100 anos de Luiz Maranhão

Livros sobre Luiz Maranhão

Há duas importantes biografias de Luiz Maranhão. A primeira delas tem o título A aposta de Luiz Ignácio Maranhão Filho. Católicos e comunistas na construção da utopia, de autoria de Maria Conceição Pinto de Goes, publicada em 2000 pela Editora Revan. No link abaixo, leia a resenha do livro escrita pelo professor Raimundo Santos, da UFRJ, falecido o ano passado.

Do diálogo à casa comum

Raimundo Santos

Maria Conceição Pinto de Goes. A aposta de Luiz Ignácio Maranhão Filho. Católicos e comunistas na construção da utopia. Rio de Janeiro: Revan, 2000. 270p.

Mesmo que nunca se saiba quão completamente veraz é a história registrada por uma biografia, ela traz até nós em cores fortes o sentido da vida de uma época como nenhum outro documento. É o caso desse belo livro A aposta de Luiz Ignácio Maranhão Filho, com o qual a professora da UFRJ Maria Conceição Pinto de Goes amplia para o público o conhecimento sobre a trajetória de um combatente da democracia, morto nos porões do regime de 64. Com muita paixão, muitas vezes ela própria perto das circunstâncias, a autora constrói o interesse do leitor pelo protagonismo de Luiz Maranhão, primeiro ao falar da aposta na construção da utopia que ele começou a fazer, no clima intelectual do Ateneu de Natal da passagem da década de 30 aos anos 40. Depois, virão os relatos sobre o ingresso no PCB em 1945 e o pesadelo da primeira prisão e tortura em 1952-53; o tempo do pré-64 vivido através dos mandatos de deputado estadual, novamente a tortura e o cárcere em Fernando de Noronha, em 1964; e, por último, a militância no Rio de Janeiro e em São Paulo, até 1974.

Aos leitores mais contemporâneos de Luiz Maranhão é impossível não seguir de perto a marcha dos acontecimentos, não se angustiar com as suas torturas, sobremaneira não sentir a sombra que recobriu o seu desaparecimento. Mas é preciso ver no exemplo de coragem e desprendimento a dimensão do homem político que a autora quer mostrar. Dessa perspectiva, o que fica para ser lido hoje é o sentido das suas razões práticas que, antes de desaparecerem com a morte prematura, foram vividas por Luiz Maranhão como membro de um movimento de idéias, de política e cultura, de curso difícil e contraditório, com correntes nuançadas, e, hoje, parte da cultura política brasileira: o reformismo do PCB, pluriclassista e centrado na democracia política.

Nesse sentido, poder-se-ia tomar a biografia de Luiz Maranhão como um dos pontos de referência do movimento de ampliação do marxismo brasileiro que teve lugar entre 1965 e 1968, do qual ele e o seu partido participaram como protagonistas que, do campo da política, também captavam os “sinais dos tempos” que aqui chegavam, estimulando o “campo democrático”, a Igreja, a “classe política” e os intelectuais, a reagirem ao avanço do clima de descrença daquela época de radicalização de anticomunismo no aparelho do Estado e de preparativos para o “milagre” econômico.

“Sinais dos tempos” que, nos partidos comunistas, continuavam a germinar sob os efeitos do XX Congresso do PCUS e da Primavera de Praga, que não haviam esterilizado o campo da esquerda. Em modos diferentes, os “novos rumos” ora vinham anunciados pelas discussões de alguns PCs ocidentais sobre as conseqüências (falava-se, então, do domínio da energia nuclear, das explorações cósmicas e da cibernética) que a Revolução Técnico-Científica trazia, principalmente ao mundo do trabalho; ora chegavam mediante a elaboração do “caminho democrático ao socialismo” do PCI e através de outros movimentos teóricos e filosóficos que evocavam os Manuscritos Econômico-Filosóficos do jovem Marx, polarizando parte da intelectualidade européia entre o que às vezes se chamava de humanismo marxista e o estruturalismo. Na outra ponta, na Igreja, encíclicas eram refundidas no espírito do Concílio Vaticano II e conferências viriam testemunhar o “diálogo da Igreja com o mundo moderno”, usando a expressão com a qual Alceu de Amoroso Lima chamou o seu artigo de abertura do primeiro número da revista Paz e Terra, empresa levada adiante, naquele imediato pós-64, por alguns “homens de boa-vontade”, católicos e comunistas que se aproximavam seguindo o programa inscrito no subtítulo da própria revista: “Ecumenismo e Humanismo. Encontro e Diálogo”.

