RPD || Reportagem Especial: Escândalos das vacinas deixam país mais fragilizado na pandemia

Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Investigação aponta que governo brasileiro abriu espaço para favorecer pessoas que não tinham vínculos com fabricantes dos imunizantes

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

Denúncias de corrupção com pagamento de propina em paraíso fiscal e mais de 100 tentativas de negociação de vacinas da Pfizer ignoradas pelo governo brasileiro, escancaram um país fragilizado por uma série de escândalos em torno da imunização contra a Covid-19. A pressão para que o Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) seja julgado por tribunais internacionais aumenta a crise política.

Na iminência de uma terceira onda da pandemia do coronavírus, o Brasil ainda vive os duros reflexos da falta de política pública nacional de saúde voltada ao enfrentamento da Covid-19 e das iniciativas tardias para o início da vacinação. Com pouco mais de 20% de toda a sua população imunizada, o país caminha para superar a marca de 600 mil mortos pela doença.

A investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid revela ao país dados de um cenário de horror. Ao todo, até o início deste mês, no Brasil, o número de vítimas da pandemia ainda era ao menos 12 vezes maior que o de vacinados, o que exemplifica as consequências de um país tomado por denúncias relacionadas às imunizações e governado por um presidente declaradamente negacionista.

O avanço das investigações da CPI segue rumo à confirmação da tese já levantada por alguns senadores: o governo federal abriu espaço para pessoas que não tinham vínculos com fabricantes das vacinas, enquanto dificultou o acesso ao Instituto Butantan, em São Paulo, e à multinacional Pfizer, sediada em Nova Iorque, nos Estados Unidos.

Senadores da oposição e da base governista questionam o porquê e como foi aberto o canal para que figuras como Luiz Paulo Dominguetti e Cristiano Carvalho, que se apresentaram como representantes da Davati Medical Supply, pudessem ter espaço entre os servidores do Ministério da Saúde.


À Folha de S. Paulo, Dominguetti disse ter recebido pedido de propina de Roberto Ferreira Dias, “no valor de US$1 por dose da vacina. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

“Não houve nenhuma facilidade para eles [para a Pfizer]. Houve uma facilidade para o Dominguetti, que o senhor Blanco nunca tinha visto. Houve uma facilidade de ir para um restaurante à noite e, no dia seguinte, foi aberto o Ministério da Saúde para ele”, disse o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM).

 Dominguetti denunciou à Folha de S. Paulo ter recebido pedido de propina do então diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, em um jantar no Vasto Restaurante, no Brasília Shopping, na capital federal, no dia 25 de fevereiro.

A proposta, segundo ele, era de US$1 por dose da vacina AstraZeneca, em troca da assinatura de um contrato de venda de 400 milhões de doses do imunizante, o que geraria um montante ilícito de R$2 bilhões. Diante do escândalo, Dias foi exonerado.

O tenente-coronel Marcelo Blanco, ex-assessor de Roberto Ferreira Dias, que era diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, foi quem apresentou Dominguetti ao ex-diretor do Departamento de Logística da pasta.

“Nós estamos estarrecidos com a facilidade com que pessoas desqualificadas adentraram o ministério. Desqualificadas em todos os sentidos. E foram levadas por pessoas do ministério, não caíram do céu”, ressaltou Aziz, durante sessão da CPI.

Segundo Blanco, as conversas com Dominguetti tiveram início no dia 9 de fevereiro deste ano, com a oferta de 400 milhões de doses da vacina do laboratório britânico AstraZeneca.

Dominguetti, na ocasião, teria informado que tinha aproximação com o Ministério da Saúde, por meio do presidente da SENAH – Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários -, reverendo Amilton Gomes de Paula, mas que necessitaria da ajuda de Blanco para fechar as negociações.

De acordo com a investigação da CPI, Marcelo Blanco teria levado Dominguetti até Roberto Dias, para o encontro no restaurante do shopping, em Brasília, onde Dias teria feito um pedido de propina de US$1 por dose de vacina ao Dominguetti.

“Não foi um encontro casual, eu sabia que o Roberto Dias estava no Vasto. Posso ter sido inconveniente? Posso ter sido. Mas não vi mal nenhum”, afirmou Blanco à CPI. No entanto, ele disse que não presenciou nenhum pedido de propina.


