RPD || Ronaldo Vainfas: Judeus portugueses entre Amsterdã e Nova York

Foto: Divulgação/Companhia das Letras
Foto: Divulgação/Companhia das Letras


Livro de Lira Neto conta o êxodo dos judeus expulsos da Península Ibérica pela Santa Inquisição em busca de sua terra prometida até a controversa chegada deles às costas da terra que seria, um dia, Nova York

Lira Neto é escritor irreprochável, várias vezes premiado com o Jabuti, quase sempre dedicado a temas históricos. Biografias, como a trilogia sobre Vargas, exemplifica seus livros sobre nossa história com sucesso editorial indiscutível. Ele tem formação eclética: técnico em topografia, cursou filosofia, é jornalista e, sobretudo, escritor. 

Não é, no entanto, historiador de formação, mas não sou daqueles que só admite contribuições legítimas no campo da história se os autores possuem formação acadêmica na área. Essa é uma exigência comum no meio historiográfico atual, infelizmente, cada vez mais fechado em relação aos que não discutem teoria, preferindo contar histórias. Não no sentido ficcional, senão baseados em pesquisa exaustiva de fontes ou, ao menos, de bibliografia especializada. Basta citar Evaldo Cabral de Mello e Alberto da Costa e Silva, diplomatas de ofício e, esses, sim, com razão, reconhecidos no mundo historiográfico por seus estudos de excelência.  

E alguém diria que Sérgio Buarque de Holanda não é historiador de ofício porque é bacharel em Direito? Ora, não havia cursos universitários de História no início do século XX. Sérgio Buarque, depois catedrático de Civilização Brasileira na USP, em fins dos anos 1950, é considerado um dos principais historiadores brasileiros. Em resumo, a meu ver, a história sempre foi um campo de conhecimento aberto. Se o autor possui erudição bibliográfica, conhecimento de fontes e escrita palatável, agrega plenas condições para ser reconhecido como historiador. 

Lira Neto pode ser inserido nessa categoria de historiadores por vocação, independentemente de sua formação precípua. Em Arrancados da Terra, ele reconstrói a saga dos judeus portugueses fugidos da Inquisição e abrigados em Amsterdã, no início do século XVII, parte dos quais migrou para o Recife holandês e, mais tarde, com a expulsão dos flamengos, se deslocou para Nova Amsterdã, futura Nova York. Eis um processo complexo que o autor reconstrói com vivacidade e narrativa cativantes. O leitor do livro haverá de conhecer de perto o papel essencial dos judeus portugueses – sefarditas – na expansão comercial, na época moderna. Suas redes de comércio, suas sinagogas públicas ou clandestinas, seus personagens mais destacados, em especial no mundo atlântico. 

No entanto, falando agora como pesquisador da área, não encontrei, no livro, reflexão sobre quem eram os tais judeus portugueses, do ponto de vista histórico-antropológico, salvo breve menção ao conceito de “judeus novos” de Kaplan. Como se houvesse um essencialismo judaico. Uma identidade judaica multissecular. Na verdade, eles eram descendentes de cristãos-novos convertidos ao catolicismo por decreto de D. Manuel, no remoto ano de 1496. Separados, havia mais de um século, do judaísmo de seus ancestrais. Desconheciam o judaísmo, a rigor, com exceção de alguns ritos domésticos, a exemplo da guarda do sábado e tabus alimentares. Como afirmou certo especialista na história dos sefarditas da época, os judeus portugueses de Amsterdã jamais haviam conhecido uma comunidade judaica, “exceto aquela que eles haviam criado” – ou estavam criando. Viviam dilemas identitários dramáticos. Uma comunidade que desabou como castelo de cartas entre 1644, com a saída de Mauricio de Nassau, que os protegia no Recife, e a vitória luso-brasileira em 1654. 

Foram para Nova Amsterdã? Apenas 23 pessoas alcançaram o lugar, após vários percalços no Caribe. Mas há um mito de que os judeus portugueses fundaram a cidade que, no futuro, seria Nova York. Na legenda, que funciona como subtítulo do livro, diz-se que eles “fizeram Nova York”. Um exagero apelativo. O primeiro judeu a pôr os pés em Nova Amsterdã foi, até onde sei, Jacob Barsimson ou Jacob Bar Simson. Era o nome judaico de Benjamim Bueno de Mesquita mencionado pelo autor? Ou um judeu ashkenazi que mal falava português, como outros que viveram no Recife holandês? 

Esta saga é, não raro, um mito, entre outros construídos sobre período holandês no Brasil. Como o mito de que o Brasil seria um país melhor se fosse colonizado por eles, ideia desconstruída por Sérgio Buarque, desde Raízes (1936). Lira Neto endossou tais mitos? No conjunto não, pois é bem fundamentado, sobretudo na bibliografia especializada, tradicional e atual. Mas sua narrativa tende a celebrar a atuação dos judeus portugueses, sem a devida ênfase no fato de que muitos deles eram grandes traficantes de escravos da Guiné ou de Angola para o Recife, nos tempos de Nassau, associados à Companhia das Índias Ocidentais. 


Saiba mais sobre o autor

* Ronaldo Vainfas é doutor em História pela USP (1988), Professor Titular de História Moderna aposentado da UFF (desde 1993), Professor da Pós-Graduação da UERJ-FFP (desde 2016), Pesquisador I-A do CNPq (desde 1990), autor de vários livros e artigos sobre História Colonial, com destaque para Jerusalém Colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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