Como lembra a professora Goes, esse encontro vinha de longe, desde a união dos comunistas com os cristãos contra o fascismo durante a guerra; continuara com o tema do diálogo no PCF de Maurice Thorez e de Roger Garaudy; e, no PCI de Togliatti, ele se desenvolve até chegar ao “compromisso histórico” – concretizando a idéia engelsiana de “revolução da maioria” –, formulado por Enrico Berlinguer em 1973, por ocasião dos acontecimentos do Chile de Allende. Como observa Goes, aqui, no Brasil, o PCB estava vivendo a prioridade da sua circunstância, empenhado em discutir as possibilidades de derrota da ditadura através da luta politica (p. 232). “Obssessão pela política” que não resultava da pura intuição e praticismo, mas que vinha de um caminho de pedras andado por quem se exigia práxis teoricamente pensada e considerava, bem ou mal, as idéias momento da política. Aliás, havia, naqueles primeiros anos da ditadura, uma verdadeira “batalha das idéias” no campo da esquerda e centro-esquerda (um ensaísta já falou em “hegemonia cultural” da esquerda nessa época), que o historiador só a reconhecerá relevante se acurar a vista nas suas expressões maiores: a editora e a revista de Ênio Silveira, onde aqueles sinais dos tempos apareciam em meio aos debates sobre o estruturalismo e à discussão sobre a crise do socialismo, por onde passavam os temas da oposição ao regime de 64.

Onde estão os textos de Luiz Maranhão?

A autora fala de “alguns deles” (são mencionados dois escritos e uma iniciativa editorial), mas o que ela deseja mostrar é mais o sentido da militância de Luiz Maranhão como exemplo de um pecebista que abria caminho para a orientação das frentes políticas e da moderação da “linha de atuação” gramsciana (p. 243) (*). Há indícios mais antigos que despertam interesse, inclusive o texto nietzschiano no qual o jovem intelectual, aos 21 anos, confessava o seu sentimento de “estranheza” e anunciava o seu programa de engajamento, prenunciando a sua “vocação política”, como propensão para o tema da irreconciliação das coisas com o espírito; parece, aos olhos da professora Goes, que já ali, sem negar os fatores materiais, ele procurava, no dilema do materialismo histórico, “uma posição intermediária, sem dogmatismos, em que as duas concepções não se afastem, mas, ao contrário, se aproximem, pois (neste ponto Goes cita o texto do conferencista), “em verdade, tanto os espíritos superiores como as necessidades econômicas governam o mundo” (p. 66). Com o ingresso ao PCB em 1945, começava o aprendizado da “política aberta”, intra e extramuros, já no episódio da expulsão de Djalma Maranhão do PCB em 1946, que também o leva a se afastar do Partido. Diferentemente do irmão, depois ele regulariza a sua militância, enquanto Djalma Maranhão vai para o PSP que João Café Filho havia criado, no Rio Grande do Norte, agrupando sindicalistas, funcionários públicos e parte da intelectualidade. Aliás, na eleição presidencial de 45, essa articulação, que chegara a ser a terceira força política do Estado, conferiu ao comunista Yedo Fiuza a maior votação de Natal (p. 78).

