Day: outubro 5, 2018
FAP Entrevista: Rogério Baptistini Mendes
A tarefa do centro político é garantir a democracia, a agenda reformista e um padrão civilizado de governabilidade no após eleições, avalia Baptistini
Por Germano Martiniano
Faltando apenas três dias para as eleições, as chances de se modificar um quadro marcado pela forte polarização política são quase mínimas, segundo as pesquisas eleitorais do Ibope e Datafolha. Tudo indica que teremos um segundo turno entre Bolsonaro e Haddad, ou até uma vitória do candidato da direita no primeiro turno. Essa tendência de que há pouquíssimas chances para o centro político se confirmou por meio da debandada da bancada ruralista, que até então apoiava Alckmin, para o lado de Bolsonaro.
Diante desta nova realidade, muitos analistas já começam a conjecturar qual deverá ser o papel do centro político brasileiro e da esquerda democrática diante dessas duas possibilidades que se apresentam. Para Rogério Baptistini Mendes, doutor em sociologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e dirigente da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), o centro político deverá ser “responsável e propositivo” em um possível segundo turno e também nos próximos quatros de governo de Bolsonaro ou Haddad. “A nossa tarefa é garantir a democracia, a agenda reformista e um padrão civilizado de governabilidade no após eleições”, acredita o sociólogo, entrevistado da série FAP Entrevista.
A FAP Entrevista é uma série que está sendo publicada aos domingos e, agora, às quartas-feiras (excepcionalmente estamos publicando nesta sexta-feira, 05/10), com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
FAP Entrevista - Tudo indica um segundo turno entre Bolsonaro e Haddad. Entre os dois, qual seria o melhor ou o menos pior para o Brasil?
Rogério Baptistini Mendes - Considero a polarização entre Bolsonaro e Fernando Haddad ruim para o país. Ela aponta para o esgotamento do sistema partidário competitivo surgido com a transição democrática e para a persistência de uma cultura política autoritária e messiânica, o que torna ainda mais dramática a conjuntura que enfrentamos. É pouco provável que o resultado das urnas apazigue a sociedade e seja capaz de produzir consensos em torno das reformas necessárias para que o Brasil reencontre o caminho do desenvolvimento econômico, supere os males herdados e se projete vigoroso rumo ao futuro, com democracia e justiça social.
E quanto ao centro político, que posição deveria ter em um eventual segundo turno?
Nós, do centro, caso se confirme o quadro atual, devemos nos manter neutros no segundo turno. A nossa tarefa é garantir a democracia, a agenda reformista e um padrão civilizado de governabilidade no após eleições. Temos história, experiência, responsabilidade e visão pública dos problemas. Num ambiente fissurado, teremos de conduzir nossa energia para produzir a justa medida, o equilíbrio, e impedir que o aventureirismo oportunista desgrace o destino dos brasileiros.
Do ponto de vista das reformas que o Brasil necessita, qual destes dois governantes têm mais capacidade de realizá-las e qual deve ser a prioridade do próximo governo?
Em se tratando da pauta das reformas, Bolsonaro e Haddad parecem igualmente incompetentes para realizá-las. O primeiro por estar descolado dos partidos e do sistema político, restando como um deputado marginal, afastado do grande debate; o segundo por atuar como preposto de Lula e representar um partido de vocação nitidamente exclusivista e reacionária.
Em um próximo governo, independentemente de quem seja o vencedor destas eleições, qual deverá ser o papel do centro político?
Conforme afirmei antes, o centro deve ser responsável e propositivo. Deve, também, atuar fortemente no sentido educativo, qualificando a sociedade para democratização da democracia. O Brasil precisa de uma cultura pública robusta, capaz de conduzir ao consenso e reduzir a algaravia que deprime e rouba o ânimo. Os partidos e as forças que compõe o centro devem, para usar termos datados, produzir uma hegemonia cultural a partir da ação cotidiana e resgatar a ideia moderna e civilizada de que a oposição política é um direito democrático e deve ser exercida para o aprimoramento das vontades políticas.
O senhor é doutor em sociologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), portanto conhece bem a realidade de São Paulo. O estado é o mais desenvolvido do Brasil, ainda que com todas suas mazelas. Por que Alckmin, que foi governador várias vezes, não consegue cair nas graças da população brasileira?
Creio que o eleitor perdeu a confiança no sistema de partidos saído da redemocratização. O PT, um dos maiores partidos, contribuiu muito para isso. Desde sempre fez a campanha da acusação e da desqualificação do sistema do qual ele próprio faz parte. Hoje, candidatos ligados aos partidos tradicionais, considerados pelos eleitores como “políticos profissionais”, estão sem prestígio, são vistos com desconfiança e desprezo. E o moralismo de setores da mídia e do judiciário só piora as coisas!
O Governador Alckmin, com sua trajetória, apoiado por partidos de expressão e lideranças inquestionáveis, é vítima de um fenômeno paradoxal: o público não partilha uma convicção política, pública, do maior dos problemas públicos, que é o governo da sociedade política. Ao contrário, o público está atormentado por questões morais e visões particularistas e excludentes acerca do destino comum.
O movimento #EleNão, ainda que embutido de todo um sentido ético de valorização da mulher e contra o machismo, não impediu que Bolsonaro crescesse nas pesquisas. Ocorre no Brasil o mesmo que ocorreu nos EUA com Trump: o eleitor em sua maioria está mais preocupado com quem fale de segurança, economia, emprego, po r exemplo, do que com pautas identitárias?
O #EleNão fez o que poderia ter feito. E recebeu a resposta que era esperada da parte contrária. Os grandes problemas estruturais, nesta eleição, estão emaranhados e confundidos com os temas comportamentais e de costumes. E este é um dos motivos que reforça ainda mais a nossa responsabilidade. O centro político terá de garantir o pluralismo e a tolerância como bases de uma democracia democrática. E quando digo “democracia democrática”, quero dizer que as regras do jogo reclamam uma cultura política que as sustente.
O PT, ainda que com todas as críticas que se possa fazer, é um partido que sabe fazer política. Onde se vai, de sindicatos à universidades, se vê um “braço” petista. Por que outros partidos no Brasil não conseguem fazer o mesmo?