Tenente-coronel Marcelo Blanco negou ter aberto o acesso de Dominguetti ao Dias. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Agenda oficial
“Ele, Dominguetti, pediu-me a possibilidade de ter uma agenda oficial. Quando tomei conhecimento que Roberto estaria no Vasto, sugeri a ele: ‘Eu te apresento, faça você o pedido da sua agenda’, e assim foi feito.” No dia seguinte, Dominguetti teria conseguido uma reunião oficial no Ministério da Saúde, com Roberto Dias.

 Dias, contudo, já não tinha, em 25 de fevereiro, qualquer autoridade sobre a aquisição de vacinas, o que já estava sob a responsabilidade de Elcio Franco, desde 29 de janeiro, data em que foi publicado o ofício com a mudança.

Blanco nega ter aberto acesso de Dominguetti ao diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde. “Nunca ajudei na elaboração da documentação, simplesmente orientei [Dominguetti] a utilizar os meios estatais. Da mesma forma, nunca acompanhei representante de qualquer empresa”, afirmou o tenente-coronel na CPI.

Em 30 dias, o coronel e Dominguetti trocaram 108 ligações, sendo 64 de iniciativa do coronel Blanco, como informou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Segundo Blanco, todas as conversas se restringiram a tratar do mercado privado.

Na CPI, o reverendo Amilton Gomes de Paula afirmou ter conversado com Herman Cardenas, proprietário da Davati Medical Supply, sobre a proposta de 400 milhões de doses. Segundo ele, o empresário garantiu que tinha as doses. Em entrevista ao Fantástico, no entanto, Cárdenas, disse apenas que atuava como um facilitador e que não tinha as vacinas.
Em outra contradição, Dominghetti afirmou, em seu depoimento à CPI, que não tem nenhuma relação contratual com a Davati. “Havia um acordo de cavalheiros, até porque eu sou funcionário público e não posso assinar contrato”, afirmou o policial militar.

 O laboratório britânico AstraZeneca também informou que todas as negociações são feitas diretamente “por meio de acordos firmados com governos e organizações multilaterais ao redor do mundo, incluindo a da Covax Facility, não sendo possível disponibilizar vacinas para o mercado privado ou para governos municipais e estaduais no Brasil”.

Além disso, negou que tenha qualquer relação contratual com a empresa Davati Medical Supply, sediada no Texas. O único contrato da AstraZeneca firmado com o Brasil ocorreu por meio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), nos dias 8 e 9 de setembro de 2020.

 Aos senadores, ele identificou José Ricardo Santana, que também trabalhava no Departamento de Logística do Ministério da Saúde, como a quarta pessoa que estava no encontro do Vasto Restaurante, no Brasília Shopping, no dia 25 de fevereiro. Depois que deixou a pasta, Santana também se tornou empresário.


Amilton Gomes de Paula chora durante seu depoimento à CPI: Reverendo confirmou vínculo com Roberto Cohen, conforme revelou a Sportlight. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

 
Nome de Bolsonaro aparece como parceiro do reverendo Amilton

O Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) aparece como diretor de uma entidade aberta equivalente à junta comercial da Flórida, junto com Roberto Cohen, citado na CPI como parceiro do reverendo Amilton Gomes de Paula, que confirmou o vínculo, conforme revelou a Sportlight.

A Missão Humanitária do Estado Maior das Forças Armadas foi registrada em Miami, em 30 de outubro de 2020, na pandemia. Como diretores, aparecem, no ato de abertura, Jair Bolsonaro (presidente da entidade), Hamilton Mourão (vice) e Roberto Cohen (secretário). Trata-se de “uma organização diplomática, humanitária, com missão de paz, militar, organização intergovernamental e nonprofit”. As entidades “nonprofit” são, em tese, sem fins lucrativos.

No último dia 15 de março, segundo a reportagem, uma atualização foi realizada na junta da Flórida. Permaneceram os nomes de Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão e Roberto Cohen, que passou a constar como “tenente coronel capelão”.

Além disso, foram incluídos os nomes de Fernando Azevedo e Silva, então ainda Ministro da Defesa, e de Raul Botelho, que consta como Tenente-Brigadeiro do Ar e que, naquela ocasião, ocupava o cargo de Chefe do Estado-Maior do Conjunto das Forças Armadas do Ministério da Defesa, de onde foi exonerado no dia 20 de maio, indo para a reserva no dia 2 de junho último.

Durante a audiência da CPI, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) afirmou que a “Missão Humanitária do Estado Maior das Forças Armadas do Brasil” aparece citada nos documentos do reverendo Amilton.


Saiba mais sobre o autor

*Cleomar Almeida é graduado em Jornalismo. Produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.

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