da Saúde (OMS), e havia pressionado o ministério a recuar em alguns pontos e anunciar uma nova plataforma, ainda não tornada pública, mesmo antes de a decisão de Moraes colocar Supremo e Planalto mais uma vez em rota de colisão.

Nesta segunda-feira, os representantes da Saúde fizeram uma apresentação à imprensa que acabaram por aprofundar a confusão em torno do tema. A pasta exibiu dados incompletos: no balanço diário consolidado da doença, ficaram de fora os números de ao menos quatro Estados. Também foi deixado de fora a informação de quantos óbitos suspeitos de terem sido causados no país pelo novo vírus seguem em investigação. Depois de atrasar para quase 22h o balanço durante toda a semana passada, agora a pasta diz que fará a divulgação diariamente por volta das 18h.

No boletim desta segunda-feira, os números oficiais foram: 15.654 casos novos da doença e 679 óbitos em 24 horas, totalizando 37.134 óbitos por covid-19 e 707.412 infecções no país. Em vez do gráfico com toda a informação resumida, como vinha fazendo sempre junto à atualização de um site, o ministério apresentou os índices em dois locais distintos. Questionado, a própria pasta admitiu que os números oficiais para o dia 8 de junho poderiam ser maiores, já que o balanço não incluía os dados atualizados dos Estados de Alagoas, Santa Catarina, Goiás e Distrito Federal. Segundo a pasta, as Secretarias de Saúde não haviam enviado as informações até o fechamento do boletim desta segunda-feira. “No caso dos Estados que não enviarem os dados a tempo, manteremos os números do dia anterior”, explicou o coronel Élcio Franco, secretário-executivo da pasta, que segue sem ministro titular em plena crise.

As seguidas controvérsias e atrasos na divulgação dos dados levaram à formação de um consórcio de veículos de imprensa —G1GloboExtra, EstadãoFolha de S. Paulo e UOL— para monitorar de maneira independente os dados junto às Secretarias de Saúde dos Estados. Neste levantamento, que estreou nesta segunda, 37.312 mortes por covid-19 e 710.887 casos confirmados. A compilação mostra que foram notificados 849 óbitos nos 27 Estados e 19.631 casos nas últimas 24 horas.

Total de mortos

Na última sexta-feira, o ministério havia excluído o número total de casos confirmados e de óbitos por covid-19 registrados no país, o que agora foi revertido pela liminar de Moraes. Depois que a imprensa e outras instituição acusaram o Governo de falta de transparência, a pasta liderada interinamente por Eduardo Pazuello já havia voltado atrás e afirmado que tais dados consolidados estão disponíveis no painel covid-19 do Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conass), alimentado pelas secretarias estaduais e no Datasus, a hermética plataforma de dados do SUS. Em nenhum dos dois está disponível, no entanto, o número de óbitos ainda em investigação, um dado que antes era divulgado diariamente e sinalizava o gargalo na análise de testes pelo país. Questionado pelo EL PAÍS sobre esse dado, o ministério não respondeu.

A pasta informou que vai adotar —ainda sem especificar quando— um novo modelo de divulgação, com base na data de ocorrência dos casos (quando o paciente informa os primeiros sintomas da doença) e dos óbitos, e não mais pela data de notificação deles no sistema, como vinha acontecendo desde o início da pandemia e como fazem praticamente todos os países do mundo. Como o Brasil ainda não conseguiu implementar estratégias de testagem em massa, o temor é que novo modelo apenas transforme o atraso nos resultados em uma forma de diluir a gravidade da pandemia no país.

“Temos de garantir transparência ativa, em detalhes, dos dados do Brasil. Isso nunca aconteceu desde 1975”, criticou Wanderson de Oliveira, o ex-secretário nacional de Vigilância em Saúde, em conversa com o biólogo Átila Iamarino. Oliveira contou que o sistema de vigilância epidemiológica brasileiro foi criado justamente um ano após a ditadura tentar esconder um surto de meningite em 1974. “O que mata o fungo é a luz do sol”, disse.

O cientista Vítor Sudbrack, físico que faz parte da equipe do Observatório Covid-19 BR, que analisa os dados da pandemia no Brasil, explica que a nova metodologia aplicada pelo ministério pode, sim, permitir ter um panorama mais real de como a doença de comporta no país, desde que seja feita de forma correta e sem ocultação de dados. “Na maioria dos casos, os primeiros sintomas acontecem 30 dias antes da notificação. Por isso, é bom que o Governo se atenha às datas de ocorrência e de óbito, porque aí temos um retrato do real impacto da doença, sem o atraso da notificação, que é arbitrária”, diz.

Pela análise feita no observatório, em alguns Estados, 61% dos óbitos levam mais de 10 dias para entrar no sistema do Ministério da Saúde, de acordo com Sudbrack. Ele explica ainda que o modelo prevê a correção sobre os dias anteriores, assim, uma morte ocorrida, por exemplo, no dia 5 de junho, mas cuja investigação só se conclua depois da divulgação do boletim epidemiológico de 8 junho, ainda deve entrar na soma total de vítimas fatais no país. “Resta ver se é isso que o Governo vai fazer de fato”, diz Sudbrack, cético quanto aos “truques” que o Executivo de Jair Bolsonaro tem usado para divulgar os números da pandemia.

Sudbrack conta que, no sistema Sivep-Gripe, do SUS, uma das base de dados usada pelo Observatório Covid-19 BR, também há discrepância entre os números nacionais e os das secretarias de Saúde estaduais. “Vimos que a base nacional tem menos casos que as estaduais. Em relação aos números do Estado de São Paulo, por exemplo, há 50% de casos a menos na base nacional. Já perguntamos ao Ministério da Saúde a que se deve a essa mudança, se foi aplicado algum filtro específico nos números, mas não tivemos resposta. Assim, tudo o que podemos fazer é especular", diz. Questionado sobre o tema, o Ministério da Saúde afirma que os erros nos boletins se devem à “duplicação” de dados e que “vem aprimorando os meios para a divulgação da situação nacional de enfrentamento à pandemia".

