Vícios Comportamentais
Ricardo Abramovay: A era dos vícios comportamentais
No Brasil, entre os mais jovens (de 16 a 24 anos) 40% ficam mais de cinco horas por dia em conexão, segundo a pesquisa brasileira de mídia
Adam Alter. Irresistible. The Rise of Addictive Technology and the Business of Keeping Us Hooked. New York: Penguim, 2018.
Nas inúmeras vezes em que o biógrafo de Steve Jobs esteve na mesa de jantar com a família do fundador da Apple, jamais viu alguém com um celular ou um iPad ao alcance da mão. Ao mesmo tempo que exaltava as maravilhas de suas criações nos eventos épicos em que as anunciava, Jobs era rígido em preservar seus filhos do contato cotidiano com estes produtos. Boa parte dos mais talentosos precursores das inovações originárias do Vale do Silício tomaram as mesmas precauções.
Por que razão algumas das maiores figuras públicas da tecnocracia contemporânea são tecnófobos quando se trata de suas vidas privadas? A pergunta formulada por Adam Alter em seu recém-lançado Irresistible pode ser respondida em duas palavras: vícios comportamentais.
Vício não consiste em algo que não podemos deixar de fazer. Respirar e comer não são vícios. A palavra se aplica quando envolve obsessão, compulsão, e quando nos faz mal. Equipamentos digitais são instrumentos extraordinários de comunicação, conhecimento, orientação e, cada vez mais, contribuem para nossa saúde, nosso conforto e nossa prosperidade. No entanto, sobretudo nos últimos dez anos, com os smartphones e a melhoria das conexões, eles se converteram em ameaça ao bem-estar dos indivíduos e à nossa sociabilidade. A internet das coisas, as roupas e relógios conectados (os wearables) e a realidade virtual vão agravar esta situação já muito preocupante.
No Brasil, entre os mais jovens (de 16 a 24 anos) 40% ficam mais de cinco horas por dia em conexão, segundo a pesquisa brasileira de mídia. Nos Estados Unidos, em 2008, as pessoas usavam seus celulares durante oitenta minutos diários. Em 2015 este tempo já era de 168 minutos. Um quarto dos adolescentes norte-americanos ficam nada menos que oito horas por dia diante da tela de seus dispositivos digitais. 40% das crianças entre zero e oito anos de idade possuíam um tablet em 2017. Em 2011 esta proporção não chegava a 1%. E 10% das crianças possuem algum tipo de brinquedo “inteligente”, ou seja, que interage com seu dono a partir de informações transmitidas à nuvem e, na maior parte das vezes, com assistentes de voz.
Jogos eletrônicos levaram os vícios digitais a um nível explosivo. O aumento em seu uso, a partir do início do milênio, foi estimulado por duas inovações fundamentais: o acesso por meio do smartphone e a interação social on-line. Os resultados são estarrecedores. Em 2017 a indústria norte-americana de vídeo games faturou US$ 36 bilhões, 18% a mais que em 2016, quando o faturamento já tinha aumentado 20% com relação a 2015, segundo a Entertainement Software Association. 75% do faturamento da Apple App Store vem de jogos. World of Warcraft, por exemplo, é jogado por mais de 100 milhões de pessoas, 40% das quais são viciadas. Como a interação social em torno destes jogos é global, seus participantes comprometem com imensa frequência suas noites de sono para manter-se em conexão.
Mas mesmo quem não pratica jogos eletrônicos padece, com imensa frequência, dos vícios comportamentais da era digital. 95% dos adultos usam dispositivos eletrônicos uma hora antes de dormir. Sua luz inibe a produção de melatonina, o que explica boa parte dos distúrbios contemporâneos do sono.
Examinando os dados que mostram como os norte-americanos usam seu tempo (American Time Use Survey – ATUS) e comparando os anos 2012/2015 com o de 2004/2007, um grupo de economistas mostra que os jovens de 21 a 30 anos aumentaram em média 50% o tempo dedicado a jogos eletrônicos. Os que não estudavam nem trabalhavam (15% do total em 2016, contra 8% em 2000) gastavam 520 horas anuais em atividades computacionais recreativas, com os jogos eletrônicos ocupando 60% deste tempo. Isso era mais que o tempo voltado a trabalhos domésticos ou à interação com amigos[1]. Adam Alter cita vários estudos segundo os quais o hábito contemporâneo de interagir socialmente por meio das teclas do smartphone (no Whatsapp ou no Facebook) é um obstáculo ao surgimento da empatia entre as pessoas.
Um dos capítulos mais interessantes do livro de Alter é o que mostra que drogas químicas e vícios comportamentais ativam os mesmos centros de recompensa em nosso cérebro. Vícios químicos e comportamentais fazem com que nossa produção de dopamina passe a ocorrer só na presença dos estímulos vindos daquilo em que nos viciamos. E a satisfação depende, claro, de doses cada vez maiores.
Não é razoável encarar estes dados simplesmente como “externalidades negativas” ou como a contrapartida inevitável da inovação tecnológica contemporânea. Boa parte do que se convencionou chamar de 4ª Revolução Industrial apoia-se nas informações que cada um de nós produz e que alimentam parte importante da computação em nuvem, da inteligência artificial e da aprendizagem das máquinas. O vício, que tem destruído nossa capacidade comunicativa, nossa intuição na relação com os outros, não pode ser o preço dos avanços tecnológicos dos quais depende nosso bem-estar. É claro que cada indivíduo tem que procurar o uso responsável destes dispositivos. Mas isso é insuficiente diante do empenho de milhares de engenheiros e programadores que nos oferecem permanentemente dispositivos voltados a ampliar o tempo em que estamos conectados. E o que precisamos neste momento é de uma discussão pública sobre limites, em última análise, os limites cuja ultrapassagem atropela nada menos que a dignidade humana.