Luiz Carlos Azedo | Correio Braziliense
No mundo jurídico, o equilíbrio entre a existência de recursos e o retardamento de decisões judiciais é uma questão polêmica e sempre atual, porque estão em jogo a segurança jurídica e a efetividade da justiça. A tensão ocorre entre o inconformismo psicológico natural de quem perde a demanda e o atraso na solução da disputa, mas evita que erros sejam perpetuados em razão da suposta infalibilidade do julgador. A expressão jus esperneandis vem daí. No jargão jurídico, é um falso latinismo, que alude ao espernear de uma criança inconformada com uma ordem dos pais. O excesso de recursos às decisões, porém, pode ser classificado como litigância de má-fé.
A analogia serve para avaliar as manifestações dos partidários do presidente Jair Bolsonaro às portas dos quarteis realizadas ontem. Foram protestos claramente antidemocráticos, que contestavam os resultados das urnas de domingo, quando Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente da República pela terceira vez. Não aceitar o resultado oficial das eleições e até dele recorrer é um direito eleitoral garantido, mas o presidente Jair Bolsonaro não o fez. Em qualquer caso, a decisão final caberia à Justiça, a mesma que proclamou o resultado das urnas. Entretanto, conclamar os militares a intervirem na vida política, rasgarem a Constituição e manterem Bolsonaro no poder pela força é crime. Ou seja, os protestos foram pacíficos, mas suas intenções são criminosas.
Em se tratando de uma eleição tão disputada, de um cenário tão polarizado e de um resultado muito apertado, porém, os protestos podem ser considerados um jus espernandis de militantes bolsonaristas inconformados com a derrota. Não é bem o caso dos bloqueios feitos por caminhoneiros nas estradas, que exigiram uma enérgica intervenção do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, e ações repressivas da maioria dos governadores, inclusive os aliados de Bolsonaro. Entretanto, houve uma sucessão encadeada de ações de caráter nacional desde o dia das eleições que sinaliza a existência de uma coordenação política entre os setores envolvidos e que precisa ser investigada, sobretudo se os protestos se prolongarem além do que seria compreensível.
O fato de Polícia Rodoviária federal (PRF) e a Polícia Militar, em muitos estados, terem sido excessivamente operacionais no dia da eleição, retardando o acesso de eleitores às seções eleitorais, e absurdamente omissas no dia seguinte às eleições, no sentido de coibir os bloqueios de estradas de caminhoneiros, não passou despercebido de ninguém. As manifestações de ontem deram sequência a essas ações, somente não coincidindo porque os bloqueios foram dissolvidos pelas autoridades constituídas.
O silêncio de Bolsonaro em relação à vitória de Lula e sua solidariedade aos manifestantes, no lacônico pronunciamento que fez na terça-feira, também se enquadra na categoria do “jus esperneandis”, mas seu envolvimento ou omissão na continuidade desse tipo de protestos daqui até a posse do novo presidente eleitora caracterizariam uma conspiração. Até as emas do Palácio do Alvorada sabem que Bolsonaro não confia nas urnas eletrônicas e tem a intenção de fazer uma oposição sistemática e implacável ao novo governo, em nome dos 58 milhões de eleitores que gostariam que permanecesse no governo.
Ampla coalizão
Essa não é uma situação trivial, porque o novo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, enfrentará uma oposição muito forte no Congresso e uma correlação de forças na sociedade que tende a se alterar na medida em que as expectativas sobre suas promessas de campanha forem frustradas. É meio inevitável um período difícil de governabilidade, com um governo em minoria no Congresso e com baixa aprovação na opinião pública.
Nesse aspecto, Lula parece ter se espelhado na experiência do governo Dilma Rousseff. Os problemas da ex-presidente da República com sua base começaram nos bastidores do PT, quando anunciou que faria uma “faxina” no governo, e se ampliaram logo na primeira reunião de sua coordenação de governo, quando deixou de fora do seu estado-maior o então vice-presidente Michel Temer (MDB). De certa forma, a indicação do vice-presidente Geraldo Alckmin para coordenar a equipe de transição do governo revela a intenção de formar uma ampla coalizão de governo, com efetivo compartilhamento do poder.
Há uma realidade política nesse momento de transição que precisa ser devidamente considerada: assim como o bolsonarismo raiz não tem força para manter coesa a base eleitoral de Bolsonaro, que tende a se desagregar com a derrota, o petismo sozinho também não tem força para manter Lula no poder, o que é uma lição do impeachment da presidente Dilma Rousseff que precisa ser bem assimilada. Lula deve ampliar seu governo a ponto de incorporar setores do atual governo que estão disposto a participar da nova base governista no Congresso.
O presidente do PP, Ciro Nogueira, ministro da Casa Civil, contraface de Alckmin no atual governo para efeito da transição administrativa, não é apenas um interlocutor burocrático, é um articulador político que joga junto com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), candidato à reeleição na próxima legislatura. Lula não pode repetir o erro de Dilma Rousseff no episódio da eleição de Eduardo Cunha (MDB-RJ) à Presidência da Câmara. Está em curso uma operação política muito complexa, que pode garantir ou não a estabilidade política do governo Lula nos dois primeiros anos de mandato.