Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
“Chegou no porto um canhão/ De repente matou tudo, tudo, tudo/ Capitão senta na mesa/ Com sua fome e tristeza, esa, esa/ Deus salve sua rainha/ Deus salve a bandeira inglesa”. Sul da Bahia, década de 1930, um aventureiro sem nome nem passado, sete vezes baleado, sorridente, trovador e feroz, intromete-se na luta dos grandes coronéis pela posse da terra e do cacau. Está disposto a acirrar a guerra de interesses econômicos e tomar o lugar do coronel Santana, sua mulher e seu dinheiro. Precipita um banho de sangue, no qual sucumbem sertanejos simples e os próprios usineiros. O homem parece conseguir o seu intento, mas seu destino também está assinalado pelos deuses.
O enredo do filme Os Deuses e os Mortos, de Ruy Guerra, com trilha sonora de Milton Nascimento, autor da descrição acima, tem como pano de fundo o colonialismo britânico, daí a exaltação à rainha. Lançado em 1970, o filme era uma alegoria do regime militar e da atuação dos Estados Unidos, que haviam substituído o império britânico como força hegemônica no mundo após a II Guerra Mundial. O filme foi saudado pelo The New York Times como um “western tropical”, que misturava o japonês Akira Kurosawa com o italiano Sérgio Leone, tendo a temática do cacau na saga descrita por Jorge Amado.
Moçambicano naturalizado brasileiro, Guerra fez uma abordagem barroca e tropicalista da violência no campo e do monopólio da política pelas oligarquias. Vencedor do festival de Brasília de 1970, o filme foi realizado num momento em que vivíamos entre dois delírios: o “Brasil, ame ou deixe-o”, do general fascista Garrastazu Médici, e o “Quem samba fica, quem não samba vai embora”, do líder comunista Carlos Marighela. Othon Bastos (“O Homem”), Norma Bengell (“Soledade”), Rui Polanah (“Urbano”), Ítala Nandi (“Sereno”), Dina Sfat (“A Louca”), Nelson Xavier (“Valu”) e Milton Nascimento (“Dim Dum”), entre outros, brilhavam nas telas.
Na década de 1970, o império britânico nem de longe representava a potência mundial que parecia mover os cordéis das lutas do Sul da Bahia na Primeira República, mas a rainha Elizabeth II, a grande homenageada na trilha sonora do filme, lhe dera uma sobrevida com sua sabedoria e dedicação à manutenção da Comunidade Britânica, que somente agora será posta em xeque, com a ascensão ao trono do rei Charles III, depois de um chá de cadeira sem precedentes. Austrália e Canadá continuam reconhecendo o monarca britânico como chefe de Estado, representado por um governador-geral e usam a palavra Commonwealth como título do seu Estado, assim como Antígua e Barbuda, Bahamas, Belize, Granada, Jamaica, Nova Zelândia, Papua-Nova Guiné, Reino Unido, São Cristóvão e Névis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Ilhas Salomão e Tuvalu.
Mares do Sul
Da independência da Índia, em 1947, e à devolução de Hong Kong à China, em 1997, o declínio do império britânico foi inequívoco. Mesmo assim, o Reino Unido arreganhou os dentes no Atlântico Sul, em 1982, quando os argentinos ocuparam as Ilhas Malvinas (em inglês Falklands), Geórgia do Sul e Sandwich do Sul, arquipélagos austrais dominados pelos ingleses a partir de 1833. O saldo final da guerra foi a recuperação do arquipélago e a morte de 649 soldados argentinos, 255 britânicos e três civis das ilhas. Na Argentina, a derrota no conflito fortaleceu a queda da junta militar que governava o país.
Quem quiser que se iluda: ainda hoje, os ingleses é que mandam nos mares do Atlântico Sul. A saída da União Europeia, com o Brexit, e o papel que desempenha na guerra da Ucrânia, contra a Rússia, mostram que a Inglaterra, em aliança com os Estados Unidos, continua sendo uma potência militar que não pode ser ignorada por ninguém, embora já não tenha a supremacia comercial e financeira dos séculos XVII e XVIII, nem a industrial do século XIX.
No século XX, de grande credor o Reino Unido se tornou devedor e inverteu o fluxo migratório que levou seus missionários a disseminarem a ética protestante do trabalho e o liberalismo econômico pelo mundo, passando a receber imigrantes das ex-colônias britânicas. Em 1920, o império britânico dominava cerca de 458 milhões de pessoas, um quarto da população do mundo na época e abrangeu mais de 35.500.000 km2, quase 24% da área total da Terra.
Charles III ao trono — “A rainha morreu, viva o rei” —, depois de 70 anos de reinado de Elizabeth II, não tem o mesmo prestígio popular da mãe, seja na própria Inglaterra, seja no exterior. Sua capacidade de liderar a Commonwealth será posta à prova. O Brexit não está dando os resultados esperados e a guerra da Ucrânia tende a agravar a situação econômica e energética do país. A estabilidade política interna do Reino Unido é vital para a manutenção da comunidade britânica sob a liderança de Charles III.