“O Brasil precisa entender onde o vírus está, como controlar os riscos. A OMS espera que a comunicação seja consistente e transparente e entende que o Governo brasileiro continuará relatando diariamente dados sobre a incidência e mortes de forma separada”, cobrou o chefe do programa de emergências da organização, Mike Ryan, nesta segunda-feira.

Enquanto isso, a pressão interna sobre a pasta também era crescente. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) anunciou, após uma reunião com líderes políticos, que a comissão mista que acompanha as ações de combate ao novo coronavírus vai trabalhar a partir de agora com os números fornecidos pelas secretarias estaduais de saúde e não pelo ministério. “É papel do Parlamento buscar a transparência em um momento tão difícil para todos”, disse ele. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, havia informado, via Twitter, que cobraria o ministro interino Pazuello sobre a divulgação de dados em reunião virtual nesta terça-feira. Antes da decisão de Moraes, Antonio Dias Toffoli, presidente da STF, já havia se unido ao coro das críticas: “Vimos hoje a realização de uma parceria colaborativa entre diversos veículos de comunicação para dar transparência aos dados da pandemia no país. A transparência é mandamento constitucional. São bem-vindas todas as medidas que visem reforçá-la”, disse ele, num evento no qual criticou as atitudes “dúbias” de Jair Bolsonaro em relação à democracia.


José Casado: Bolsonaro dá caixão e enterro

Governos em realidade paralela são casos clássicos na política

Jair Bolsonaro resolveu torturar estatísticas sobre as mortes de brasileiros pela Covid-19 até que confessem só uma “gripezinha”. Liquida a própria credibilidade, pois se não é possível confiar nos dados oficiais sobre a vida e a morte, por que se deveria acreditar nos números da economia?

Governos em realidade paralela são casos clássicos na política.

George III, rei da Inglaterra, derrotou Napoleão e impôs a hegemonia britânica. No 4 de julho de 1776, registrou em diário: “Nada de importante aconteceu”. Nada, só a declaração de independência dos EUA. Morreu cego, surdo e louco, depois de falar horas sem parar aos cortesãos — a reunião ministerial da época.

Luis XVI, marido de Maria Antonieta, era obcecado pela morte. Também anotou um “nada aconteceu” no 11 de julho de 1789, ao demitir o ministro da Fazenda, Jacques Necker, fiador da estabilidade do reino. Três dias depois deu-se a Revolução Francesa. Ele perdeu a cabeça, literalmente.

A psicopatia de Bolsonaro com mortes merece estudo, mas obedece a uma lógica peculiar de luta pelo poder. Ele nega porque não admite seu desgoverno na pandemia.

A ruína é visível na Saúde. E é notável a inépcia no socorro a micros, pequenas e médias empresas, donas de 52% dos empregos no país onde 54 milhões estão sem renda.

O presidente-candidato teme a conta política dos mortos. Os 37 mil já superam a população somada das quatro cidades paulistas onde viveu (Glicério, Ribeira, Sete Barras e Eldorado) antes de ser premiado com a inscrição na Aman, em Resende (RJ). Terá de lidar com esse mundo real se chegar ao fim do mandato e tentar a reeleição.

Bolsonaro renega a pandemia, mas Onyx Lorenzoni, operador da sua campanha em 2018, acaba de abrir um guichê para ajudar prefeitos a “cobrir despesas” dos funerais da Covid-19. Está no Diário Oficial. O governo não reconhece a mortandade, mas, numa cortesia pré-eleitoral, topa pagar caixões e enterros.


Carlos Andreazza: Pedaladas funerárias

Temos um governo que, oficial e criminosamente, descaracteriza números de doentes e mortos pela peste, prática fascistoide que compõe a gramática golpista

Não deveria haver gente protestando nas ruas. Há uma pandemia; a sanha de um vírus traiçoeiro. Há também, no entanto, o vírus do bolsonarismo; a forma agressiva como, explorando a janela de oportunidades escancarada pelo enfrentamento à Covid-19, Jair Bolsonaro e seu projeto autocrático de poder aceleram o programa de radicalização para infeccionar a democracia liberal. Crise é chance. Crise é pretexto.

Agora, por exemplo, temos um governo que, oficial e criminosamente, descaracteriza números de doentes e mortos pela peste — prática fascistoide que compõe a gramática golpista. A ideia: que não haja fatos; que tudo seja controvérsia e sirva a formulações conspirativas. É a peste dentro da peste. As pestes dentro da peste. Uma delas: um militar, general, à frente do Ministério da Saúde, prestando-se ao papel de ser cavalo da vontade do presidente — que sobre toda a superfície do Estado tenta expandir a natureza meramente narrativa do fenômeno reacionário que encarna.

O que interessa: em campanha contínua, fabricar constantemente inimigos. A lógica é simples e influente. Como o establishment, sinônimo de “forças nada ocultas”, trabalharia para derrubar Bolsonaro, tudo quanto originário do sistema — da própria estrutura republicana — teria o fim de destruí-lo. Por exemplo, a consolidação e a exposição dos números de vítimas da Covid-19: ação para desestabilizá-lo.

Bolsonarismo é jogo de versões; investimento em dissonâncias, guerra cultural permanente — para isto, com a cumplicidade de militares, foi capturado o Ministério da Saúde. A multiplicação de helenos no governo — tragando o Exército — é muito mais perniciosa que os três ou quatro weintraubs que há.