Nós também sabemos fazer política. E, tenho convicção de que fazemos a grande política. Não a política pequena, dos particularismos, do atraso, dos vícios privados. Esta política não nos interessa, mas interessou ao PT e ajudou a consumar o estado de coisas atual.
O senhor acredita na tese do fatalismo, que o Brasil está jurado à ditadura de esquerda ou de direita, com Haddad ou Bolsonaro? Ou já temos instituições consolidadas o bastante? Temos um Congresso efetivo e uma população mais participava que possam impedir um governo autoritário?
O Brasil será uma grande nação. Em menos de um século, transformamos com o trabalho de nossa gente um país rural e exportador numa grande sociedade urbana e industrial. Ocupamos o território, formamos um só povo. Hoje, estamos prestes a completar 30 anos sob uma constituição democrática, com a rotina das eleições, uma cidadania ativa e o respeito ao ordenamento jurídico. Há muito trabalho a ser feito. O acerto de contas com o passado e as reformas que nos insiram no futuro. Mas estamos preparados. Há que se manter o otimismo e a disposição.
Bruno Boghossian: Praga e pesticida
Candidato capta frustração do eleitor e exige reflexão sobre eventual governo
Jair Bolsonaro “é o pesticida de que precisamos”, dizem apoiadores do candidato do PSL. Muitos eleitores se convenceram de que uma dose violenta desse veneno é a única forma de exterminar o que veem como pragas da política. É preciso, porém, observar os alertas sobre os riscos do produto, impressos em letras nada miúdas na embalagem.
Bolsonaro captou a enorme frustração dos brasileiros com escândalos de corrupção (em especial do PT) e com a insegurança que domina tanto grandes cidades quanto o interior. O crescimento de sua candidatura na reta final da eleição carrega consigo a necessidade de reflexão sobre seus discursos e práticas.
O presidenciável já emitiu diversos sinais de que gostaria de usar poderes especiais, típicos de governos autoritários, para derrotar seus inimigos. Sob o manto de uma reação firme a esses grupos, ostenta um discurso violento contra opositores, demonstra admiração pelos métodos de torturadores e pede aval para mudar as regras do jogo.
Bolsonaro já falou em indicar dez ministros do Supremo para criar uma maioria artificial a seu favor, depois recuou. Seu vice admitiu a hipótese de golpe militar para conter instabilidades. Seu assessor econômico propõe mudar métodos de votação de leis para aprovar o que quiser.
Pode-se imaginar que medidas excepcionais são necessárias em momentos de crise, para implantar uma agenda de recuperação e vencer o mal. Mas, via de regra, há poucas garantias de que um governante queira abrir mão de poderes extraordinários depois de conquistá-los.
O discurso do deputado, permeado de comentários de desprezo a mulheres e minorias, alimenta (com razão) dúvidas sobre a proteção de direitos fundamentais e liberdades —incerteza lamentável a esta altura da vida democrática do país.
Bolsonaro pode parecer ideal para atacar aqueles apontados como vilões, mas recomenda-se olhar o rótulo com cuidado. Não é preciso defender a praga para refletir sobre eventuais danos do pesticida.
Steven Levitsky: Por que defender a democracia
Vitória do autoritarismo no Brasil pode influenciar outros países da América Latina
Os brasileiros em breve enfrentarão um segundo turno no qual um dos dois candidatos será autoritário. Se eleito presidente, Jair Bolsonaro (PSL) representaria uma clara ameaça à democracia.
A popularidade de Bolsonaro não deveria nos surpreender. O Brasil sofreu uma tempestade perfeita: recessão profunda combinada ao maior escândalo de corrupção de qualquer democracia na história. Isso gerou profundo descontentamento com o status quo político —e com a elite política.
De acordo com pesquisas recentes, apenas 20% dos brasileiros estão satisfeitos com sua democracia. E muitos brasileiros afirmam, em pesquisas, que em certas circunstâncias apoiariam um golpe de Estado.
Esses são números perturbadores. A democracia do Brasil está vulnerável —vive seu momento mais vulnerável em uma geração. Os brasileiros precisam agir para defendê-la.
Por que os brasileiros deveriam defender a democracia?
Permita-me oferecer algumas razões.
Primeiro, não existem provas de que o autoritarismo ofereceria soluções melhores para os problemas do Brasil. Há muitas pesquisas que buscam determinar se ditaduras funcionam melhor do que democracias, economicamente.
E os resultados são claros: não funcionam. Algumas poucas ditaduras se saíram excepcionalmente bem (Cingapura, Taiwan, China). Mas elas são exceções. Para cada Cingapura ou China, existem dezenas de ditaduras em todo o mundo que fracassaram economicamente.
Em média, as ditaduras não geram crescimento mais alto, inflação mais baixa ou equilíbrio fiscal superior.
Também existem poucas indicações de que uma ditadura resolveria os demais problemas brasileiros.
Ditaduras não necessariamente se saem melhor na redução do crime, e não fazem um trabalho melhor no combate à corrupção. Na verdade, ditaduras são mais propensas à corrupção do que as democracias.
Assim, indicações vindas do mundo inteiro sugerem que haja pouco a ganhar com o autoritarismo.
Mas há muito a perder. É preciso tempo para construir instituições democráticas fortes. Estabelecer controle civil sólido sobre as Forças Armadas requer décadas. Estabelecer um Poder Judiciário independente e direitos civis e humanos básicos requer décadas. Os brasileiros realizaram essas coisas nas últimas três décadas.
Nunca antes na história brasileira o controle civil sobre as Forças Armadas, a independência do Judiciário e os direitos civis e humanos estiveram tão bem estabelecidos quanto no último quarto de século. Essa é uma grande realização.
Uma queda ao autoritarismo —mesmo que breve— eliminaria décadas de esforços de construção de instituições. Esse foi um problema que prejudicou por muito tempo países como Argentina, Bolívia, Equador e Peru. Historicamente, nesses países, a democracia entra em colapso a cada vez que acontece uma crise. Como resultado, as instituições jamais têm tempo para fincar raízes. É um círculo vicioso do qual os argentinos e peruanos continuam tentando escapar até hoje.
