Mario Del Pero: Conflito Rússia-Ucrânia, três possíveis interpretações

A Ucrânia não é uma ameaça à segurança russa e sua entrada na OTAN não está na agenda
Foto: SERGEI SUPINSKY/AFP/METSUL METEOROLOGIA
Foto: SERGEI SUPINSKY/AFP/METSUL METEOROLOGIA

Mario Del Pero / Blog Horizontes Democráticos

O que estamos testemunhando dá desânimo e nos obriga a enfrentar o inimaginável: uma grande potência nuclear invadindo seu vizinho; centenas e logo milhares de mortos; o risco de uma escalada regional ou mesmo global muito perigosa. E nos obriga – antes de qualquer análise, antes de qualquer reflexão que enfrente o inevitável claro-escuro de qualquer grande crise internacional – a limpar o terreno de qualquer possível mal-entendido: neste momento há um agressor e um agredido; um carrasco e uma vítima. O distanciamento é essencial para o observador; a tomada de uma posição inequívoca é um dever do cidadão, italiano e europeu.

Manifestação contra a guerra na Ucrânia

Pensar o inimaginável, para o historiador, significa não apenas tentar entender como chegamos a um hoje que poucos previram – ao menos na forma dessa guerra clássica –, mas também refletir sobre como a história foi vivida, percebida, incompreendida e não raramente manipulada pelos atores em campo e pela Rússia em particular. A questão central, sobre a qual dedicamos outra reflexão há algumas semanas, são as alegadas promessas feitas à Rússia e não cumpridas ou traídas, como o processo de expansão da OTAN para as suas fronteiras (pelo menos com os países bálticos) e o risco de que ela se estenda até à Geórgia e a Ucrânia, explicitamente mencionada pela própria Aliança na famosa cúpula de Bucareste de abril de 2008, cujo comunicado final afirmava explicitamente o princípio de uma “porta aberta” no sentido de que Ucrânia e Geórgia estavam destinadas a “tornarem-se membros da OTAN”.

Uma promessa bastante arriscada, deixada para um futuro indefinido e rapidamente posta de lado após a intervenção militar russa na Geórgia, no mesmo agosto de 2008, e as perturbações causadas por uma crise econômica mundial destinada, em certa medida, a minar os processos de integração global como havíamos conhecido até então.

Aqueles que denunciam essas escolhas como ameaçadoras e desnecessariamente provocativas em relação a Moscou, sublinham a história de uma Rússia/URSS invadida várias vezes ao longo da sua história (com imensos custos humanos e materiais, em função da dificuldade de imaginar não só o presente e o futuro, mas também o próprio passado); as promessas feitas no início da década de 1990 por líderes americanos e europeus de que a OTAN não se expandiria; as críticas feitas por muitos estudiosos e especialistas a uma decisão considerada precipitada e perigosa. Aqueles que as defendem lembram a maneira gradualista com que se movimentaram na tentativa de envolver e tranquilizar a Rússia por meio da ativação simultânea de várias instituições paralelas (a Parceria para a Paz de 1994 e o Conselho OTAN-Rússia de 2002 sobretudo). E salientam que a segurança da Rússia – ainda uma grande potência militar com milhares de ogivas nucleares à sua disposição – certamente não foi posta em questão pelo alargamento da OTAN; que a capacidade russa de prevenir e desencorajar qualquer ameaça permaneceu completamente intacta e talvez até tenha crescido, pelo menos em comparação com uma frente euro-americana que no pós-Guerra Fria sofreu reduções significativas nos orçamentos de defesa. Num contexto – o pedante historiador deve sempre lembrar – no qual ainda não se tem muitíssimas fontes de arquivo e a historiografia só agora começa a dar os primeiros passos, ambos os polos interpretativos captam elementos importantes, mas omitem outros que talvez fossem mais úteis para entender melhor o que se passa hoje. Podemos destacar três em particular.