Como observa Goes, se o martírio das torturas de 52/53 reforçou-lhe o desprendimento à causa, as suas experiências subseqüentes o levavam para o encontro com o que depois seria definido no PCB como a Nova Política. Sem participar da direção obreirista do partido no Estado, ele seria um dos delegados ao IV Congresso de 1954 (p. 106-7) e, então, já percebia contradições numa linha política tensionada pela exigência de amplas alianças. Pela primeira vez, candidata-se a deputado estadual em 1954, com uma idéia de frente única eleitoral. Mas só obtém sucesso em 1958, após a Declaração de Março, que encerrara os debates sobre o XX Congresso do PCUS e a divisão do PCB entre a ala conservadora e o grupo “pragmático” (sic): “A nova política vem ao encontro das práticas já seguidas por Luiz Maranhão em sua campanha para as eleições de 1958 à Assembléia Legislativa Estadual, quando percorreu todo o Estado do Rio Grande do Norte. Tudo leva a crer que Luiz Maranhão não esteve entre os conservadores do Partido” (p. 117). Com os mandatos (reeleito em 62), ele fará o seu próprio exercício no significado da nova política. Nas eleições de 1960, no Rio Grande do Norte, Luiz Maranhão se envolve, resistindo a princípio, com o movimento da oposição para formar palanque para Lott ao lado da candidatura udenista de Aloisio Alves ao governo do Estado. Viria surgir daí o “novo tempo” aberto em Natal pelo prefeito eleito por aquela articulação, Djalma Maranhão, com os seus movimentos culturais (“Praças da Cultura”) e de alfabetização popular (“De pé no Chão Também se Aprende a Ler”); de onde ele também avistava a “Frente do Recife” constituir a prefeitura de Arraes, assim aprendendo a lidar com o fato novo da “aliança das forças de esquerda, sob liderança do PCB, com os liberais e os conservadores modernos” (p. 152). No seu laboratório de Natal, ele vai acompanhar de perto um governo composto por forças nuançadas, o prefeito preferindo trabalhar através de frentes políticas “que garantissem levar adiante, sem muito risco, seu programa administrativo”, enquanto os aliados da jovem esquerda católica tendiam a diversificar as suas táticas (p. 174).

Maria Conceição Pinto de Goes se refere ao imediato pré-64 como um situação paradoxal, por encerrar uma revolução social que não obedecia ao conceito que lhe dava Condorcet, como Hannah Arendt lembrava à autora, segundo o qual “a palavra revolucionário só pode ser aplicada a revoluções cujo objetivo seja a liberdade”. Aqui o modelo de revolução teria de ser um “paradigma de revolução” próprio, “em que se fundissem as liberdades, os direitos políticos, acabassem a miséria e seus desdobramentos, incorporasse a luta pela independência econômica frente ao imperialismo e, como etapa final desse processo, se chegasse à construção do socialismo” (p. 160). Pela convergência de governos, federal e alguns estaduais, com setores mobilizados da sociedade civil, formara-se um clima que projetava a idéia de que se vivia uma revolução irreversível – anota a autora, valendo-se de apreciações de Alain Touraine sobre o pré-64. Nas avaliações autocríticas posteriores do PCB, teria sido um erro crucial das forças reformistas a troca da perspectiva gradualista e de longo prazo, como pregavam os textos do seu V Congresso de 1960, pelas ações de poder de curto termo; vale dizer, a subestimação da falta de “alicerces políticos”, notadamente os partidos, para realizar o vasto programa de realizações, como dissera à época Caio Prado Jr..

Luiz Maranhão se transferiu para o Rio de Janeiro em 1965, no mesmo ano da primeira reunião clandestina do PCB, na qual foi definido que as liberdades democráticas deveriam ser o eixo da política resistência ao regime de 64. O PCB começava a se mover para participar das largas articulações para as primeiras eleições, de onde sairiam vencedores Negrão de Lima, no Rio de Janeiro, e Israel Pinheiro, em Minas Gerais. Será a época do VI Congressos e das divisões internas, Luiz Maranhão integrando a maioria do Comitê Central que oficializa a orientação de “resistência, isolamento e derrota” da ditadura a partir de um movimento de frente única. A essa estratégia estará voltada a última fase da militância de Luiz Maranhão: “Havia, não uma pedra, como dizia o poeta, mas três pedras no caminho da ””revolução”” [de 1964], difíceis de serem contornadas. A primeira, a formação da Frente Ampla sob a liderança de Carlos Lacerda; a segunda, o nacionalismo sedimentado em parte da oficialidade das Forças Armadas e, a terceira, a opção de resistência da Igreja Católica através de seus setores progressistas. Luiz Maranhão esteve presente nas três” (p. 214). A autora relata a presença de Luiz Maranhão, Orestes Timbaúva e Armênio Guedes, entre outros, na reunião com Lacerda. Em relação à segunda pedra, a articulação do jornal Fato Novo, com o qual os comunistas pensavam interpelar o nacionalismo de setores da Forças Armadas. A participação de Luiz Maranhão como assistente da direção do PCB nesse empreendimento teve pouca duração, pois, objeto de divergências, logo a iniciativa foi interrompida (p. 220).

