Pedro Doria: Hora de voltar às garagens

A atuação das gigantes do Vale é global e engole todas as democracias.
Foto: Google
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A atuação das gigantes do Vale é global e engole todas as democracias

O primeiro processo de antitruste do governo americano contra o Vale do Silício foi aberto. É esperado há uns três anos. Nasceu. A empresa escolhida foi o Google — mas não todo o Google. Não entrou o sistema operacional Android. Não entrou o YouTube. Não entraram os mapas. Tampouco a ampla publicidade digital. Apenas busca. E não toda busca. Só busca de texto e suas partes — a busca propriamente dita, a propaganda que a acompanha e os serviços que vêm junto. Buscas de imagem ou vídeo ficaram de fora.

Foi conservador o Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

Ainda assim não é pouco — só começou, há muito preparado, mais virá. O último processo contra um monopólio deste vulto ocorreu há vinte anos. Foi aberto em maio de 1998 e encerrado, com um acordo entre companhia e governo, em novembro de 2001. Quando começou, a internet comercial havia acabado de nascer e a Microsoft usara todo seu poder sobre o Windows para coibir os espaços do browser Netscape. Queria dominar a web e fez uso das armas que tinha para eliminar o concorrente. Ninguém tinha aquele tipo de força. Aí a batalha legal sugou tanto a energia dos executivos da empresa que, ao final daqueles três anos e meio o bonde havia passado, uma explosão criativa ocorrera no Vale e novidades como o Google surgiram. A Microsoft não foi dividida em duas. Seu poder de dominar a internet, porém, desapareceu. Ao fim, era outra empresa.

Foi assim nos anos 1980, quando a batalha contra o monopólio da AT&T nas telecomunicações levou realmente à divisão da empresa. Da fragmentação daquele mercado nasceram possibilidades várias — entre elas, a internet comercial. Ainda antes, nos anos 1970, foi com a IBM e seu monopólio sobre a computação. Como no caso da Microsoft, a atenção dos executivos foi drenada no combate legal ao governo. E enquanto estavam distraídos brotaram empresas como Apple e, ora, a própria Microsoft com a indústria dos computadores pessoais.

A história recente da tecnologia diz que estes monopólios tendem a se formar, que se tornam anticompetitivos, e que faz bem não só ao consumidor, mas à própria diversidade do mercado, a boa aplicação da lei antitruste. Monopólios sufocam novas ideias. E, neste momento, as conversas do mundo estão concentradas. Nos sistemas que operam nossos celulares, por duas companhias. Nas redes, quase que por uma só. No comércio, também por uma. E nas buscas também.

A atuação destas gigantes do Vale é global, engole todas as democracias. Ameaça as democracias. O Google não quer ameaçar. O Facebook não quer ameaçar. Nenhuma delas o deseja. Seus melhores cérebros estão concentrados no problema. Mas não conseguem resolvê-lo. Porque o problema está no modelo de negócios que depende de sugar a total atenção, pela maior quantidade possível de tempo, e explorar os dados produzidos por cada um de nós para vender publicidade.

Nunca foi tão urgente a aplicação deste conceito tão essencialmente liberal, tão essencialmente pró-mercado, tão fundamentalmente democrático que é o antitruste. E embora estas empresas atuem globalmente, só o governo americano pode agir. Porque num mundo que em verdade já se globalizou, o limite de nossas leis ainda é nacional e aquelas são empresas americanas. O populismo nacionalista e extremista, que manipula justamente as fraquezas criadas no rastro das criações maravilhosas destes gênios do Vale, gostaria que fosse diferente.

Mas não é. Saudades de Steve Jobs. Saudades do Vale do Silício criativo. Ficou pesado, burocratizado. Este sistema de liberdade é capaz de fazer frente ao autoritarismo chinês em criatividade. Precisa só permitir às garagens que voltem a brotar férteis.

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