Rodrigo Aguiar, Jornal A Tarde
Que cenários vê para as próximas semanas no país, após os protestos de grupos contra o governo no último final de semana?
Acho complicado prever as próximas horas, quanto mais semanas. Quem disser que não está com a vista turva quer iludir ou se iludir. Da minha parte, o que posso ver é um perigo político imenso. Gente com boa fé ser arrastada a um confronto que, caso se consume nesse momento, não aponta para um desfecho democrático. E diante disso o que posso dizer é que é preciso persistir na busca de unidade de todos os democratas, no espírito do manifesto do movimento “Estamos juntos”, que todo cidadão e toda cidadã precisa assinar e divulgar já! É um respaldo social imprescindível a que lideranças políticas e institucionais possam agir e cumprir seu papel, com ainda mais firmeza e eficácia.
Essa unidade acima de posições políticas tem dois objetivos. Primeiro não deixar que desça ladeira abaixo o que se conseguiu reunir de esforços para combater a Covid. Nada, absolutamente nada, é mais urgente nesse momento. Essa luta é sanitária e política e precisa ser sustentada em três frentes: a do máximo isolamento social possível; a do apoio ao trabalho que vem sendo feito no Congresso para decidir medidas e políticas emergenciais a pessoas vulneráveis, empresas empregadoras e os governos estaduais e municipais para que continuem a enfrentar essa pandemia; e a de denunciar e entregar à Justiça a inaceitável sabotagem do governo federal à execução dessas medidas e políticas.
O segundo objetivo é defender, sem ressalvas ou meias palavras, as nossas instituições democráticas reais (Congresso, STF e imprensa) e quem está à frente delas, de ataques que vêm sofrendo de inimigos da democracia, que invocam seu nome em vão. Reagir com firmeza sabendo reconhecer as armadilhas postas por quem quer nos fazer crer que o problema se resolverá bem na queda de braço.
O possível acirramento entre os grupos contra e a favor do presidente, com possíveis confrontos nas ruas, seria um ambiente mais ou menos favorável a Bolsonaro?
Sem dúvida alguma favorecerão o presidente e a onda fascistóide que ele patrocina. A própria quebra do isolamento social por parte de quem deseja combatê-lo já é um equívoco, do ponto de vista social, pelo agravamento do problema sanitário para o qual as manifestações de rua, nessa hora, contribuem. E é também um tiro no pé, do ponto de vista político, porque a intenção do gesto é outra, mas, na prática, se iguala, nos resultados sanitários, às imprudências dos bolsonaristas. Isso nos tira força e autoridade moral para condenar e combater esses sabotadores da luta contra a Covid.
Mas além de efeitos negativos ao desafio sanitário – que, a meu ver, repito, é a prioridade social, o acirramento ajudaria o presidente também pelo clima de violência política propício ao caos que ele tenta fomentar. Estou convencido de que, na conjuntura em que estamos, a violência, parta de onde partir, é a inimiga mais letal dos democratas. Não se pode flertar com ela. E é exatamente isso que se faz quando se admite, em nome da luta pela democracia, mobilizar torcidas organizadas para um enfrentamento de rua com o fascismo. A luta antifascista só tem chance de êxito se for uma luta cívica, fundada não só na ideia de liberdade, mas também na da paz. O sentido dessa luta é a união do país e não consagração da luta de classes. Além disso, é muito ruim politizar o futebol, assim como a religião e as relações de trabalho ou de família. Pois o fascismo se alimenta exatamente da politização de tudo.
Muito se fala sobre Bolsonaro ter ou não apoio das Forças Armadas (ou dentro das forças de segurança) para um eventual golpe. Qual a sua leitura sobre isso?
Leio que Bolsonaro, seus ministros militares e seus apoiadores, não só nas redes sociais, mas também em setores políticos e empresariais restritos, tentam fomentar violência política e caos social para arrastar as Forças Armadas a, em nome da ordem, pressionarem o Congresso e o Judiciário a lhe concederem poderes excepcionais, através de um estado de sitio. Esse instituto constitucional, nas mãos de Bolsonaro, seria o meio para, a médio prazo, acabar com a democracia e instituir uma ditadura sua, ainda que com algumas aparências de democracia. Ele precisaria fazer isso até 2022, pois sabe que mantidas as atuais regras democráticas, não vencerá eleições em dois turnos no meio de destroços de uma pandemia que ele se recusou a combater, seguida de uma forte recessão econômica. Mesmo que chegasse ao segundo turno, aí o País se uniria contra ele. Tenta, então, virar a mesa.
Esse parece ser o desejo presidencial, cenário radical que usa a todo momento como ameaça. Mas não é fatal que esse desejo se realize, depende também da firmeza e da inteligência dos democratas. Concordo, porém, que o quadro preocupa muito porque, mesmo que o desejo do presidente não se realize, sua ação subversiva pode inviabilizar também a sustentação da democracia plena que temos. Pode se impor um “meio termo” amargo, que ainda pode ser evitado, se não fizermos bobagem.
O que pode estar se apresentando agora, nos bastidores dessa crise, é uma hipótese de quase guardiania militar, com Mourão, como preço para nos livrar de Bolsonaro. Continuidade parcial do que aí está, até 2022, o que implica em acomodações. Qual o risco? A depender do grau da crise econômica e social no contexto pós-pandemia, essa quase guardiania virar, adiante, uma guardiania de verdade, no lugar da democracia. Podemos estar entre esse inseticida tóxico, ou manter o inseto letal no governo. Vale dar à democracia uma dose de cloroquina para tentar livrá-la do vírus Bolsonaro? O STF vem resistindo a isso, crendo na possibilidade de que seja garantida sua prerrogativa de Poder que dá a última palavra. Sem dúvida, essa resistência merece apoio. Esse é o caminho. Mas ela pode dar com os burros n’agua se, de algum confronto de rua, surgir um cadáver, seja qual for. Essa será a gota d’agua que falta para deixar aos políticos e à sociedade, como último recurso, escolher entre o inseto e o inseticida. Toda pessoa que ama, sinceramente, a democracia, dever pensar duas vezes antes de, neste fim de semana ou em dias próximos, expor-se ao vírus da Covid e ajudar a expor o País à armadilha autoritária que tenta provocar um confronto desigual.
Acredita que a onda mundial de protestos pela morte de George Floyd pode ter efeitos significativos no Brasil e na política nacional?
Sem dúvida, também. O Brasil não é uma ilha e esses protestos estão carregados de uma moral cívica promissora, revigorante, que chegará aqui também. E chegando deve ser saudada. O exemplo mais positivo dessa moral cívica foi dado pelo irmão de George Floyd, ao afirmar que não se sente representado pelos atos violentos, que também ocorreram e ocorrem, em meio aos atos de protesto. Foi uma declaração fortíssima, que chama a atenção para o caráter agregador da luta contra o racismo. Toda a sabedoria dos democratas brasileiros, em especial dos seus cidadãos negros e negras, estará na sua capacidade de respirar os bons ventos que sopram dessa indignação da sociedade norte-americana, recorrendo à política do bom combate para fazer com que eles soprem a favor da democracia, em vez de ajudarem à guerra interminável que seus inimigos querem nos impor.
Cientista político e professor da UFBa.