Para defender este projeto de poder, com a adesão frequente do próprio Augusto Heleno, temos — há semanas — centenas de pessoas nas ruas; todas mui à vontade, sem a vigília policial, como merecem os patriotas ordeiros da ucranização. Manifestações governistas — não raro com a presença do mito — que pedem, a cada vez com maior desinibição, intervenção militar; mas com a ressalva de que para manter Bolsonaro no comando. O presidente presente convida aos atos e lhes chancela pauta e tom. Tão pacíficos — à parte um ou outro taco — quanto serão sempre encontros de democratas que demandam, pregações criminosas, os fechamentos de Congresso e Supremo.

O presidente presente chama às ruas e avaliza o tom também de seus opositores. Aí está. Outro grupo disposto a tomar riscos — e colocar em risco — por motivo político. Questionados sobre a irresponsabilidade de protestarem sob o bafo da praga, esses manifestantes dirão que têm pressa, que o bolsonarismo avança em seus propósitos golpistas — e que um vírus, o coronavírus, não pode servir de blindagem para que outro vírus, o bolsonarista, prospere. São argumentos poderosos, que abastecem um ciclo perigoso, cujo impulso original tem músculo num cálculo pessoal sobre a morte. Vale? A resposta é individual. Mas pergunto: quanto desse ímpeto — desse desejo por se medir contra o designado mal — terá matriz no ressentimento? O ressentimento, o veneno: a própria essência do bolsonarismo — daquilo que se quer vencer.

A mentalidade que nos dirige é a autoritária. Há um clima de revanchismo. É difícil falar em protesto pacífico. Seria simplificador. Estamos na mais baixa cavidade de uma depressão política aguda — e a linguagem que se normalizou é a da violência. De modo que, sim, a manifestação contra Bolsonaro foi pacífica na maior parte do tempo — e pacífico foi o comportamento da maioria de seus participantes, com o necessário destaque à centralidade da bandeira antirracismo.

Pacífica, majoritariamente pacífica, quase sempre em defesa da atividade política como forma de mediação — mas não só pacífica e nem sempre dentro das regras do trânsito político. Há nuances. Manifestações dentro da manifestação. Não examiná-las — ou tratá-las como irrelevantes — será fazer militância. Havia muitos sentimentos reunidos ali; entre os quais o ódio, ódio à burguesia, ódio à polícia, ódio bradado, costela da qual se desgarrou, como produto marginal do protesto, a falange para o choque, para o confronto, para a depredação. Talvez seja derivação inevitável. Mas não indomável; sendo possivelmente controlada, diluída essa franja, pela evolução madura do movimento — a ver — para pautas que, ao estabelecerem vínculos institucionais, sejam capazes de seduzir a sociedade. A do impeachment, por exemplo.

Ninguém se junta a uma manifestação, em meio a uma pandemia, para brincar. São sujeitos no limite. O caráter difuso dos atos atrai agendas várias. Circunstância também propícia à operação de oportunistas e infiltrados. Eu sei. De todo modo: a engrenagem perfeita para um circuito temerário; que — acercando-se da desobediência civil — arma gatilho para as intenções golpistas.

Não dou conselho a corajosos. Mas — importando imagem recente — não se vencerá Bolsonaro depredando Churchill.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro virou refém da gripezinha

Ao sonegar dados sobre a pandemia, Bolsonaro atenta contra a saúde pública e repete dois crimes da ditadura: a censura e a ocultação de cadáveres

Quase todos os líderes mundiais viram sua popularidade crescer na pandemia. Jair Bolsonaro viu a sua derreter, e agora virou refém da armadilha que montou para si.

O presidente sempre negou a gravidade da Covid-19. Chamou a doença de “gripezinha”, debochou das medidas sanitárias, comprou briga com prefeitos e governadores. Em março, ele garantiu que o país não ultrapassaria as 800 mortes. Com a conta se aproximando de 40 mil, passou a manipular as estatísticas oficiais.

No domingo, o Ministério da Saúde anunciou o registro de 1.382 óbitos em 24 horas. Pouco depois, o número encolheu para 525. Em uma hora e meia, sumiram 857 vítimas. Bolsonaro escancarou o motivo da maquiagem. Por ordem sua, a pasta começou a atrasar os boletins para esconder as mortes dos telejornais.

Ao sonegar informações, o presidente atenta contra a saúde pública e repete dois crimes da ditadura: a censura e a ocultação de cadáveres. Nos anos 70, o regime militar tentou esconder uma epidemia de meningite. Não funcionou na época e não tem chance de funcionar agora, na era da comunicação instantânea.

Numa democracia, a sociedade tem mais recursos para driblar a mentira oficial. O Congresso e o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde se ofereceram para compilar os dados. Os meios de comunicação foram mais rápidos e montaram um consórcio para fornecer números confiáveis.

Os negacionistas ainda colheram outra derrota. O empresário Carlos Wizard, que prometia recontar os mortos, desistiu de assumir um cargo em Brasília. Sua campanha contra a verdade havia começado a doer no bolso. Diante da ameaça de boicote dos consumidores, o autor de “Desperte o milionário que há em você” preferiu salvar os próprios negócios.

Preso à sua estratégia desastrada, Bolsonaro começa a ficar só. Na sexta, Donald Trump se distanciou do pupilo e citou o Brasil como exemplo a não ser seguido. Ontem um coronel surgiu na TV como a nova face do Ministério da Saúde. Vestia terno de papa-defunto e broche de caveira na lapela.