Para se consolidarem, as democracias precisam sobreviver a algumas tempestades muito fortes. Nos Estados Unidos, a democracia passou pela guerra civil, pela Grande Depressão da década de 1930 e pela Segunda Guerra Mundial. Se você abandona a democracia sempre que surge uma crise, a democracia jamais se consolida. Esse é o caminho da Argentina.
Por fim, o destino da democracia brasileira tem consequências que vão além do Brasil. Os últimos 30 anos foram o período mais pacífico e democrático da história da América Latina. As Forças Armadas deixaram o palco; guerras civis e insurgências se encerraram.
Mas há nuvens de tempestade no horizonte. China e Rússia estão se tornando mais fortes. A Europa está em crise. E o atual governo dos Estados Unidos não tem interesse na democracia. Ao mesmo tempo, a confiança pública na democracia está em queda na América Latina. Não é só no Brasil: o descontentamento cresceu no México, Argentina, Peru, Colômbia —mesmo no Chile e na Costa Rica.
O Brasil é um país influente. Se a democracia brasileira falhar, isso poderia resultar em uma onda de rupturas democráticas na América Latina.
Não seria a primeira vez. O Golpe de 1964 teve enorme impacto na América Latina, encorajando os militares a tomar o poder na Argentina, Bolívia, no Chile, Equador, Panamá, Peru e Uruguai. Seria trágico se a história se repetisse.
Tradução de Paulo Migliacci
*Steven Levitsky é cientista político, autor do livro "Como as Democracias Morrem"
Bernardo Mello Franco: A boca de urna da Lava-Jato
Na semana final da eleição, a Lava-Jato arremessou duas bombas contra a campanha do PT. A última foi lançada a poucas horas do debate na TV Globo
A República de Curitiba não repousa mais em berço esplêndido. Depois de um período sonolento, a Lava-Jato parece ter despertado às vésperas da eleição. A poucos dias do primeiro turno, a operação arremessou duas bombas contra a campanha do PT.
Na segunda-feira, o juiz Sergio Moro liberou um trecho da delação de Antonio Palocci. O depoimento foi gravado em abril e passou quase seis meses na gaveta. Como o ex-presidente já está preso, a conta política será paga pelo candidato Fernando Haddad.
Ontem a força-tarefa da Lava-Jato reforçou a ofensiva do juiz. A três dias da eleição, o Ministério Público Federal pediu uma nova condenação de Lula. A manchete foi produzida horas antes do último debate dos presidenciáveis, na TV Globo.
Em entrevista publicada ontem pela Folha de S.Paulo, o chefe da força-tarefa da Lava-Jato defendeu Moro da acusação de interferência no processo eleitoral. “O tempo da Justiça e o da política não podem ser confundidos”, pontificou Deltan Dallagnol.
Faltou combinar com o juiz. Em agosto, Moro adiou um depoimento de Lula que estava marcado para o dia 11 de setembro. Ao justificar a decisão, que impediu o ex-presidente de se defender publicamente, ele escreveu que pretendia “evitar a exploração eleitoral dos interrogatórios”.
Como se vê, a preocupação com o calendário só valeu para um lado.
A Constituição faz 30 anos. É um bom momento para lembrar as palavras de Ulysses Guimarães ao promulgá-la, em 5 de outubro de 1988: “Traidor da Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério”.
No mesmo discurso, Ulysses afirmou: “O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella, pela Anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram”.
Luiz Carlos Azedo: A Constituição e as eleições
“O próprio Supremo vive dilemas profundos em razão da Operação Lava Jato, que protagoniza o combate à corrupção. Há um inédito expurgo de políticos da vida pública, entre os quais, Lula”
O Supremo Tribunal Federal (STF) comemorou ontem os 30 anos da Constituição de 1988, razão de ser da existência da Corte, cuja missão é zelar pelo cumprimento dos seus dispositivos. Não é uma tarefa das mais fáceis, ainda mais num momento como o que estamos vivendo, no qual os candidatos que lideram a disputa pela Presidência da República, Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), não escondem o desejo de substituí-la por outro texto constitucional.
Não foi à toa, portanto, que o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, proclamou: “Nunca mais, nunca mais a escravatura, nunca mais a ditadura, nunca mais o fascismo e o nazismo, nunca mais o comunismo, nunca mais o racismo, nunca mais a discriminação”. Segundo ele, os cidadãos precisam assegurar “que as conquistas até aqui obtidas sempre vigorem, não admitindo involuções, especialmente quanto à democracia estabelecida, à cidadania conquistada e à pluralidade até aqui construída”.
A Constituição de 1988 garantiu ao Judiciário autonomia e independência, assim como deu ao Ministério Público um poder nunca antes alcançado. Graças à aprovação pelo Congresso da Lei da Ficha Limpa, uma grande mudança nos costumes políticos está em curso, sob fortes tensões. O próprio Supremo vive dilemas profundos em razão da Operação Lava Jato, que protagoniza o combate à corrupção. Há um inédito expurgo de políticos corruptos em todas as esferas da vida pública, com destaque para a inelegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado a 12 anos e um mês de prisão por corrupção passiva e ocultação de patrimônio.
Muitos dos que não foram impedidos de disputar as eleições pela Lei da Ficha Limpa, porque não foram julgados, culpados ou inocentes, serão punidos com a não eleição. Mas a prisão de Lula é um fator de divisão e tensão política no próprio Supremo, em razão do grande prestígio popular e internacional de que ainda desfruta e do debate sobre a aplicação do princípio constitucional do transitado em julgado. Jurisprudência da Corte determina a execução imediata da pena de condenados em segunda instância, o caso do petista, mas o assunto não está pacificado entre os ministros. Toffoli é um dos críticos dos “excessos” da Operação Lava-Jato, protagonizados pelos procuradores da força-tarefa de Curitiba, que ontem pediram ao juiz federal Sérgio Moro nova condenação de Lula pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Os procuradores acusam o ex-presidente da República de obter vantagem indevida paga pela Odebrecht por meio da compra de um terreno para instalação da sede do Instituto Lula e do aluguel de um apartamento em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. A três dias das eleições, o pedido é visto como interferência no processo eleitoral, prejudicando a candidatura do candidato do PT, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, assim como a divulgação de um dos depoimentos da delação premiada do ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci pelo juiz Moro, na segunda-feira passada. Os dois episódios se somam a outras decisões tomadas recentemente, que interferiram nas eleições do Paraná, Mato Grosso e Goiás, Ceará, Piauí, contra políticos ligados ao PSDB, ao PMDB e ao PP.
