RPD || 7 Prisioneiros – Quem é prisioneiro de quem?

A Sétima Arte tem sido imprescindível na missão de falar, repetir e gritar que a escravidão de seres humanos, em qualquer forma, tem de acabar
Foto: Reprodução / Netflix
Foto: Reprodução / Netflix

Lilia Lustosa

Desde 1986, a cada 2 de dezembro, o mundo celebra o “Dia Internacional para a Abolição da Escravatura”, data criada pela ONU com o intuito de por fim à escravidão de seres humanos. Parece inacreditável, quase uma piada de mal gosto, que até hoje precisemos de uma data para lembrar-nos que escravidão é uma violação dos direitos humanos. No Brasil, um crime previsto no Artigo 149 do Código Penal. 

O fato é que, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), ainda existem cerca de 40 milhões de pessoas em situação análoga à escravidão em todo o mundo. É a tal escravidão contemporânea, presente em várias partes do planeta, aparecendo cruelmente em nosso território, tanto em fazendas do interior, como em metrópoles tais como Rio e São Paulo. Ou seja, ainda é imprescindível falar, repetir e gritar para empregadores e empregados de plantão que a escravidão tem de acabar. E nessa missão hercúlea, a sétima arte pode desempenhar um grande papel! 

O tema, na verdade, já foi tratado inúmeras vezes pela cinematografia de distintos países. Em 2013, por exemplo, a Argentina produziu o duro O Patrão: Radiografia de um Crime, de Sebastián Schindel, que conta a história real de um homem vindo do norte do país para a capital Buenos Aires, em busca de melhores condições de vida, mas que acaba se deparando com uma realidade nada bonita, em que se torna escravo do dono do açougue onde trabalha. O funcionário, no início, passivo e benevolente, vai, pouco a pouco, se descontrolando, até perder a cabeça e assassinar seu algoz em plena luz do dia (calma, não é spoiler, é só o começo da trama). O filme retratou tão bem o tema que, na ocasião, a OIT-Argentina pediu licença para usá-lo como ferramenta de campanha contra a escravidão moderna no país. E o ator Joaquín Furiel, que encarna o protagonista, acabou se tornando embaixador dessa instituição onusiana. 

Já bem recentemente é uma obra brasileira que vem chamando a atenção nesse quesito. Trata-se de 7 Prisioneiros, lançado em setembro no catálogo da Netflix e laureado como o Melhor Filme em Língua Estrangeira no Festival de Veneza deste ano. Dirigido pelo brasileiro-americano Alexandre Moratto, o filme – que não é baseado em nenhuma história real específica, mas em tantas outras bem reais, infelizmente – segue a jornada do jovem Mateus (Christian Malheiros), que, com seus apenas 18 anos, sai do interior de São Paulo rumo à capital do Estado, com a promessa de um emprego que garantirá vida digna para ele e sua família. Junto com Mateus, outros jovens vão tentar a mesma sorte. Partem temerosos, sem muita informação sobre o futuro trabalho, mas com o coração cheio de esperança. Até aí, nada de novo! 

Lá chegando, porém, descobrem que o “trampo” é em um ferro-velho, desmontando carros com o objetivo de revender as peças. Tudo ilegal, parte de uma rede ainda bem maior de ilegalidades, que envolve outros empresários, policiais e políticos da região. É também nesse ferro-velho que vão morar, em um quartinho com beliches, sujo e mal iluminado com acesso limitado a banheiros. A comida? Bem pouca e restrita. Tudo devidamente descontado do “holerite” dos trabalhadores, que se descobrem assim eternos devedores do patrão. Aos poucos, o que era sonho vira pesadelo, e os jovens se descobrem prisioneiros de Luca, um excelente Rodrigo Santoro, diga-se de passagem, com cabelos longos e grisalhos, com um ar que enoja por seu cinismo, frieza e crueldade. 

Mas não se engane quanto ao desfecho dessa história, já que os personagens, aparentemente simples do início, vão se tornando mais complexos a cada cena, trazendo novas camadas de reflexão para o filme, deixando-nos surpresos, revoltados e decepcionados com a natureza humana. Ao mesmo tempo, impotentes, tristes em angustiados ao vermos ali tão bem exposta a intrincada rede de injustiças que leva tantas pessoas a “perderem o coração” ao longo da caminhada… Tudo isso, sem se deixar cair na armadilha do maniqueísmo simplista, em que só reinam mocinhos e bandidos. 

Contando com Fernando Meirelles e Ramin Bahrani (diretor de O Tigre Branco, 2021) na produção, 7 Prisioneiros choca, agride e revolta, ao mostrar um sistema perverso de exploração cujas raízes profundas jogam na nossa cara as dores e as feridas geradas por uma desigualdade social abissal. Um filme-espelho que nos leva a refletir sobre o papel que cada um de nós desempenha nessa cadeia predatória que urge ser desmantelada para que datas como essa não sejam mais necessárias no calendário nem na cinematografia de ninguém. 


Saiba mais sobre a autora
* Lilia Lustosa
é formada em Publicidade, especialista em Marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, Suíça.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2021 (38ª Edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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