Cena dramática de uma guerra impactante

A primeira refere-se ao unilateralismo norte-americano pós-Guerra Fria e aos padrões frequentemente duais aplicados ao direito internacional e à questão-chave da soberania. No momento triunfalista (e na arrogância) dos anos 1990 ou no da guerra global ao terror no início do século XXI, os EUA muitas vezes agiam de forma unilateral, fora da lei e aplicando critérios diferentes – determinados pelo interlocutor de plantão, por suas relações com os Estados Unidos e sua relativa importância estratégica – na aplicação dos novos critérios que deveriam informar um sistema internacional onde os direitos humanos e a responsabilidade da comunidade internacional em garanti-los, protegê-los e ampliá-los se tornaram centrais. Nessa atitude havia pressões políticas internas, intolerância aos constrangimentos de uma governança global parcial e, em muitos de seus mecanismos, obsoletos, a fragilidade de um internacionalismo liberal que se encontrava em apuros há algum tempo. O efeito, no entanto, foi reduzir a capacidade hegemônica dos EUA, se não minar sua própria credibilidade. A verdadeira hegemonia precisa de consenso e de mediações que os EUA do pós-Guerra Fria muitas vezes mostraram que não tinham paciência ou vontade de buscar e promover.

É claro que essa atitude – e essa erosão da capacidade e credibilidade hegemônicas – gerou a ação, às vezes oportunista e instrumental, da grande superpotência que era ou pelo menos na dimensão estritamente militar que continuava a ser a Rússia pós-soviética. Dado que a integração consensual do gigante russo em uma ordem de segurança centrada na OTAN era, por várias razões, um empreendimento improvável, é claro que certos processos, incluindo a ampliação da OTAN, e certos padrões duplos preocuparam e até assustaram Moscou. Que em algumas passagens-chave – pensemos na diplomacia que levou à intervenção em Kosovo, em 1999, ou na crise Líbia de 2011 – a Rússia foi parcialmente marginalizada ou se sentiu (e talvez tenha sido) enganada. Acima de tudo, a denúncia das promessas não cumpridas – presumidas ou reais – do unilateralismo dos EUA, permitiu uma vitimização que se alimentaria de uma narrativa nacionalista que Putin acabaria por cavalgar e explorar.

Como negociar a paz com Putin?

E isso nos leva ao terceiro e último ponto, que se refere ao inevitável (e muitas vezes inextricável) entrelaçamento da política interna e externa. A partir de um curto-circuito que nos mostra a força da desinformação (ou má-informação), hoje discutimos a crise ucraniana como se a hipótese de Kiev aderir à OTAN fosse realista e praticável e não algo pensado para um futuro longínquo. É claro que o valor simbólico do pedido russo de um compromisso explícito e formalizado a esse respeito não deve ser subestimado (e também explica por que o pedido não é aceitável para os EUA). Mas não é um problema hoje e o primeiro a saber é obviamente Putin. A Ucrânia não é uma ameaça à segurança russa e sua entrada na OTAN não está na agenda.

Então, por que a Ucrânia causa tanto temor (e é tão importante) a Putin que o faz tomar essa decisão extrema e terrível? Múltiplas explicações podem ser e têm sido oferecidas considerando o desejo de se reconstituir uma esfera de influência na Europa Centro-Oriental com base em modelos de imperialismo Pan-eslavo aparentemente muito populares entre alguns de seus conselheiros. Esse é um ponto central que remete a outro. Um perigo, em certos aspectos muito maior do que o estritamente de segurança. Trata-se da hipótese de uma Ucrânia progressivamente integrada – em termos económicos, políticos e culturais muito mais do que em termos de segurança – num espaço euro-atlântico democrático, potencialmente aberto e certamente muito mais capaz de proteger direitos civis e políticos fundamentais, acolhendo (como já está fazendo) os opositores de Putin e os ativistas russos e bielorrussos. Montar uma narrativa vitimista e nacionalista, toda centrada na “traição” da ampliação da OTAN, explorando a evidente erosão da credibilidade hegemônica dos EUA e enfatizando os erros e padrões hipócritas e duais da ordem internacional pós-Guerra Fria também serve, e talvez principalmente, para justificar o uso da guerra para evitar tal resultado.

(Publicado originalmente em Treccani.it, em 25 de fevereiro de 2022, com o título Perché un conflitto in Ucraina oggi? Tre possibili chiavi di lettura; tradução de Alberto Aggio; https://www.treccani.it/magazine/atlante/geopolitica/Perche_conflitto_Ucraina_oggi.html?fbclid=IwAR2yV-DbimpQDcJdb2YhWrDBI7lacbXqF_iDeKzTlhi0-X8mgbRaH9CmwiA)

Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/conflito-russia-ucrania-tres-possiveis-interpretacoes/

Privacy Preference Center