Míriam Leitão: O crime da desinformação

Ao tentar brigar com números da pandemia, tudo o que o governo conseguiu foi mais desgaste e exposição negativa

Quando os absurdos se tornam frequentes, o risco é perdermos a noção da gravidade. Sonegar informações de mortos e contaminados numa pandemia é crime. Tudo o que o governo Bolsonaro já fez nos últimos dias no Ministério da Saúde — tirar site do ar, divulgar números conflitantes, acusar governos estaduais de superfaturar a morte, desinformar deliberadamente — é abuso de autoridade. É também inútil. Os órgãos de imprensa anunciaram uma parceria inédita, e o Congresso, uma comissão mista especial de acompanhamento do coronavírus. No final do dia, o governo ensaiou um recuo, mas ainda deixou muitas dúvidas no ar. Divulgou dados incompletos, com menos mortes e casos em relação ao que foi apurado pelo consórcio dos jornais.

Democracia busca sempre maior transparência. Ditaduras escondem informações, brigam com os números, quebram termômetros, ameaçam quem informa, mudam metodologias para ver se conseguem fazer os dados corresponderem à versão que lhes convém. Numa pandemia, a falta de informação desorienta pessoas e administradores públicos e pode levar a decisões temerárias.

Numa crise, a comunicação confiável é uma arma poderosa na mão de governantes esclarecidos para ajudar na solução. É parte do tratamento. O Ministério de Saúde comandado por Luiz Henrique Mandetta entendeu isso. Aquelas entrevistas diárias ajudavam a esclarecer e informar. No início da pandemia, com tanto desconhecimento sobre o assunto, foi fundamental e sem dúvida salvou vidas por transmitir o senso de urgência e gravidade. No curto período Nelson Teich, a comunicação ficou mais opaca e o Ministério da Saúde se enfraqueceu. No interinato do general Pazuello, o Ministério da Saúde está sendo desmontado. A briga com os números é parte dessa conspiração.

A ideia que eles tentaram emplacar nos últimos dias no Ministério, de anunciar apenas as mortes confirmadas no dia, tinha vários defeitos. Primeiro e mais importante, deixaria alguns óbitos num limbo, dado que eles também tinham sumido com os dados consolidados. Segundo, interromperia o critério que vinha sendo usado e que era compreendido por todos já. Terceiro, eles mesmos se atrapalharam, como ficou claro na divulgação de dois números totalmente díspares anunciados para as mortes de domingo. Era de 1.382 e caiu para 525. Com manobras assim perde-se credibilidade. Ontem, eles avisaram que haverá novo site, prometeram divulgação de todos os números. O das mortes do dia, o das mortes consolidados no dia, e os dados gerais, acumulados. Tudo isso foi anunciado pelo secretário-executivo substituto, Élcio Franco. Ele ostentava uma caveira na lapela. Alguém deveria avisá-lo que, dadas as atuais circunstâncias, não deveria exibir tal medalha em uma entrevista no Ministério da Saúde.

O recuo de ontem pode não encerrar essa brincadeira trágica com as estatísticas. Foram dias atrasando deliberadamente a divulgação para tentar atingir — como explicou o presidente Bolsonaro — o Jornal Nacional. Tudo o que conseguiu com suas idas e vindas foi mais desgaste e exposição negativa. Há uma velha lei implacável: quem briga com os números acaba sempre perdendo.

É um espanto que o presidente consiga militares dispostos a incendiar o próprio currículo para seguir ordens estúpidas, como as que foram inspiradas em um notório e caricato áulico. O general Pazuello e seus coronéis, que militarizaram o Ministério da Saúde, fazem mal também à imagem da própria corporação à qual integram ou integraram. Sem traço de espinha dorsal se submetem a ordens esdrúxulas desprovidas de qualquer respaldo técnico. Quando a situação melhorar, quando chegar o dia em que vencermos o vírus, graças a quem agiu certo durante essa pandemia e graças sobretudo aos heróis da saúde, nós jornalistas seremos os primeiros a querer noticiar. E desta vez com alegria.

A confusão pode ser só sobre dados, mas não percamos a visão do todo. O que Bolsonaro tem feito durante esta pandemia é terrivelmente desumano. Desde o começo, negar a gravidade da doença, não ser solidário, derrubar ministros da Saúde, prescrever remédios como se médico fosse, atacar governadores e prefeitos, adiar a transferência de recursos para estados e municípios e impor a maquiagem do número de mortes. Bolsonaro sabota a saúde do povo brasileiro, estimula comportamentos temerários e perturba a ordem pública. Ele é o pior governante que poderíamos ter numa crise desta dimensão.


Merval Pereira: Cada um conta

Brigar com os números é uma tendência de todo governo autoritário ou populista, controlar a narrativa também

Seria uma grande notícia se o presidente Bolsonaro tivesse tomado a decisão de que não aceita mil mortes todos os dias, em consequência da Covid-19 e, ordenasse uma reunião de emergência para analisar que medidas teriam que ser tomadas na área da Saúde para evitar que esse número trágico se repetisse.

Sim, ele decidiu que não queria mais ver o anúncio de mais de mil mortos por dia, ou um morto por minuto. Mas não tomou medidas na área sanitária. Simplesmente decidiu maquiar as estatísticas para nunca mais ouvir o Papa Francisco lamentar no Angelus o fato “terrível” de morrerem mil pessoas por dia no Brasil.

Brigar com os números é uma tendência de todo governo autoritário ou populista, controlar a narrativa também. Stálin mandava apagar das fotos seus antigos aliados caídos em desgraça. O mais incrível é que o governo tem um ponto importante nessa discussão.

Se o número de mortes em 24 horas inclui as mortes ocorridas anteriormente, cujo diagnóstico de Covid-19 só agora foi confirmado, o total de mortes diárias está distorcido, embora o que importa, a soma total de mortos não mude. Se houvesse a separação das mortes nas 24 horas, e as confirmadas entre as que estavam na fila de suposição, a informação seria também correta, e a estatística mais esclarecedora.