É na terceira que Luiz Maranhão mais é identificado em seu elemento. A autora não só revive as aproximações com a Igreja mais longínquas, como relata, entre outras, a sua missão de se reunir com religiosos em Recife, e a interlocução, inclusive através de correspondência, que ele manteve com Roger Garaudy (“Luiz Maranhão tinha a perfeita compreensão dessa conjuntura resultante do desenvolvimento técnico e científico, criando novas contradições, um novo trabalhador e uma sociedade mais complexa. A ação política nesse novo tempo, necessariamente, só poderia realizar-se com democracia. Identificou-se com o pensamento político de Roger Garaudy, membro do Partido Comunista Francês, e dos mais lúcidos intelectuais do Ocidente Europeu, que não acreditava em socialismo sem democracia” (p. 222). Luiz Maranhão acompanhava de perto a empresa de arejamento do marxismo em curso nas páginas da Revista Civilização Brasileira. Goes registra inclusive o seu repúdio à invasão dos soviéticos em Praga e ainda menciona a resistência que ele encontrava em círculos pecebistas com os quais tentava discutir as reflexões de Garaudy.

Em suma, é como se a trajetória de Luiz Maranhão fosse um caminhar em direção à estratégia das frentes políticas – também convergente com o movimento de Ênio Silveira –, mobilizando velhos e novos intelectuais pecebistas, para trazer para dentro do PCB e da esquerda as novas idéias que provinham dos debates marxistas europeus, especialmente do PCI, esta uma presença pequena, mas intermitente no PCB, desde 1956. Mesmo que sejam poucos os indícios documentais para se avaliar o papel de Luiz Maranhão nesse empreendimento, fica a sensação de que o seu resíduo nietzschiano – a tensão do desencontro entre o mundo real e a utopia – ainda estava vivo nas discussões que ele procurava fazer em seu ambiente, posicionando-se no debate estruturalista sobre o papel do indivíduo na história, o determinismo e a iniciativa; discussões que a autora confirma, com o testemunho de contemporâneos seus, que haviam sido membros de um “Comitê de Entendimentos” do PCB.

Pena que a autora não ponha mais elementos para caracterizar essa área de atuação do PCB, aliás, campo privilegiado, como sugerem dois documentos bem expressivos da política do PCB: a “Resolução Política do Comitê Estadual do PCB da Guanabara” (1970) e “O Trabalho de Entendimentos Políticos” (aprovado na reunião do Comitê Central de setembro de 197l). Textos cuja leitura, hoje, lembra o perfil de Luiz Maranhão. O primeiro examinava o quadro político, à Gramsci, combinando a análise da conjuntura (o endurecimento do regime no pós-68) com a consideração dos “fatores permanentes” de médio e longo prazos (conflitos do regime com a classe política, a crise econômica, etc.) para definir a política como previsão; enquanto o segundo trabalhava o tema da perspectiva para balizar a política corrente, no caso, concretizar as possibilidades de atuação com a Igreja (setores e como instituição), o MDB e com todos aqueles que discordavam, total ou parcialmente, de um ou vários aspectos do regime de 64.

É muito sugestiva a idéia da autora de que a trajetória de Luiz Maranhão espelha o valor que a política tinha para ele: como para Gramsci, que dizia que “…só a política cria a possibilidade da manobra e do movimento”, ou como a entendia Hannah Arendt, para quem a política “trata da convivência dos contrários” (p. 233). Em sua última fase de atuação, parece que Luiz Maranhão emitia sinais da necessidade de se ampliar o tema das relações entre católicos e comunistas. Ele vivia o clima da revista Paz e Terra, de transição do “anátema ao diálogo”, como então se dizia, parodiando o livro de Garaudy; e também de transição da discussão sobre a crise do socialismo para o movimento de renovação do marxismo empreendido pela editora e a revista Civilização Brasileira. Já se estavam percebendo os primeiros sinais de outros tempos novos, testemunhados depois pelo debate eurocomunista, e que terminam equacionando as tarefas que hoje – depois de 1989 e do fim da URSS – cada vez mais vêm sendo exigidas como único meio de substituir o naturalismo neoliberal: a recriação da esquerda num processo de mistura com outras culturas políticas democráticas e mudancistas e o desafio da construção da subjetividade dos próprios instrumentos de “frente única”, cujos valores são requisitos decisivos para a concretização dos seus programas de governo e para o aperfeiçoamento da sociedade na nova era da globalização.