Direitos
O jurista italiano Norberto Bobbio influenciou fortemente a elaboração da Constituição de 1988. Suas ideias foram marcadas pelo ambiente europeu após a Segunda Guerra Mundial, em que as democracias do Ocidente procuraram se precaver contra o fascismo, originário da Itália, e purgar o trauma do Holocausto protagonizado pelo regime nazista de Hitler, na Alemanha. Adotada pela Organização das Nações Unidas, a doutrina dos direitos humanos legitima o Estado de bem-estar social, uma resposta às terríveis condições sociais que resultaram da guerra.
Os dispositivos introduzidos na nossa Carta Magna com objetivo de garantir o direito à vida e à liberdade, no contexto de transição à democracia, porém, provocaram uma disjuntiva entre direitos humanos e ordem pública, provocando mudanças no Código de Processo Penal que nunca obtiveram consenso social e político suficientemente para que fossem plenamente respeitadas. Numa sociedade com indicadores de violência ascendentes, essa pauta acabou se tornando um divisor de águas. A sociedade brasileira precisa reencontrar o ponto de equilíbrio entre a segurança pública e as garantias e direitos individuais.
Um dos temas em debate na campanha eleitoral é a separação do direito penal do cidadão aplicado ao criminoso comum segundo os ditames constitucionais do que seria uma espécie de “direito penal do inimigo”, que puniria os indivíduos considerados mais perigosos para a sociedade, o que significaria suprimir direitos e garantias individuais. Tal interpretação não cabe nos ditames da atual Constituição, mas está na pauta do candidato que lidera as pesquisas, Jair Bolsonaro (PSL).
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-constituicao-e-as-eleicoes/
Nelson Motta: O que é pior?
O que é pior, populismo de direita ou de esquerda?
A história mostra que não faz muita diferença: o desastre é certo. A profundidade e a extensão dos danos variam de acordo com o país e o momento. É só olhar a história recente do Brasil.
Impossível não se lembrar do Plano Cruzado, que popularizou até Sarney e devastou o país, levandonos à falência internacional e a muitos anos de sofrida recuperação, com a aplicação das medidas econômicas corretas, duras e impopulares, bombardeadas pelo populismo de esquerda. O PT foi contra o Plano Real.
O populismo econômico nacionalista provocou a falência do governo Dilma e arrasou o Brasil. O populismo de corrupção dos governos Lula e Temer criou Bolsonaro e a sede de vingança dos roubados.
O mais cruel é que tanto a direita quanto a esquerda populista, que cortejam “o povo” e fazem o que “ele” quer para ganhar popularidade e se manter no poder, têm sempre como grande vítima final justamente o seu amado “povo”. Os pobres indefesos e desinformados são os que mais sofrem, a classe média é massacrada, mas os ricos, na pior das hipóteses, se mudam.
No populismo ambidestro sempre são os que não produzem nada que impõem as regras para quem produz alguma coisa. São os amigos e companheiros que governam, não os melhores profissionais de cada área. Não se faz o que tem que ser feito, mas o que “o povo” quer. O histórico bordão humorístico “me engana que eu gosto” floresce no populismo.
O cientista político Manuel Castells já advertiu, a luta agora não é mais entre esquerda e direita, mas entre autoritarismo e populismo. O que é pior?
O que esperar da sórdida classe política brasileira, com suas raras e impotentes exceções, senão aderir ao vencedor e partilhar o butim? Como sempre, agora mais que nunca.
No caso do Brasil, a tragédia ganhou tons de farsa e chanchada, com um populista de esquerda na cadeia e um populista de direita recém-saído do hospital comandando as eleições e o destino do país: cadeia ou hospital?
É duro escrever ficção no Brasil.
Míriam Leitão: Bancadas médias e menos partidos
Próximo governo apresentará reformas a um Congresso menos fragmentado e com mais bancadas médias. Partidos grandes devem encolher
Qualquer que seja o resultado da eleição, o próximo Congresso terá menos partidos, e as bancadas das grandes siglas devem encolher. Haverá mais bancadas médias. Isso é resultado da cláusula de desempenho que levará algumas legendas a definharem mesmo que consigam eleger parlamentares, porque a partir do ano que vem ficarão sem recursos eleitorais: dinheiro e tempo de TV. Isso redefinirá o quadro partidário e o comportamento do Congresso. Talvez facilite a governabilidade.
— Hoje, a Câmara brasileira é a mais fragmentada do mundo. O país tem 35 partidos, nem todos obviamente com representação, mas a legislatura deve ter 18. Haverá uma compactação, mas será ainda muito grande —diz o cientista político Jairo Nicolau.
Nessa eleição intensa, em que a polarização reduziu o espaço da discussão racional, pouco se pensou no que vai acontecer com a Câmara, onde serão aprovadas ou rejeitadas as medidas do próximo governo.
A se confirmarem os resultados das pesquisas, o que acontecerá com a Câmara? O PSL, que elegeu apenas um deputado em 2014, hoje tem bancada de oito. Vai eleger mais, mas dificilmente será um grande partido. Na opinião de Jairo, na hipótese de vitória de Jair Bolsonaro, o que pode acontecer é ser criada uma nova sigla de direita que leve parte dos parlamentares ultraconservadores. Na hipótese de vitória do PT, ele corre o risco de ter uma bancada menor do que a que tem hoje, de 61 deputados. E terá que buscar uma aliança com os quais se alinhou no passado:
— Será curioso ver o PT entregando ministério ao PP ou outros que atuaram pelo impeachment.
Os “nanopartidos”, segundo Jairo, dificilmente atingirão 1,5% dos votos ou 1% em nove estados. Eles continuarão existindo, como entidades da sociedade civil, mas ele considera que alguém que se eleger por um deles tenderá a migrar para os maiores. Ou então serão criados outros partidos para a reorganização partidária que a reforma estimula. Mas entre as grandes bancadas, quem deve diminuir de tamanho?