Não está acontecendo, mas as mortes diárias podem, teoricamente, estar caindo, e as confirmadas crescendo, pois não temos testagem para determinar a Covid-19 em todos os pacientes.
O ministério da Saúde está uma confusão só.Agora prometem que vão dar as mortes notificadas no dia junto com a data em que ocorreram. Sem explicar como.

Acontece que o padrão é internacional, embora alguns Estados brasileiros separem os dados. O que importa é que o número de mortos anunciado naquele dia seja a soma dos mortos nas últimas 24 horas com a das mortes confirmadas. Mas o governo não faz a soma, nem apresenta os dois números separados. Simplesmente some com parte dos dados.

O que revela mais uma vez a insensibilidade de Bolsonaro é que o presidente só se mexe para esconder fatos, nunca para solucionar problemas que aparecem no decorrer dessa trágica pandemia. Usa a desculpa de que o Supremo Tribunal Federal (STF) delegou aos Estados e Municípios o combate à Covid-19, o que não é verdade.

Se quisesse, o governo federal poderia combinar com governadores e prefeitos conceitos de uma política comum, e cada um adaptaria as orientações às características de sua localidade. Políticas de compra de material médico, por exemplo, são típicas de uma ação governamental centralizada.

O fato é que, manipulando ou não os dados, o Brasil caminha para se tornar o segundo país com mais mortes no mundo. Como chegamos ontem a 37.312 mortes, segundo o consórcio da imprensa, provavelmente ultrapassaremos o Reino Unido, que tem cerca de 40 mil mortos, nessa trágica disputa.

Mesmo na contagem proporcional, por milhão de habitantes, o Brasil não está tão bem como querem os apoiadores de Bolsonaro. Em relação à América do Sul, por exemplo, o número de mortos pela Covid-19 é quase três vezes maior que o registrado nos demais países somados, cerca de 70% do total, embora o país tenha perto da metade da população total da região.

Em relação à Europa, o Brasil está em melhores condições do que a Espanha, que tem 597 mortos a cada milhão de habitantes, seguido pelo Reino Unido com 587, Itália com 557, França com 445 e Estados Unidos com 326. Temos 160 mortes a cada milhão de habitantes, mas há diferenças preocupantes.

Uma taxa de idosos, acima de 65 anos, os mais frágeis diante do vírus, de menos de 10%, enquanto na Europa o índice médio é de 20%, e ainda não chegamos ao pico da epidemia, enquanto na Europa ela já está decadente. Além do mais, pesquisadores do Portal Covid-19 Brasil, união da Universidade de São Paulo (USP) com a Universidade de Brasília (UnB), calculam que o número real de infectados no Brasil chega a ser 10 vezes maior do que o divulgado, variando entre 4,6 e 6,5 milhões, o que significa que devemos ter muito mais mortes em decorrência da Covid-19, com subnotificações. As mortes oficialmente por problemas respiratórios cresceram assustadoramente.

Sobretudo, é preciso entender que os mortos não são apenas números estatísticos. São seres humanos, e cada um conta.


Gaudêncio Torquato: Uma nota acima do tom

Basta apurar os sentidos para perceber que há uma nota acima do tom na orquestração da política. O presidente da República tem se comportado como um incontrolável rebelde no uso da liturgia da expressão. Todos os dias recita substantivos ácidos e adjetivos ferinos para animar suas galeras e atacar adversários. Magistrados, de alto coturno, incluindo os que carregam grande bagagem no acervo do Direito, extravasam a linguagem peculiar dos juízes, abrindo polêmica na frente institucional. Dos políticos, então, tanto dos bastiões de defesa do governo quanto das hostes de oposição, o tiroteio do palanque virtual não arrefeceu como seria de esperar nesses tempos de encolhimento pandêmico.

A conclusão a que se pode chegar sinaliza para uma sobrecarga de energia acumulada, como se o alvo dos tiros não fosse a danada da covid-19 e sim os interlocutores e protagonistas que agem nas esferas das nossas instituições. Até os generais que, em tempos idos, sob o escudo da hierarquia e da disciplina, eram comedidos no uso do verbo, extrapolam os limites de sua linguagem. É razoável pensar que esses comportamentos venham a oxigenar nossa democracia ante a hipótese de que o franco debate desperta a sociedade, mas há uma questão de fundo a balizar o jogo das ideias. Povoam a paisagem temas como intervenção militar, golpe, impeachment, rebelião social, entre outros. Há de se ter cuidado com a banalização de escopos desse teor.

Entremos nos temas. A retórica de conflitos, como podemos designar as querelas, se impregna de interesse estratégico dos protagonistas eleitorais. O presidente Bolsonaro estica a campanha de 2018 até hoje. Os 30% que o apoiam montam na garupa do azarão. O PT, que perdeu o trono depois do gigantesco buraco em que afundou o país, só pensa em voltar ao primeiro plano da cena. Basta ver Lula, condenado em duas instâncias, defendendo agora a primazia do PT na esfera partidária, negando-se a assinar manifestos em favor da democracia ao lado de entidades de renome. Os grandes partidos já apontam alguns nomes como eventuais candidatos em 2022. As médias e pequenas siglas se atrelam a quem, nesse momento, lhes oferece recompensas. São, por exemplo, os entes que formam o Centrão e que começam a se aboletar no governo Bolsonaro.

