Nos últimos anos o País não soube interpretar, segundo seus interesses, o sentido das mudanças
Rubens Barbosa / O Estado de S. Paulo
O discurso do presidente Bolsonaro na ONU recoloca em pauta a função e as atribuições do Itamaraty. A competência e o conselho informado para responder aos desafios que o Brasil está enfrentando foram deixados de lado. O Ministério das Relações Exteriores (MRE) perdeu o lugar que sempre teve como principal auxiliar do presidente na formulação e execução da política externa e de efetivo coordenador dos temas de interesse do Brasil na área externa.
O mundo atravessa um momento de grandes transformações nas áreas política, econômica e social. A geopolítica e a geoeconomia, que foram se modificando na última década, vão passar por uma série de ajustes com a saída dos EUA do Afeganistão. Qual o lugar dos EUA no mundo? Como a China, a nova superpotência comercial, tecnológica e militar, evoluirá? Como se desenvolverá o novo polo dinâmico de crescimento econômico e de comércio exterior? Qual o impacto dos rápidos avanços tecnológicos (5G e Inteligência Artificial)? Como a preocupação global sobre meio ambiente e mudança de clima será traduzida em medidas comerciais restritivas? Como o acirramento da competição global entre China e EUA pela hegemonia política no século 21 afetará os países? Qual o efeito sobre a globalização do reordenamento produtivo, das cadeias de produção, protecionismo, autonomia soberana, revolução energética, crise no multilateralismo? Como a regionalização afetará a geopolítica e a geoeconomia global (fortalecimento das potências regionais e dos acordos regionais)? Qual o futuro papel da América do Sul – continuará na periferia? Quais os riscos criados pelas novas ameaças (terrorismo, ataques cibernéticos, guerra no espaço)?
O Brasil, nos últimos dois anos, não soube interpretar corretamente, segundo seus interesses, o sentido dessas mudanças. Qual será o lugar do Brasil neste mundo que emerge? Como
as grandes transformações econômica, comerciais, tecnológicas e geopolíticas e geoeconômicas poderão afetar o interesse nacional? Como o Brasil se posicionará no contexto hemisférico e regional? Como o Brasil deverá reagir com a ampliação da confrontação entre China e EUA? Como o Brasil poderá contribuir para o fortalecimento da governança global? Como ficarão as políticas em relação às negociações em fóruns multilaterais (o Brasil assume em 2023 lugar no Conselho de Segurança da ONU)? Como implementar os objetivos estratégicos e os interesses do Brasil nas áreas onde pretende ter influência, como América do Sul, Antártica e o Oceano Atlântico até a costa ocidental da África, como definido na Política Nacional de Defesa (quais as implicações militares e políticas do oferecimento de parceria global com a Otan)?
Nossos interesses imediatos do ponto de vista da projeção externa incluem, em especial, a mudança da percepção externa negativa sobre o País, a volta do protagonismo nas negociações sobre meio ambiente e mudança de clima, com uma nova política em relação à proteção da Amazônia, a definição de uma política proativa para a América do Sul, o aperfeiçoamento da inteligência e da promoção no comércio exterior, a reativação da participação do Brasil nos organismos multilaterais (políticos e econômicocomerciais) e posição equidistante no confronto Eua-china, definindo, em cada caso, o interesse nacional acima de considerações ideológicas ou geopolíticas).
O Itamaraty – instituição de Estado, dedicada ao serviço dos interesses permanentes do País – terá de adequar a política externa aos novos desafios internos e externos com dinamismo e inovação. Para operar neste novo cenário, o Itamaraty precisa mais uma vez se renovar, pois nos últimos dois anos deixou de gozar da unanimidade nacional, em razão de interferências indevidas em seu trabalho analítico e em seus processos decisórios. Internamente, terá de promover uma reforma estrutural para corrigir as distorções das mudanças ocorridas em 2019 e fortalecer com pessoal os departamentos e secretarias em Brasília e as embaixadas, onde se concentrarão muitos dos interesses comerciais brasileiros, como a Ásia, o Sudeste da Ásia, a América do Sul e os Brics. A nova gestão à frente do MRE – que busca restabelecer a normalidade e as prioridades nas atividades da Casa – formalizou na presidência da Asean o interesse do Brasil em tornar-se parceiro de diálogo setorial desta associação asiática, em razão do grande interesse comercial para o agronegócio nacional. A criação de mais postos no exterior deveria estar subordinada a essas prioridades.
Os desafios que o Brasil terá de enfrentar nos próximos anos forçarão uma mudança de atitude dos funcionários diplomáticos e do governo como um todo para atender às demandas dos novos tempos. A presença mais ativa e visível do Itamaraty será importante para a recuperação de seu papel de coordenação nas matérias relacionadas com a área externa. Será imperativo dialogar com a academia e a sociedade civil em geral, e, em especial, abandonar posturas defensivas e tendências partidárias e ideológicas que contribuíram para a perda de sua influência e para o isolamento do Brasil num mundo em crescente transformação.
A reconstrução do Itamaraty e da política externa deveria ser uma das prioridades para um novo governo em janeiro de 2023.
*Membro da Academia Paulista de Letras, é presidente do IRICE
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,os-novos-desafios-globais-e-o-itamaraty,70003852533