Silvio Pons: Putin perdeu a noção da realidade, mas não o comparemos a Hitler

“Il Riformista” discute sobre isso com um dos mais respeitados estudiosos do “planeta” russo: Silvio Pons
Foto: Sara Minelli/Imagoeconomica
Foto: Sara Minelli/Imagoeconomica

Entrevista dada a Umberto De Giovannangeli, “Il Riformista”, 23 mar. 2022

O arsenal ideológico de Vladimir Putin, suas referências à história da Rússia, as citações da Bíblia. Compreender, não demonizar: uma escolha de campo (informativo). “Il Riformista” discute sobre isso com um dos mais respeitados estudiosos do “planeta” russo: Silvio Pons. O professor Pons ensina História contemporânea da Escola Normal Superior de Pisa. É presidente da Fundação Gramsci.

* A guerra na Ucrânia se combate no território, no céu, mas também nos discursos. E o “czar” do Kremlin fez muitos discursos “históricos” nestas semanas. Professor Pons, qual é o fio condutor desta narração “putiniana”?

A coisa que mais me impressiona é o salto de qualidade no uso da história como legitimação da política, o que, se se quiser, é também o aspecto mais inquietante.

* Por quê?

Porque é uma história mitologizada. Já vimos exemplos de história mitologizada – na guerra da ex-Iugoslávia, para não ir muito longe no tempo – e vimos aonde levou. Formam-se convicções que não são só propaganda instrumental para fins de uma operação bélica. São convicções profundamente enraizadas em quem as expressa e, no fim, ofuscam a consciência de quem as recebe, sobretudo na ausência de liberdade de expressão e de informação. Isto é o que me surpreende mais. A saber, esta ideia de que exista uma espécie de espaço espiritual da Rússia, como o chamou Putin. Trata-se de uma ideia imperial que se estende à Ucrânia e pretende um papel hegemônico da Rússia na Eurásia. É uma convicção que não se desenraíza facilmente. Nesta chave, pode haver uso da violência sem fronteiras nem limites. Corre-se o risco de perder uma dimensão do realismo político. Parece-me que foi isto o que aconteceu a Vladimir Putin. A esta consideração acrescentaria uma segunda, a meu ver, igualmente importante e que se refere aos seus discursos. No de 21 de fevereiro, com base neste discurso mitológico sobre a história, o presidente russo afirmou que a Ucrânia não existe como estado e como nação. Esta ideia provavelmente teve influência no fracasso da “blitzkrieg”.

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* Em outras palavras…

Quem inspirou esta operação bélica contava com o fato de que o Estado ucraniano derretesse como a neve ao sol ou então que houvesse uma intervenção militar do exército ucraniano para neutralizar Zelensky, permitindo assim aos russos vencer a guerra em poucos dias. Em vez disso viu-se diante de uma resistência patriótica. Nestes trinta anos os ucranianos construíram uma democracia frágil, mas certamente uma consciência patriótica forte. Mesmo tendo rapidamente a evidência de que, ao contrário da sua mitológica visão liquidacionista, a Ucrânia existe – ainda assim Putin continua a repetir o mesmo discurso. E isto é muito inquietante porque não o repete só porque deve seguir forçosamente adiante, tendo começado as coisas de um certo modo. Isto seguramente é verdade. Existe uma lógica pela qual, se você começa algo de modo celerado, deve seguir por este caminho celerado. Mas o que ainda mais me impressiona, e inquieta, é que Putin está profundamente convencido e que, portanto, a leitura desta resistência que faz e impõe aos russos é uma leitura em chave de bandos organizados pelo Ocidente, armas fornecidas pelo Ocidente e assim por diante. Não me parece que tenha mudado alguma coisa no discurso mitológico que articula a guerra de invasão. Neste momento, insisto em afirmar, estou de fato impressionado e preocupado com isto, porque está claro que, se tudo está definido por esta mitologia putiniana, é muito difícil compreender como é que seja possível sentar-se em torno de uma mesa de negociação. Ainda mais com Zelensky. Nenhuma das motivações indicadas por Moscou para invadir a Ucrânia, violando a soberania nacional e a legalidade internacional, mostra-se convincente e fundamentada. Até os países que apoiam a Rússia no seu desafio ao Ocidente, como a China, evitaram entrar muito em detalhes.

* Onde está o salto de qualidade imprimido por Putin?