Sob a malha eleitoral, a polarização política ganha volume e agita chefes, chefetes e lideranças de todos os setores. Para acirrar as tensões, enfrenta o país uma das maiores (senão a maior) epidemia de sua história, que causa milhares de mortos, podendo, logo, logo, chegar aos milhões de contaminados. A tragédia se expande na onda de uma reversão da economia, que esvazia o bolso de milhões de pessoas, empobrecendo as classes sociais, podendo até gerar convulsões aqui e ali, abrindo caminho para o caos social.

É evidente que, sob esse risco, estariam criadas as condições para a arrebentação da maré política, dando margem a eventos graves na esfera do Congresso Nacional. Portanto, a ideia de impeachment só se fundamenta na base da mobilização social, sendo improvável pensar em afastamento do presidente como ato unilateral do Parlamento. Só mesmo uma onda centrípeta – das margens para o centro – seria capaz de dar xeque mortal no tabuleiro da política.

Da mesma forma, é irrazoável a alternativa de intervenção militar. As Forças Armadas, com muito custo e graças ao profissionalismo, conseguiram firmar imagem de respeito, credibilidade e seriedade. Não topariam entrar numa aventura de tomada do poder na marra. Podem ir às ruas, em caráter excepcional, para garantir a lei e a ordem. A par desse compromisso, sempre renovado por suas lideranças, as Forças estão diante de uma sociedade mais atenta, crítica e solidária. Há um formidável contingente formado por imensa classe média, onde habitam núcleos que tendem a rejeitar os extremos do espectro ideológico. Apenas um minúsculo grupo – que não chega a 10% da população -, perfilaria a ideia de um golpe para levar o país ao território do autoritarismo.

Portanto, é conveniente baixar a bola, senhores guerreiros da arena político-institucional. O momento está a exigir que o foco de combate ao novo coronavírus não seja tumultuado por tiros dados ao léu, como a lenha que os fogueteiros de todos os lados jogam nas redes sociais, com calúnias, difamações, versões estapafúrdias.

Quanto aos magistrados, generais e mandatários, a mensagem é esta dos romanos: homo loquax, homo mendax – homem falador é homem mentiroso. Ou acaba se transformando em mentiroso.

*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação


Ana Carla Abrão: 'Ensaio sobre a cegueira'

A história tem inúmeros casos em que mudar os fatos foi uma saída vergonhosa

O isolamento imposto pela pandemia da covid-19 tem motivado várias reflexões. Numa dimensão individual, a necessidade de distanciamento físico nos obrigou a reorganizar os métodos de trabalho, trouxe as famílias de volta ao convívio e nos provocou no sentido de rever prioridades. Nesse processo, muitos resgataram uma leitura (ou quem sabe várias) relacionada a alguma grande peste que assolou o mundo – na realidade ou na ficção. Relemos Gabriel Garcia Marques, Albert Camus, José Saramago e tantos outros.

No cinema, revimos O Sétimo Selo ou, para os que são mais novos, Contágio ou algum outro filme que nos remeta a essa situação inesperada e surreal que vivenciamos hoje. Mas nem mesmo as obras mais perturbadoras conseguem refletir a nossa atual situação, que teima diariamente em ir além de várias dessas trágicas descrições ficcionais.

Nossas mazelas são maiores e mais profundas e se expõem agora como nunca. A primeira delas se refere à nossa inaceitável condição social, onde a desigualdade de renda se escancara na assimetria dos impactos econômico, social e de saúde a depender da classe de renda. Isso gerou, felizmente, uma mobilização filantrópica sem precedentes da sociedade civil e questionamentos sobre a eficácia da nossa rede de proteção social. Esperemos que também se reflita em foco naquele que é o nosso principal problema estrutural e ganhe prioridade na elaboração de políticas públicas – e não só as de complementação de renda.

Pelo lado dos orçamentos públicos, quedas inéditas de arrecadação e mudanças nas prioridades – com os gastos de saúde assumindo protagonismo – impõem um desafio adicional onde o desequilíbrio já era grande. Receitas e despesas terão de ser revistas à luz de uma nova realidade econômica, mas também com base nessas novas prioridades e no aprofundamento da crise. Não deixa de ser uma oportunidade para corrigir problemas estruturais. Mas só para os gestores que se dispuserem a abraçá-la.

Mas é no atendimento de saúde que ainda estará, por algum tempo, o principal foco. Afinal, a epidemia no Brasil já deixa um rastro trágico de cerca de 700 mil casos de contaminação e mais de 36 mil óbitos e ainda continua a se expandir. Embora tenha se espalhado de forma heterogênea pelo território brasileiro, é sabido que o avanço ainda está acelerado em algumas regiões e a atual subnotificação deve multiplicar esses números por muito. Ou seja, a realidade é muito pior. Por isso, e por alguns outros motivos, o mundo nos observa com um misto de pena e temor. Deveriam reconhecer o controle conquistado e as vidas poupadas até aqui por Estados como São Paulo e distinguir a falta de coordenação do governo federal, do esforço e planejamento de vários governadores e prefeitos.

Mas o Brasil é um só aos olhos do mundo. E quem fala pelo País é o presidente da República, que ainda hoje não reconhece a gravidade da pandemia, se recusa a seguir as orientações de higiene mundialmente consagradas, insiste na cura milagrosa de um medicamento sem comprovação científica de eficácia e manda, diariamente, sinais contrários às recomendações de distanciamento social. Ou seja, ao contrário de outros líderes que em algum momento reviram seu ceticismo, movidos que foram pelas evidências, o presidente Jair Bolsonaro continua negando os fatos. E agora ameaça mudá-los.