— O MDB perderá, sem dúvida, hoje já tem a menor bancada da sua história (51) e deve perder mais. Deve cair para terceira ou quarta. O PT perdeu prefeituras importantes em 2016, mas tenta compensar lançando puxadores fortes de bancadas nas eleições para a Câmara, como a Marília Arraes, em Pernambuco, e Gleisi Hoffmann, no Paraná. O que mais ajuda a prever a bancada futura é a atual. Partidos de 30 não chegarão a 5, as oscilações serão na margem.
O PSDB deve diminuir, mas não muito, apesar do péssimo desempenho de Geraldo Alckmin, porque deve sair com uma boa bancada de Minas, alguma coisa no Rio Grande do Sul, onde o candidato a governador está tendo um bom desempenho, e o interior de São Paulo é forte em prefeituras tucanas. Não será uma derrota humilhante.
O PSB perdeu um pouco o ímpeto, por não ter candidato a presidente. Vai depender do Márcio França em São Paulo, mas a crise com Márcio Lacerda, em Minas, mostra que o partido agiu mal. O PP permanecerá grande e buscará aderir ao vencedor. Naturalmente ele irá para o Bolsonaro se ele ganhar. Se o PT vencer, dará uma cambalhota e voltará a se alinhar os petistas —diz Jairo.
A sociedade pediu renovação, e o sistema político entregou os recursos eleitorais para os mesmos. Por isso, a grande diferença será a cláusula de barreira, que será um incentivo para que os parlamentares troquem os partidos muito pequenos pelos médios. A crise política provocada pela corrupção, denunciada pela Lava-Jato, será um limitador de crescimento das agremiações tradicionais. Qualquer que seja o vencedor, ele terá que fazer um esforço para se compor com esses mesmos partidos:
— A chapa do PT é a mais estreita da sua história. A coligação de Dilma tinha 10 partidos, parte do centrão estava com ela, a de Fernando Haddad tem três.
Não será difícil para o próximo governo, seja ele qual for, formar uma aliança com os parlamentares. O difícil será conduzir mudanças prometidas em campanha ou medidas para equilibrar as contas públicas. A única vantagem será o país começar a fazer, ainda que pelas bordas, uma reorganização partidária. O primeiro passo será reduzir o número de partidos. E nisso há uma chance concreta.
Merval Pereira: Começar de novo
O PT de antes de chegar ao poder tinha um sustentáculo na classe média e nos eleitores de nível universitário
A eleição de domingo embute uma definição do destino dos dois partidos que dominaram a política nacional nos últimos 25 anos. PT e PSDB chegam ao fim da disputa em situações assimétricas, mas podem terminar em condições semelhantes.
Com a possibilidade real de chegar ao segundo turno da eleição presidencial pela quinta vez, tendo vencido as quatro anteriores, o PT demonstra uma resiliência formidável, principalmente se levarmos em conta o que foi revelado sobre o esquema de corrupção que o partido comandou na última década, mas certamente não apenas nesse período.
Paradoxalmente, o partido deve a Lula suas virtudes e defeitos. Certamente, não teria chegado ao final da campanha com possibilidade de vencê-la se não existisse Lula, que, mesmo preso, foi o centro dos debates por muito tempo. Mas o antilulismo, ou antipetismo, no momento fala mais alto no país, e dá ao PT um nível de rejeição que limita o crescimento de Haddad.
Foi também Lula quem inventou a polarização do “nós contra eles”, que cevou a candidatura Bolsonaro, mas, durante muitos anos deu ao PT a primazia de ser identificado como o único partido preocupado com os mais pobres. A realidade revelada, porém, tirou do PT e de Lula essa primazia, limitando o poder político do ex-presidente a uma parcela minoritária do eleitorado.
O tamanho continuou semelhante, mas os eleitores, não. O PT de antes de chegar ao poder tinha um sustentáculo na classe média e nos eleitores de nível universitário. Já há algum tempo perdera esse público para o PSDB, e foi buscar no Nordeste e entre os mais desfavorecidos o seu ponto de apoio.
As previsões dão ao PT a maior bancada na futura Câmara, mas empatada com outros partidos como o PP, o PSDB e o MDB. E o partido poderá eleger vários senadores e governadores, mantendo a hegemonia no Nordeste. Se Haddad vencer, poderá refazer suas alianças políticas e prosseguir na tentativa de “tomar o poder”, como disse Dirceu.
Mas, perdendo, vai ter que se reinventar, começando por fazer a autocrítica necessária. Se perder no primeiro turno, então, ficará marcado por derrotas sumárias, como as de 1994 e 1998, ou como a de Fernando Haddad em 2016 em São Paulo, que perdeu no primeiro turno para João Doria.
Haddad, então, amargará uma segunda derrota seguida no primeiro turno, o que indicaria que tem um futuro mais promissor como professor do que como político. O mais provável, porém, é que o PT insista na radicalização, apostando no fracasso de um eventual governo Bolsonaro.
Também o PSDB terá que se reinventar, em condições mais penosas do que o PT, pois seu candidato chega ao final com uma votação pífia, a pior atingida pelo partido nas últimas seis eleições, incluindo o próprio Alckmin em 2006 que, por ironia, teve então a melhor votação tucana no primeiro turno.
A previsão de fazer uma boa bancada na Câmara e no Senado e, sobretudo, a possibilidade de eleger governadores em vários estados, inclusive nos três dos mais importantes do país —São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul —mantém as condições para que repense sua atuação nos últimos anos. O senador Tasso Jereissati, seu ex-presidente, já deu início à autocrítica, mas não há garantias de que o partido seguirá essa linha.
O ministro Aloysio Nunes Ferreira, que se manteve aferrado à pasta das Relações Exteriores do governo Temer, ajudando a moldar a má imagem do PSDB, já disse que não é hora de autocrítica, “e muito menos em público”, acrescentou. O que indica que o aggiornamento do PSDB terá mais resistências do que seria recomendável.
O PSDB tem uma tarefa hercúlea pela frente, recuperar seu eleitorado que aderiu em massa ao bolsonarismo, mais por antipetismo e falta de opção viável do que propriamente por concordância com as polêmicas que a candidatura do capitão promove.