(*) Os textos são a palestra “Lembrança de Zaratustra”, proferida em 1943 no Ateneu de Natal, e “Marxistas e católicos: da mão estendida ao único caminho”, Paz e Terra, 1968. Luiz Maranhão teria organizado o volume A marcha social da Igreja, contendo as encíclicas “Populorum Progressio”, “Pacem in Terris” e “Mater et Magistra”, com um capítulo que teria sido escrito por ele e uma introdução de Alceu de Amoroso Lima. O livro foi publicado pela editora Encontro, em 1967.

Raimundo Santos é professor da UFRRJ e autor dos livros O pecebismo inconcluso e Questão agrária e política: autores pecebistas, ambos publicados pela Edur, Rio de Janeiro.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil

Confira a publicação original em:
https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=196


Luiz Maranhão, o santo ateu

Uma segunda biografia foi escrita pela escritora, jornalista e deputada estadual Heloneida Studart, intitulada Luiz, o Santo Ateu, publicada pela Editora da UFRN, de 2006. No link a seguir, leia a resenha do livro escrita por Luciano Oliveira, professor da UFPE.

Luciano Oliveira – Maio 2008

Heloneida Studart. Luiz, o santo ateu. Natal: Editora da UFRN, 2006. 344p.

O filósofo e humanista inglês Bertrand Russell, num livro pertencente ao gênero das Vidas ilustres de Plutarco, que ninguém mais lê (Plutarco e Russell…), faz a seguinte observação a respeito de certas figuras humanas que viveram sobre a terra: “Todos nós achamos que vale a pena conhecer os grandes heróis do drama ─ Agamenon, Édipo, Hamlet e os demais ─, mas existiram homens reais cujas vidas tiveram as mesmas qualidades que a dos grandes heróis trágicos, e que tiveram ainda o mérito de haver realmente existido” (Retratos de memória e outros ensaios. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, p. 183).

Essa passagem me veio à lembrança ao ler o último trabalho publicado de Heloneida Studart ─ que, sem alarde, deixou-nos em dezembro de 2007: Luiz, o santo ateu. O livro é ao mesmo tempo biografia, homenagem e declaração de amor póstumo a Luiz Maranhão, um dos comunistas brasileiros triturados pelo regime militar em 1974 ─ um momento em que, com a luta armada urbana destroçada e a guerrilha do Araguaia agonizante, já não havia subversão que justificasse a ditadura e seu temível aparato de segurança. O velho PCB, o famoso Partidão, apesar de sempre ter sido contra a sublevação pelas armas, virou uma espécie de reserva de caça dos torturadores do regime. Vários comunistas históricos “desapareceram” nessa época. Luiz Maranhão foi um deles.

Nascido em Natal, no Rio Grande do Norte, em 1921, Luiz Maranhão era um ginasiano de quatorze anos quando irrompeu na sua cidade a sublevação armada que veio a ser conhecida como Intentona Comunista. O menino viu aquilo tudo como se estivesse assistindo a um folguedo. Poucos anos depois, tinha se tornado comunista. Isso que hoje nos parece tão anacrônico, naquele tempo era uma rota legítima e até previsível. Vale a pena não esquecer, ou relembrar, que entre os anos trinta e quarenta ─ período da formação de Luiz ─ a democracia liberal, essa que hoje é praticamente consensual no mundo inteiro, parecia estar com os dias contados. Era considerado um regime fraco, caótico e demagógico, que não conseguia formar governos estáveis e, além disso, não era capaz de cumprir suas promessas ─ inclusive de justiça social. Houve mesmo um momento em que praticamente todos os países que contavam, com exceção da Inglaterra (por ser uma ilha?…) e dos Estados Unidos (por estar distante da agitação européia?…), tinham adotado formas autoritárias de regime: o franquismo na Espanha, o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha… E a França, no rastro da débâcle de 1940, quando praticamente sem luta entregou-se às forças de Hitler, adotou o regime pró-nazista do Marechal Pétain. Até o nosso Portugal tinha o salazarismo…

Isso do lado ocidental do planeta. Do outro, havia a presença impressionante da União Soviética, o primeiro regime socialista do mundo instalado num dos maiores países da terra. E que, pelo menos nessa época ─ é bom relembrar isso às novas gerações ─, parecia funcionar! O stalinismo, malgrado sua brutalidade, tinha feito de uma nação medieval, a Rússia dos czares, uma potência industrial ─ e, ao fim da segunda guerra mundial, uma das superpotências vencedoras. Era o tempo dos grandes engajamentos. Quem tinha uma sensibilidade conservadora alinhava-se à direita; quem queria mudar o mundo alinhava-se à esquerda ─ aquela e esta encarnadas em ditaduras. No Brasil, era o tempo de tornar-se integralista ou comunista. A democracia, como hoje a conhecemos, tinha perdido qualquer charme.