A história tem inúmeros casos em que mudar os fatos foi uma saída vergonhosa para quem não quer reconhecê-los para evitar o constrangimento do erro. Aqui no Brasil estamos a viver essa triste repetição. Desde a semana passada, por uma determinação do presidente da República, os dados referentes à covid-19 tiveram sua divulgação atrasada para evitar que fossem notícia. Agora, sob o pretexto de que há fraudes ou manipulação dos dados, as informações estão sendo revistas. Tivesse o governo federal exercido o seu papel de organizar o processo de coleta, dar transparência às informações, garantir uma política ampla de testagem e coordenado ações nacionais de combate à pandemia, teríamos mais clareza em relação aos dados e menor incerteza sobre o número correto de contaminados e mortos. Mas, bem sabem os que lidam com as ações de resposta, se há problemas com os dados eles estão no campo da subnotificação – e não o contrário.

De toda a literatura que ressurge agora nos tempos de isolamento, a que mais nos reflete talvez seja Ensaio sobre a Cegueira e seu mar de pessoas vulneráveis, contaminadas por uma cegueira branca. Numa triste alusão à epidemia, à nossa condição social e à cegueira a que querem nos condenar, peço licença aqui para reproduzir Saramago e finalizar afirmando que “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem”.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.


Eliane Cantanhêde: Cortando as asinhas

‘Grande problema’ não são atos pró-democracia, mas falta de governo, de estatísticas, de pudor

À deriva, o governo faz água por todo lado. O presidente Jair Bolsonaro continua fora de órbita, em outro planeta, Moro caiu, Mandetta foi demitido, Nelson Teich desistiu, Paulo Guedes sumiu, o Ministério da Saúde acabou e o da Economia submergiu, enquanto outras pastas pintam e bordam, sem rumo, sob aplausos do presidente. Ou o rumo é romper com a China, estorricar a Amazônia, prender ministros do Supremo e governadores? Uma situação melancólica, ou desesperadora.

Nem a exposição da reunião de 22 de abril, uma síntese do governo, que gerou ou alimentou investigações no Supremo, conteve Bolsonaro. Conforme o Estadão, foi ele quem deu, pessoalmente, a ordem para o Ministério da Saúde divulgar “menos de mil mortes por dia” e “acabar com matéria do Jornal Nacional”. Pois entrou plantão extraordinário na novela, o Congresso está criando uma central própria e Estadão, G1, O Globo, UOL, Folha e Extra fecharam parceria para prestar as informações que o governo sonega ou manipula.

O dr. Jair, epidemiologista, assumiu desde o início uma cruzada particular contra o isolamento social adotado no mundo todo. O dr. Jair, cientista, determinou o uso indiscriminado da cloroquina sem qualquer aval internacional ou nacional. Agora, o deus Jair decide quantos são os mortos do coronavírus. Danem-se os fatos e as mortes. O que importa é a versão do dr. Jair, o Messias Bolsonaro.

É triste, e preocupante, o desmanche do Ministério da Saúde – um antro de esquerdistas, segundo Damares. E é igualmente triste, e preocupante, que generais e coronéis se disponham a assumir o jogo sujo, sem nunca terem visto uma curva epidemiológica, mas prontos para a “missão”: bater continência e cumprir as ordens do presidente que nenhum médico decente cumpriria. “Às favas os escrúpulos de consciência” – e a condenação da história. Por que a prioridade para a “mudança de metodologia” na contagem de vítimas a esta altura? A quem enganam?

Com os mortos passando de 37 mil, as empresas e os empregos derretendo e a previsão de queda de 8% do PIB, o presidente declara, sem o menor pudor, que “o grande problema” do momento são as manifestações de domingo pró-democracia, contra o racismo e o próprio Bolsonaro. “Estão botando as manguinhas de fora”, acusou.

Definitivamente, o grande problema do Brasil não são as novas manifestações, é a gritante falta de governo, que choca o País e o mundo. Como explicar que o presidente brasileiro não apenas guerreia com a realidade como passa a assassinar as estatísticas da pandemia? Fraudar ou dourar o número de mortos e contaminados não é próprio de democracias.

Estamos em más companhias – Venezuela, Coreia do Norte e Arábia Saudita – e até por isso, apesar das dúvidas e das críticas legítimas que cercam a realização de manifestações neste momento, a resistência das instituições, das entidades, da mídia e das ruas vai encorpando e encorajando as pessoas a gritarem “basta!”.

Quem “botou as manguinhas de fora” primeiro? Não foram os que foram às ruas só no último domingo, mas, sim, os bolsonaristas que afrontaram as recomendações da OMS e de quase todos os países para fazer aglomerações em atos contrários ao STF e ao Congresso, usando até o QG do Exército como fundo. E o que dizer dos 30 alucinados que se dizem 300 e se plantam armados na Praça dos Três Poderes?

Os vários manifestos, os atos pró-democracia e a união nacional proposta por Fernando Henrique, Marina Silva e Ciro Gomes não são ataque, são movimentos de defesa. Exatamente para “cortar as asinhas” do “gabinete do ódio” do Planalto e dos golpistas estimulados pelo presidente da República e pelas redes sociais, com o beneplácito das Forças Armadas.


Andrea Jubé: ”O PSDB não foi solidário”

Prefeito cobra guinada do PSDB para a oposição

Segundo Nelson Rodrigues, em frase que atribuiu a Otto Lara Resende, “o mineiro só é solidário no câncer”. Parafraseando a dupla, em algumas situações, o político não será solidário nem no câncer.

Era maio de 2001, e o presidente Fernando Henrique Cardoso tentava barrar a criação de uma comissão parlamentar de inquérito para investigar casos de corrupção em seu governo. Para isso, incumbiu o então líder do governo no Congresso, deputado Arthur Virgílio (PSDB-AM), de articular o cancelamento da sessão em que seria lido o requerimento de criação da CPI mista.