Sua narração meta-histórica sobre as relações especiais no passado entre os dois países dirige-se – convém voltar a acentuar – a negar qualquer legitimidade à existência da Ucrânia como Estado-nação. Não por acaso Putin se lançou numa nova polêmica antileninista para negar o princípio da autodeterminação nacional, que, ao contrário, indica como causa da dissolução da União Soviética. A referência a um passado idealizado serve assim ao objetivo de delinear o perfil de uma cultura política bem distinta daquela do legado comunista, ou melhor, daqueles que poderiam ser seus elementos progressistas, com exceção do nexo com a Segunda Guerra Mundial. Isto é transparente nas acusações de neonazismo dirigidas ao nacionalismo ucraniano, que por certo toca um ponto profundo na população russa. Com a guerra de invasão, Putin pôs de lado a ideia de uma “federalização” da Ucrânia que confirmasse a máxima autonomia das repúblicas russófonas do leste, para visar a desestabilizar o Estado com uma intervenção armada em vasta escala. O chefe do Kremlin não deixou de recorrer aos argumentos habituais, inspirados na segurança nacional, na ameaça representada pela expansão da Otan para leste. Tal visão, reiterada muitas vezes, foi muitas vezes liquidada no Ocidente como meramente instrumental. Mas, antes ainda do advento de Putin ao poder, já existia na Rússia uma percepção negativa da expansão da Otan. O fato de o Ocidente (Estados Unidos e Europa) não ter apreendido este dado ou ter considerado que os países do ex-império soviético fossem “terreno de caça”, foi um erro, cultural e não só geomilitar, que terminou por favorecer as posições mais revanchistas em Moscou. O problema é que Putin levou esta síndrome de segurança além de toda e qualquer visão realista e parece ter perdido o sentido do realismo que o caracterizou no passado. O poder de Putin conheceu uma gradual, mas sensível, involução autoritária no último decênio. Uma involução que se colocou na conjuntura global pós-crise de 2008 – em síntese, o ocaso da globalização ocidental e a emergência de uma ordem multipolar. Mas ela também revela continuidades de longa duração…

* Do que se trata?

Antes de mais nada, a continuidade da grande potência como pilar do consenso no país, que Putin encarnou desde o início e que, muito mais do que a modernização econômica, tornou-se o terreno para resgatar a humilhação sofrida depois do colapso soviético, em termos de empobrecimento, rebaixamento, marginalização da Rússia. Esquecemos, em particular, que nos últimos quarenta anos as classes dirigentes russas desencadearam uma série de guerras quase ininterrupta, com a única exceção dos anos de Gorbachev. Afeganistão, 1979, duas guerras na Chechênia, 1994 e 1999, quando emerge a figura até então desconhecida de Putin, Geórgia, 2008, Ucrânia, 2014, e hoje. Em outras palavras, a época pós-Guerra Fria nunca foi pacífica para a Rússia e a militarização certamente enfraqueceu a sociedade civil. Entre as continuidades essenciais está a síndrome da segurança herdada do passado e levada ao extremo por Putin, que dela fez o eixo fundamental da sua resiliência interna.

* Nestes dias muitos se aventuraram em fazer paralelismos entre o pensamento de Putin e o de um personagem que deixou um sinal trágico, devastador, na Europa: Adolf Hitler. Há até mesmo quem definiu os discursos de Putin destas semanas como o “Mein Kampf” do czar do Kremlin. Não lhe parece um exagero?

Absolutamente, sim. Esta me parece uma visão superficial e atabalhoada. Não que faltem analogias…

* Quais são, professor Pons?

Uma delas é a reivindicação de ajuda a ser dada às minorias linguísticas russas fora dos limites da Federação Russa. Nisso há uma analogia com o Hitler dos sudetos e do desmembramento da Tchecoslováquia em 1938. A outra analogia é a de uma narração vitimista da nação russa. A ideia de que a Rússia tenha sido gravemente humilhada e marginalizada na ordem mundial pós-Guerra contém em si algo de verdade. Mas na versão putiniana torna-se um “complô do Ocidente”, torna-se uma visão nebulosa, hostil, sem nenhuma possibilidade de argumentação divergente. Estas analogias existem, mas são analogias superficiais.

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* Em que bases históricas as define como tal?

Antes de mais nada, há uma consideração que deveríamos fazer em chave realista. Hitler queria conquistar o mundo, e a Alemanha da época tinha também os instrumentos, bélicos e econômicos, para pôr em ação os planos de conquista de amplo alcance. E apesar disso se viu na condição de perder a guerra, até porque tais bases não eram adequadas às aspirações de Hitler. A Rússia de hoje nem de longe tem estas possibilidades, a não ser do ponto de vista dos seus arsenais atômicos. Neste sentido poderíamos dizer que Putin não é Hitler porque não quer conquistar o mundo, mas quer fazer outra coisa.

* Qual coisa?

Quer construir um espaço pós-imperial russo que se defronta, de modo hostil, com a Otan e que tende a se aliar com a China. Neste sentido, Putin não é Hitler e corre o risco, antes, de se tornar um ator subordinado ao projeto chinês de uma outra ordem mundial. Contudo, isto não significa que Putin não seja criminoso e menos ainda que não seja perigoso. Não é preciso ser Hitler para ser perigoso. Por exemplo, não é preciso ser Hitler para fazer a limpeza étnica que está fazendo na Ucrânia. Nós na Ucrânia vemos, sobretudo, o aspecto mais trágico, o ataque armado aos civis que é um crime contra a humanidade. Mas o que está acontecendo é também uma limpeza étnica, deliberadamente provocada pela invasão russa. Porque o fluxo de migrantes que chegará rapidamente a 5 milhões é, de fato, uma limpeza étnica. Isto é o que está acontecendo.

Fonte: Esquerda Democrática

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