Se o PSDB não disputar com o PT a tarefa de se opor a um governo que, tudo indica, será tão anacrônico e sectário quanto o eventual do PT, se transformará em um MDBdoB, voltando às suas origens ancestrais.
Nascido de uma dissidência do PMDB fisiológico, o PSDB prometia, assim como o PT depois, mostrar que uma nova maneira de fazer política era possível. Os dois não cumpriram, em diapasões distintos, e precisam se reiventar.
Eliane Cantanhêde: Os antagonistas
Bolsonaro reina entre mais ricos e escolarizados; Haddad, entre mais pobres e sem instrução
A melhor expressão do antagonismo entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) está no perfil dos seus eleitores e, particularmente, num dos segmentos das pesquisas: enquanto o favorito encanta os mais ricos e escolarizados, que acreditam no velho que se diz “novo”, o petista consolida a posição entre os de menor renda e instrução, que creem piamente no Pai Lula. Até nisso os dois representam os extremos.
Pelo Ibope/Estado/TV Globo, Bolsonaro, que virou o queridinho do mercado, cresceu cinco pontos e atingiu 51% entre os eleitores de maior renda familiar mensal. Na outra ponta, Haddad perdeu seis pontos entre os mais ricos, mas cresceu sete pontos e atingiu 33% entre os de menor renda.
Bolsonaro continua subindo e está com 43% entre os que têm maior nível de instrução, enquanto Haddad disparou oito pontos e foi para 34% no campo oposto, dos menos escolarizados, além de também crescer seis pontos entre os que têm só ensino fundamental completo.
Se Haddad lidera no Nordeste, com 36%, Bolsonaro está na frente em todas as demais regiões, inclusive no populoso Sudeste, onde o petista cresceu cinco pontos, mas só chega a 18%.
Esse dado combina com o desempenho dos candidatos do PT aos governos estatuais. Eles comem poeira em São Paulo, Rio e Espírito Santo e o governador Fernando Pimentel, que disputa a reeleição, está em segundo lugar em Minas.
Sem partido e coligações importantes, Bolsonaro não tem candidatos oficiais fortes nesses Estados, mas os favoritos já pulam no seu barco em São Paulo, por exemplo, onde ele lidera com folga para a Presidência. Vide João Doria, do PSDB.
Se teve três péssimas notícias na semana anterior – estagnação, rejeição e derrota para todos no segundo turno –, Bolsonaro inverteu o jogo na reta final do primeiro turno, em que voltou a crescer, está em empate técnico com Haddad no segundo turno e conquista apoios relevantes, não só para vencer a eleição, mas também para governar.
Assim como cresceu entre os mais ricos e escolarizados, ele também chegou a 43% entre os evangélicos e a 35% nas capitais, que têm maior poder de influência na eleição e sobre o Congresso.
Se não tem apoio formal de partidos nem sabe lidar com eles – já passou por nove, em sua longa, apesar de apagada, carreira política –, Bolsonaro recebeu a adesão oficial da considerável Frente Parlamentar da Agropecuária e, informal, da Frente Evangélica e da “bancada da bala”, que defende o armamento da população como forma de combate à violência. São todas frentes suprapartidárias, formadas por deputados e senadores de centro e, principalmente, de direita. E, se são fortes hoje, devem vir mais fortes ainda em 2019, surfando na clara onda de direita que assola o País e resulta em Bolsonaro. Ele é causa e, mais ainda, efeito dessa onda.
De qualquer forma, as pesquisas ainda não confirmam o entusiasmo e o discurso da campanha bolsonarista de que é possível vencer em primeiro turno. Pelo Ibope, ele tinha 38% dos votos válidos até quarta-feira. Impossível nada é, mas é bastante difícil que consiga 12 pontos nesses quatro dias para fechar a eleição já no domingo.
Pode ser um alento para Haddad, já que o segundo turno é uma segunda eleição, com tempo igual de TV e com intensa movimentação de políticos e eleitores para se recolocarem. Mas uma coisa é certa: Bolsonaro atravessou todo o primeiro turno em vantagem e chega ao segundo demonstrando força e colhendo adesões. Haddad herdou boa parte dos votos que seriam de Lula, mas está herdando também a imensa rejeição ao PT. A organicidade, a estratégia e a disciplina do partido não estão dando conta de reagir à altura.
José de Souza Martins: Revelações dos nomes de urna
Uma comparação impressionista das listas de candidatos, nestas eleições de 2018, com o que era a representação política no país há 60 anos, mostra que o perfil do político brasileiro mudou muito. Então, estávamos mais perto da concepção republicana ideal do poder, que encobria, no entanto, persistências da limitada representação política da época da escravidão. Hoje, ainda que politicamente confusos, estamos mais próximos de uma representação democrática.
As listas têm indícios de que estamos também confusos em relação a nós mesmos. São numerosos os candidatos que se apresentam ao eleitorado com o chamado nome de urna diverso do respectivo nome civil. O que querem dizer os que assim se identificam e se candidatam e, também, os que neles votam? Há muitos nomes esdrúxulos como, em São Paulo, o de Buscando o Imponderável e o de Geraldo, o Iluminado; no Ceará, Faisk e Fumaça; na Bahia, Vado Malassombrado; no Rio Grande do Sul, Cavaleiro da Esperança e Gauchinho de Deus.
Se as listas de nomes de urna para deputado federal dão indicações do que é nossa política, ao revelarem a extensa crise de identidade dos brasileiros, também dão esclarecedora visibilidade política ao pluralismo do país.
É extensa a participação de pretos e pardos em quase todos os Estados. Embora muitos candidatos pretos, pardos e brancos estejam em dúvida ao assumir a identificação racial que a ficha eleitoral lhes pede.
Há casos, como o de uma mulher preta, com curso superior, que se autodefine como branca. E há casos, como o de uma loira que se identifica como preta. Isso em São Paulo. Há pretos cujos apelidos os puristas das demandas raciais poderiam atribuir a suposto racismo de branco: na Bahia, Delegada Negrona e Marcos Antônio, o Negrão, ambos realmente pretos.
Muitos brancos identificam-se como pardos, tímida aceitação da nova onda de identificação racial no Brasil. A pluralidade racial brasileira, se tem os reacionários que a recusam, tem também os que se identificam com a concepção de um Brasil multirracial e mestiço. No Ceará, uma candidata parda conciliou os opostos ao adotar o nome de urna de Dani Alvinegra. Em Pernambuco, outra também parda, tem por nome de urna A Marron.