FHC precisava ganhar tempo para retirar as assinaturas de apoio à investigação. Segundo o Datafolha, 84% da população apoiava a instalação da CPI para apurar as denúncias do senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA). Mas o adiamento da sessão também implicou o cancelamento da homenagem ao governador de São Paulo, Mário Covas (1930-2001), ícone tucano, falecido havia dois meses por causa de um câncer - mal que aflige seu neto, o prefeito Bruno Covas (PSDB).

Virgílio ponderou que a homenagem deveria ser mantida, porque a CPI não iria prosperar, e a viúva de Covas, Dona Lila (1933-2020) havia se deslocado a Brasília exclusivamente para a sessão no Senado.

“A CPI não tinha fato determinado”, relembra Virgílio. “O requerimento tinha uns 22 itens, cada um ia lá e acrescentava um novo: o ACM colocou um item para investigar o [presidente do Senado] Jader Barbalho, o Jader colocou outro para investigar o ACM, eu coloquei um para investigar desvios do PT no FAT [Fundo de amparo ao Trabalhador], qualquer tribunal ia suspender uma maluquice daquelas, mas preferiram suspender a homenagem ao Covas”, lamentou o tucano à coluna, 19 anos depois.

Cancelada a sessão, uma comitiva de sete tucanos se espremeu em um carro oficial com espaço para cinco para se dirigir ao hotel e comunicar a viúva que a homenagem fora cancelada. Segundo Virgílio, ele acabou incumbido de encará-la sozinho. Ela estava acompanhada no hotel do filho Mário Covas Neto (hoje vereador em São Paulo pelo Podemos) e da filha Renata, mãe de Bruno Covas.
Virgílio conta que ouviu de uma viúva altiva e indignada que não tinha raiva dele, porque lhe restou desempenhar o papel que sempre sobrava para Covas. “Imagino que você tenha chegado com mais tucanos, mas ou eles ficaram no carro, ou foram embora; não tiveram coragem de subir para falar comigo. Quando todo mundo se escondia, o Covas botava a cara pra bater”, ouviu de Dona Lila.

Quatro anos depois, Virgílio narra que novamente sobrou pra ele colocar a cara a tapa sozinho em novo episódio constrangedor para o partido. Ele era líder do PSDB no Senado em 2005, quando o então prefeito de João Pessoa (PB), Cícero Lucena (PSDB), foi preso por denúncias de fraude em licitações. Segundo Virgílio, o PSDB fretou um jato que levaria uma comitiva de tucanos para se solidarizarem com o correligionário. Ao fim, por decisão dos companheiros, ele foi e voltou sozinho.

Atual prefeito de Manaus, Arthur Virgílio relembrou os dois episódios para afirmar que se sentiu abandonado pelo PSDB, que não se manifestou oficialmente sobre as ofensas que o presidente Jair Bolsonaro dirigiu a ele e ao governador de São Paulo, João Doria, na reunião ministerial de 22 de abril. Bolsonaro chamou os dois caciques tucanos de “bosta”.

“Já estou tão acostumado”, tripudiou, ressalvando que recebeu telefonemas de apoio do próprio Doria e do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), a quem se refere como “irmão”.

“Faltou solidariedade, o partido tem que estar junto das pessoas que foram atacadas. Se for acusação grave, a pessoa tem que se explicar. Mas uma pessoa injuriada, chamada do que o sujeito [Bolsonaro] me chamou, do que chamou o Doria, e o partido não se ofende?”

Lembrado que o PSDB tem um representante no primeiro escalão do governo Bolsonaro, Virgílio cobrou atitude solidária do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. “E isso [os insultos] não mexeu com o Marinho? Dois companheiros de partido atingidos desse jeito, e ele prefere prestar os bons serviços a esse governo?”

Há 31 anos no partido - três vezes prefeito de Manaus, ministro, deputado e senador, líder da bancada - Virgílio diz que não vê “compatibilidade” entre o PSDB que sonha e o que está no governo Bolsonaro. Ele acha que o partido deve pedir a Marinho que se licencie ou se desfilie para continuar no cargo. “O PSDB tem razões históricas para não manter vínculo com alguém que defende a tortura, o Mário Covas foi cassado [pelo AI-5]”.

O prefeito tem concedido entrevistas a agências e veículos internacionais sobre o impacto do coronavírus no Amazonas e as consequências do descontrole da pandemia para os índios. Ele receia que a segunda onda da epidemia virá com a força de um “massacre”, mas não vê a reedição das cenas dramáticas da abertura de covas coletivas em Manaus, quando a capital promoveu até 167 enterros em um dia.

Ele assegura que a Prefeitura atravessará a pandemia do ponto de vista financeiro com “tranquilidade”, mas com “intranquilidade” do ponto de vista social por causa do quadro recessivo da economia. Ele preparou os cofres para uma queda de arrecadação de até 30%, a folha de pagamento está garantida, formou um colchão de R$ 1,6 bilhão para investimento em obras de mobilidade e saneamento.

Rescindiu contratos de locação para abrigar três secretarias em um mesmo prédio, cortou cargos comissionados e reduziu em 25% contratos de fornecedores.

Com assento na Executiva tucana, acha que a realidade da pandemia não comporta um debate sobre o impeachment de Bolsonaro, mas que o PSDB terá de se posicionar mais à frente. “Falar disso agora só serve para tumultuar mais o quadro”. Ele ressalta que se o PSDB não der uma “guinada de 180 graus” e fizer oposição dura ao governo, vai se tornar um partido irrelevante e não disputará pra valer as eleições.

Conta que amigos até lhe recomendaram deixar o PSDB, e migrar para o Novo, mas ele critica a legenda, que recusa filiados com mandato. “E quem foi eleito pelo Novo e conquistou um mandato, agora terá que sair? Porque se mandato conspurca, o filiado já foi conspurcado”.