Foi nesse contexto que tomou corpo entre nós aquilo que Marco Aurélio Nogueira chamou mais tarde de “sociedade civil comunista”, ou seja: uma proliferação de pessoas e grupos que intervinham em vários domínios culturais e que, malgrado sua adesão às teses do Partidão, eram mais do que simples correias de transmissão de suas diretrizes. Gente de alto prestígio intelectual como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Nise da Silveira, etc., num ou noutro momento, fizeram parte desse amplo movimento de homens e mulheres comprometidos com o ideal de mudanças profundas no Brasil, numa época em que o velho Partido Comunista era um desaguadouro quase natural desses engajamentos.

Tudo isso hoje nos parece insensato. Pode ser. Mas nos parece insensato depois das “duras réplicas da história”, para falar como Hegel. Houve um tempo em que homens de boa vontade ─ para usar uma expressão de ressonâncias bíblicas ─ acreditavam nas virtudes purificadoras da “ditadura do proletariado”. É ligeireza condená-los a partir do nosso desencanto de hoje. Há, na verdade, um anacronismo em jogar sobre o passado critérios de validade do presente. Se hoje estamos advertidos contra a ilusão de que seria fácil instaurar a felicidade sobre a terra através do stalinismo, do maoísmo, do castrismo ─ numa palavra, do “socialismo real”, é porque escrevemos depois do que foi a sua experiência. Temos, em relação a essa geração, o “privilégio” de ter conhecido a realidade que as idéias a que aderiram foram capazes de engendrar.

Aliás, mais cedo ou mais tarde, pelas mais diversas razões ─ inclusive a recusa das duras realidades da geopolítica e sua exigência de uma adesão incondicional à União Soviética ─, o barco do “socialismo real”, que há muito tempo fazia água mas só afundou de vez com a “queda do muro”, foi sendo abandonado por uns e outros. Permaneceram figuras como Luiz Maranhão, que fizeram uma opção pelo Partido Comunista na juventude e nunca o abandonaram.

Há sanidade moral nessa aparente loucura. Luiz, afinal, pela origem e percurso social que foi o seu, só teria a ganhar em deixá-la de lado o mais cedo possível. Oriundo da pequena classe média potiguar, ele diplomou-se advogado e fez uma carreira bem-sucedida como professor, jornalista e político, tendo sido eleito deputado estadual. Seu irmão, Djalma Maranhão, chegou a ser prefeito de Natal. Enfim, acedeu a uma vida bem posta. E no entanto, às doçuras do conforto provinciano, preferiu continuar a linha de vida que o levou à morte nos porões da ditadura militar. Há mistério nessas graves opções. Pelo menos, elas não são explicáveis pelos critérios usuais do interesse. Numa tirada famosa do Manifesto comunista, Marx conclama os operários do mundo inteiro a se unirem na luta revolucionária porque não têm nada a perder, a não ser “os grilhões”. Pois bem, figuras como Luiz Maranhão tinham tudo a perder: prestígio, conforto, sossego.

E não hesitaram: perderam!

Disso não se deduza, entretanto, que estamos diante de um daqueles homens de ferro cerrados em torno da visão stalinista do mundo. Luiz Maranhão era uma figura doce, míope, educada. Foi feminista antes do feminismo, e partidário do diálogo entre cristãos e marxistas antes da teologia da libertação. Leitor de Marx, foi também leitor de Teillard de Chardin e de Jacques Maritain, pensadores católicos responsáveis pela abertura da Igreja de Roma às realidades do século XX, e também de um outro pensador francês muito famoso pelo viés religioso que imprimiu ao marxismo, Roger Garaudy, de quem guardou a seguinte frase que sua biógrafa usa como mote do seu livro: “O outro mundo é apenas este mundo que será outro”. O livro de Heloneida ─ ela também uma comunista que nada tinha a ganhar em persistir na sua “loucura” ─ devolve-nos essa vida ilustre que vale a pena conhecer. Nessa debandada geral de valores que estamos vivendo, custa crer que houve no Brasil pessoas desse tipo.
Ar dos tempos…

Luciano Oliveira é professor da UFPE.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

Confira a publicação original em:
https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=930