São muitas as mulheres candidatas. As candidaturas de mulheres, tanto quanto as de pretos e pardos, expressam o empenho dos respectivos grupos em corrigir a injustiça histórica de seu quase banimento da cena política.
É também notório que há muito mais evangélicos, especialmente pastores e pastoras, disputando uma cadeira de deputado federal. E a diversidade das profissões é hoje maior do que aquela do tempo em que a nossa representação política era predominantemente de fazendeiros e bacharéis.
Os nomes de urna diferentes dos nomes civis, porém, indicam que a sociedade pós-moderna não oferece a extenso número de brasileiros referências por meio das quais se vejam como cidadãos de um país chamado Brasil e membros de uma sociedade que possa ser definida como nossa. Os nomes de urna são indicações da fragmentação desta sociedade.
Os grupos de referência subjacentes a esses nomes são politicamente pobres e limitados àquele que é o público de relacionamento dos candidatos. Nossa identidade básica é comunitária. Ao se conceber o país como mera sociedade de classes sociais, o que ocorreu foi sobretudo a disseminação de identidades sociais precárias e redutivas, próprias da realização insuficiente, entre nós, da sociedade de consumo e de seus agentes. Ainda não conseguimos ver além da pessoa que nos vende um remédio ou a que diagnostica nossa doença.
Nosso mundo é o dos relacionamentos cara a cara, ainda que o outro seja fantasiosa personagem de circo, rádio ou TV, como o Bira do Jegue, na Bahia. Não vemos nem compreendemos o todo e suas ocultações, o lado invisível das relações políticas. Nosso sistema político nos priva da mediação dos conceitos e nos limita à mediação de pessoas.
Grande número de candidatos adota nome relacionado com a ocupação ou com a profissão. Dirigem-se a clientes, não a cidadãos. É o caso dos que antecedem o nome com um "Dr. Fulano", ou um "Professor sicrano". Ou, Adriana Vaqueira, André o Cobrador, Robério da Cesta Básica, Pinheiro do Queijo, Ribamar do Hospital, Marconi da Galinha, Paulo da Autoescola, Andréia da Farmácia, Cabral dos Químicos, Daniel Perueiro, Edson Bananeiro, Nairzinha do Tempero.
Chama a atenção o destaque dado nos apelidos eleitorais às funções policiais e militares, Sargento, Coronel, Comandante, Delegado Federal. Reflexo destes tempos de busca de políticos no universo profissional do controle social repressivo. Nossa pobreza política começa no vazio de nome do nome de urna.
*José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "A Sociologia como Aventura" (Contexto).
Fernando Gabeira: Uma campanha à deriva no mundo
A política externa é nacional, não pode ser definida por uma visão estritamente partidária
Mais ou menos conforme previa, a situação internacional teve pouco peso na campanha de 2018. Não se parou para pensar na sua complexidade e nas consequências no futuro próximo do Brasil. O tema ficou reduzido às relações com os países vizinhos: a Venezuela ocupou o centro, uma vez que seu drama atravessa a fronteira.
É um debate desconfortável para a esquerda, que apoia Maduro, pois milhões de pessoas na estrada julgam com os próprios pés o governo bolivariano. Mas se olhamos um pouco mais amplamente, há outros traços que favorecem a esquerda. A ascensão de Donald Trump já se dava num quadro de relativo declínio da supremacia americana, atenuada pela tática do soft power de Obama.
Trump optou por um caminho isolacionista, cortando vínculos multilaterais e abrindo mais espaço para a China, que o ocupa com rapidez. Embora expresse o temor dos americanos com a globalização, Trump ainda vive um processo de aprendizado, cheio de erros.
Os chineses, a julgar pela visão de Henry Kissinger, planejam por gerações, a escala de tempo de seu projeto é algo que supera de longe os planos de um só presidente. Além de ocupar os espaços abertos pelos EUA, a China se aproxima da Rússia, que, por sua vez, ampliou seu poderio militar. Um dado dessa força foi o anúncio de Putin sobre as novas armas nucelares, em março de 2018.
Consegui perguntar a alguns candidatos sobre a relação com a China, que já é o maior parceiro comercial do Brasil e vive um momento de expansão. Existe um debate sobre o papel da China como investidora em países da África. Alguns consideram que ela exerce um forte poder político por meio da presença econômica, interferindo até nos marcos regulatórios. Outros afirmam que a fragilidade desses países não pode ser atribuída à ação chinesa, mas ao precário sistema jurídico local. Este argumento é interessante, porque os europeus parecem abertos e até felizes com a atração dos capitais chineses.
Essa questão ficou mais ou menos no ar, a partir de um consenso de que o capital chinês é bem-vindo. Bolsonaro afirmou que os chineses podem comprar e vender no Brasil, mas não comprar o Brasil. Não ficou claro se sua restrição é apenas à compra de terras ou se falava de um Brasil menos material do que o chão, matas e rios.
A verdade é que a correlação de forças muda no mundo e o peso econômico da China será cada vez maior. Mas não é conveniente subestimar não só o poder econômico, mas a influência cultural norte-americana.
Se olharmos a guerra cultural que se travou na campanha entre esquerda e direita, veremos que ela não é só influenciada pelos norte-americanos, como também se entrelaça com o debate de lá. Vários artistas americanos opinaram sobre a eleição brasileira por encontrarem pontos de identidade com a luta que travam contra Donald Trump.
China e Rússia não veriam com bons olhos manifestações de gays e mulheres em seu território. Nesse campo cultural, ambas se colocam num campo oposto ao que se chama de visão de esquerda no Brasil.
A esquerda soube se aproximar das lutas identitárias e carimbá-las como uma decorrência de sua visão de mundo. Pessoalmente, reconheço que tive um papel nisso.
Mas algumas dessas lutas em outro contexto, como o russo, por exemplo, nascem no reduto liberal. E é compreensível, porque quase todas elas tratam, no fundo, de liberdades individuais.
