RPD || A fome não espera

Ausência de políticas pública eficientes aliada à crise econômica e à pandemia do coronavírus leva o país de volta ao mapa da fome
Foto: Agência Brasil
Foto: Agência Brasil

Kelly Quirino

Chegamos ao final de 2021 com trágicas marcas. Além das mais de 600 mil vítimas que faleceram em decorrência da covid-19, o Brasil retornou ao Mapa da Fome com aproximadamente 19 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave: mais de 24 horas sem comer.  

Em 2014, o Brasil havia saído do mapa da fome (quando 5% da população vivem em situação de fome grave). O retorno ao mapa não se deve apenas à crise econômica e à pandemia do coronavírus. Tanto a saída como o retorno se devem a políticas públicas.  

Em 2003, lançou-se o Programa Fome Zero para erradicar a fome no país.  A iniciativa era coordenada pelo antigo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário e consistia em uma ajuda financeira às famílias em situação de vulnerabilidade social (antigo Bolsa Família), construção de cisternas no semiárido para promover segurança hídrica, construção de restaurantes populares, distribuição de vitaminas e suplementos e principalmente a criação de um Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.  

Uma das contribuições foi a possibilidade de a sociedade civil participar da Política de Segurança alimentar por meio do Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar – que articulava as políticas de combate à fome nas três instâncias de governo – municipal, estadual e federal – além de ajudar na elaboração dos planos de combate à fome e à miséria. Cabe destacar a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Educação Escolar (PNAE).  

Cartazes exibem aumento dos preços dos alimentos básicos, em protesto contra Bolsonaro. Foto: Roberto Parisotti/Fotos Públicas

O primeiro permitia que o governo adquirisse alimentos produzidos por agricultores familiares, formar um estoque e distribuir para entidades socioassistenciais como albergues, casas de repousos e restaurantes populares. O segundo também estimulava a produção dos agricultores familiares a destinarem alimentos saudáveis para as escolas públicas. Além de fomentar o cooperativismo e o associativismo por parte dos agricultores familiares, estes dois programas contribuíram muito para a saída do mapa da fome. Para termos a dimensão do impacto destas ações, em 2003, 44 milhões de pessoas no Brasil sofriam com a fome ou insegurança alimentar. Após 11 anos de programa, 3, 4 milhões de pessoas no Brasil não consumiam 2200 calorias diariamente como recomenda a Organização Mundial da Saúde.  

Estas políticas começaram a ser desmontadas em 2016, quando começaram os repasses para os programas como o PAA, revisões no número de participantes do Bolsa Família e menos recursos para o Programa de Cisterna. Aliada à crise econômica, a subida da inflação, o aumento do desemprego são fatores que também explicam o aumento de pessoas em situação de insegurança alimentar. 

A pandemia de covid-19 só agravou processo iniciado havia menos cinco anos. As 19 milhões de pessoas que passam fome no Brasil, atualmente, não estão nesta situação apenas por causa da crise sanitária. Questões políticas e econômicas influenciaram diretamente neste cenário.  

E não são apenas números. Estas pessoas que passam fome têm cor e gênero: são, em sua maioria, pessoas negras e mulheres. As mulheres são mães sozinhas, sem companheiro ou o pai dos filhos para ajudar na subsistência da família.  

Esta vulnerabilidade das mulheres negras é um efeito do racismo que estrutura a sociedade brasileira, que em um momento de crise, são as primeiras a sentirem as consequências.  

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Condomínio invadido do Minha Casa, Minha Vida, no Rio
Pobreza em Cruz Machado
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photograph taken in the Kibera slums in Nairobi during the stay of the Pope in Kenya. more than 500,000 people live here without essential services.
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Ângela Davis traz uma reflexão sobre este fenômeno. A liberdade faz parte do ideal do Ocidente, pós Revolução Francesa, e foi uma das lutas históricas das pessoas negras que foram escravizadas. Só que no capitalismo de nossos dis, do que adianta a liberdade se há pessoas  que não sabem se terão o que comer? Segundo Davis: “Se você é livre em um sentido politico, mas não tem comida, que liberdade é essa? A liberdade de morrer de fome?” 

O questionamento de Davis, que é contemporâneo, dialoga com a obra de outra mulher negra: Carolina Maria de Jesus. Em 1955, na cidade de São Paulo, ela diariamente se preocupava para saber se teria comida para oferecer a seus filhos. Em seu clássico livro, Quarto de Despejo, um diário da vida que levava em uma favela, ela diz: “Eu queria ficar em casa, mas eu não tinha nada para comer. Será que só eu que levo esta vida? O que posso esperar do futuro?” 

Carolina já apresentava a fome e indagava sobre qual futuro ela poderia ter. Que futuro têm 19 milhões de pessoas que passam fome em 2021? Que país é este, que após 66 anos, ainda não superou a fome? Aliás, pensávamos que tínhamos superado, quando o país saiu do mapa da fome, mas com este retorno quais são as propostas que podemos implementar como políticas públicas para erradicarmos a fome de vez em nosso país.  

E a fome não é um problema só dos governantes. É um problema de toda a sociedade. E não se resolve com doações de cestas básicas. De um lado, a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional deve ser o carro chefe de um governo que respeita os ideais republicamos e os Direitos Humanos. Só que cabe à Sociedade não naturalizar a fome, que é fruto de nossas desigualdades históricas e também de um racismo estrutural na sociedade brasileira. Não podemos esperar as eleições de 2022 para começarmos ações de combate a este problema. Isto é para já. A fome não espera! E se quisermos projetar um futuro, temos de ter um projeto de país que nos tire do mapa da fome definitivamente. 


Saiba mais sobre a autora
* Kelly Quirino
é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasilia (UnB), Mestre em Comunicação Midiática e Jornalista Diplomada pela Universidade Estadual Paulista. Pesquisa jornalismo, relações raciais e diversidade.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2021 (38ª Edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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