Na campanha brasileira as coisas não aparecem com nitidez. De um lado, uma aliança entre conservadores nos costumes e liberais na economia. É um encontro que tende a produzir faíscas. Em recente entrevista, Vargas Llosa criticou o economista liberal Paulo Guedes por se associar a Bolsonaro. Ele acha que são visões incompatíveis.
De outro, na esquerda, a análise da queda de Dilma parece ter concluído que era preciso não apenas ganhar as eleições, como tomar o poder. O que significa reduzir os poderes que a confrontaram: Justiça e imprensa. Dificilmente a tendência autoritária na visão de governo não se chocará com as pessoas que votaram apenas porque temiam Bolsonaro.
Para mim, todas essas peças que se juntam e se opõem precisam ser mais bem avaliadas. Minha conclusão momentânea é que, no poder, só uma direita soft ou uma esquerda soft evitariam a turbulência.
Li uma frase engraçada sobre eleições: são como um bufê, você não pode pedir um ovo frito. Mas depois das eleições, quem sabe? O vencedor será o presidente de todos os brasileiros. Nem todos cabem no figurino dos ideólogos.
Quanto à política externa, que ficará ainda por ser mais bem discutida, é essencial que seja compreendida como algo nacional e não definido por uma visão estritamente partidária. Não só porque a estreiteza exclui um consenso interno mais amplo. É que a complexidade do mundo assim o exige.
No passado, quase nunca discutíamos o papel do Brasil no mundo. Pelo menos, antes de avaliarmos que mundo é esse a que nos referimos. Se a campanha não fizer isso no segundo turno, certamente o problema reaparece no ano que vem.
Um dos pontos que devem ser muito bem pesados é a política ambiental. Bolsonaro tem proximidade com Trump nesse tema. Porém adotar a mesma política no caso brasileiro significa um grande impacto internacional.
Certamente foi grande o impacto da saída dos EUA do Acordo de Paris, por exemplo. A importância dos norte-americanos na política ambiental decorre muito de sua importância econômica, seu papel na redução de emissões. No caso brasileiro, qualquer passo atrás será visto com sobressalto. É como se uma potência ambiental deixasse de se unir ao esforço planetário para atenuar as mudanças climáticas.
Tudo isso em véspera de eleição fica um pouco em suspenso como uma camada de pó. Quando a poeira baixar... Vamos esperar o que dizem as vozes de domingo. São o farol que vai clarear o novo pedaço do caminho.
Luís Roberto Barroso: A República que ainda não foi
Nos 30 anos da Constituição, há muito que avançar
Ao celebrar o trigésimo aniversário da Constituição brasileira, é possível olhar para trás e fazer um balanço de conquistas e frustrações do período. Na contabilidade positiva, devem-se lançar: 30 anos de estabilidade institucional, a conquista de estabilidade monetária e uma expressiva inclusão social. Em uma geração, derrotamos a ditadura, a inflação descontrolada e obtivemos vitórias marcantes sobre a pobreza extrema. Nenhuma batalha é invencível.
A essas realizações se somam avanços importantes nos direitos humanos, com destaque para os direitos de mulheres, negros, gays e populações indígenas.
Além disso, consolidamos a liberdade de expressão em um país de tradição autoritária e cultura censória. E o SUS, com todas as dificuldades de subfinanciamento e gestão, é hoje o maior sistema público de saúde do mundo, do qual dependem 160 milhões de pessoas.
Na contabilidade negativa, não podem estar de fora: um sistema político que reprime o bem e potencializa o mal, e que precisa ser reformado para se tornar mais barato, mais representativo e facilitar a governabilidade; a revelação de um quadro de corrupção estrutural e sistêmica, que nos coloca no 96º lugar no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional, e só agora passou a ser enfrentado pela sociedade e pelas instituições; e o fato de sermos o país mais violento do mundo, com 63 mil homicídios por ano.
As aflições do momento se devem aos embates para a superação da velha ordem. Olhando para o futuro, três itens devem estar na agenda brasileira: um pacto de integridade e republicanismo para substituir o modelo oligárquico de apropriação privada do Estado; um choque de livre iniciativa, com mais sociedade civil e menos oficialismo, sem desmonte dos programas sociais de proteção destinados a garantir dignidade e oportunidades para os menos favorecidos; e uma opção verdadeira e engajada em favor da educação. Elaboro esse último ponto.
Precisamos transformar a educação básica em um projeto nacional, suprapartidário e patriótico. Não um slogan, mas uma obsessão construtiva. Quando da transição do governo Dilma Rousseff para o governo Michel Temer, o grande debate no país foi acerca de quem seria o ministro da Fazenda, o presidente do Banco Central e o presidente do BNDES. Todos compreensivelmente preocupados em escolher os melhores nomes e os melhores rumos.
A educação, no entanto, entrou no racha geral da política. Aliás, tivemos cinco ministros da Educação nos últimos quatro anos e meio. Não há política pública que possa resistir a tal fragmentação e descontinuidade.
Já temos diagnósticos de alguns dos principais problemas. Três deles são: não alfabetização da criança na idade própria; evasão escolar no ensino médio; déficit de aprendizado revelado nos exames de avaliação domésticos e internacionais.
Por outro lado, pesquisas mundiais documentam que um dos melhores investimentos que um país pode fazer é no ensino infantil de zero a três anos, fase da vida em que o cérebro absorve como uma esponja tudo o que seja a ele transmitido.
Essa é a hora de dar à criança nutrição, afeto, respeito, valores e capacidades cognitivas. Num país com muita pobreza e tantos lares desfeitos, a ampliação máxima do ensino nessa fase é um caminho para a superação dos três problemas referidos acima.
Em meio à polarização política, o país poderia celebrar dois pactos, que funcionariam como um denominador comum que uniria os extremos. O primeiro seria o compromisso de integridade, materializado em duas regras: na ética pública, não desviar dinheiro; e, na ética privada, não passar os outros para trás.
O segundo seria um plano estratégico, de curto, médio e longo prazos para a educação básica. A ser conduzido pelos melhores quadros possíveis, que não estejam à mercê dos prazos e circunstâncias do varejo político. Com atraso, mas não tarde demais, essa será a grande revolução brasileira, pacífica e construtiva.
*Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal; professor da Uerj e do UniCeub e colaborador acadêmico da Harvard Kennedy School (EUA)