José Claudio Berghella: Por uma nova esquerda?

O colapso do socialismo real prenunciava o fim da bipolaridade e sem essa a esperança de um mundo novo de paz, prosperidade e liberdade. Direita e esquerda foram, cada qual a seu modo e em razão de suas particularidades, promovendo seus aggiornamenti. A esquerda desde o XX Congresso do PCUS em 1956 enfrentava seus demônios e os PCs ocidentais sentiam o peso da defesa do socialismo tendo o Bloco Soviético como parâmetro. As questões políticas decorrentes da invasão da Hungria, queda de Kruschev, gestão Breznev, primavera de Praga foram fatos complexos e de difícil gestão em países onde a democracia, mesmo com grandes debilidades, garantia as liberdades essenciais. Para a direita com o “Grande Irmão” , comunista e ateu, subjugado o céu era o limite. O anticomunismo não mais se justificava como fundamento exclusivo da luta ideológica. Vivia-se uma época que parecia inaugurar o fim de todos os radicalismos. Os olhares, à esquerda e à direita, voltavam-se para a questão da gestão do estado democrático. Direita e esquerda, livres dos pesos do passado, rumam em direção ao centro. A esquerda abandona as vestes do radicalismo e a direita parece converter-se em civilizada. O movimento em direção ao centro promove um novo reformismo. A esquerda se coloca em um modelo reformista defensivo enquanto que, de modo paradoxal, a direita abraça a causa reformista.

As crises, contudo, cumprem historicamente seu papel. A expectativa de que os ex-países socialistas do Bloco Soviético se convertessem em novos mercados e em especial zonas para investimentos industriais, comerciais e financeiro para os grandes conglomerados capitalistas ocidentais não aconteceu no modo almejado. O desmantelamento da economia de estado socialista gerou uma crise social cujos reflexos na Europa se fará, em especial, com grandes movimentos migratórios rumo a oeste. As novas classes dirigentes nestes países não foram tão filo-europeias como os mais otimistas sonhavam. Em 1998 a crise russa arrasta a Europa e muitos outros países à beira do abismo. Portugal, Espanha, Itália, Grécia são os mais atingidos sendo que os efeitos catastróficos abalam Alemanha, França e Reino Unido. Desemprego, falências, redução da atividade econômica, inflação elevam o tom da política e da agitação social.

A resposta à crise foi quase unânime: política de austeridade. A questão central: o welfare state. Em graus diversos todos os países europeus são levados à contenção de gastos públicos por cortes no orçamento social. A Comunidade Europeia, que hoje temos, se construiu e se fez como tal nestes quase 20 anos do débâcle russo sob o manto das crises e da austeridade. Direita e esquerda revezaram-se nos governos em torno da pauta única: austeridade. Queda dos laboristas na Inglaterra, vitória dos socialistas em França, assunção de Merkel na Alemanha, queda do breve governo Prodi na Itália, derrota do PSOE em Espanha, vitória da direita portuguesa revela o zig-zag na política. Contudo, os indicadores negativos não se superam. A austeridade com cortes de gastos no welfare state atinge o sistema educacional, as políticas de saúde pública, o custo dos transportes, o crescente desemprego entre os jovens e a crise no sistema de pensões e aposentadorias. Ao mesmo tempo o peso das corporações sindicais, patronais, da máquina pública, dos modos de gestão fazem com que diante do grande público a austeridade não resulte eficiente. Assiste-se o aumento das discrepâncias sociais enquanto que o sistema financeiro alcança recordes de crescimento. Diante da crise o sistema financeiro decreta uma política de escassez de recursos travando a economia e elevando o custo do dinheiro. Em muitos países europeus os governos procuraram sair do sistema de crise crônica estimulando uma economia de consumo com o crescente endividamento dos consumidores.

A nova geração europeia cresceu sob as crises continuadas e sob as férreas políticas de austeridade. Não conheceu e nem vivenciou os polos opostos da bipolaridade. O comunismo era um fantasma do passado onde não se podia ouvir rock ou ter calças jeans e o fascismo era tão somente um capítulo a mais nas lições escolares. Europa do leste e do oeste passam a ter nessa nova geração pós muro um segmento social unido pelas mesmas adversidades: elevada instrução sem oportunidades de emprego diante de uma sociedade de falimento do welfare state. É uma geração europeia sem compromissos com as forças do passado que se soma aos novos desvalidos que vieram do passado. Esquerda e direita do novo reformismo não são capazes de representar os diferentes segmentos sociais marginalizados pelas crises e políticas de austeridade. O sistema de partidos não consegue mais representar os interesses de segmentos e grupos sociais específicos. Os trabalhadores que antes eram mais fiéis aos partidos de esquerda agora, em defesa dos empregos e benesses sociais, se sentem livres de votar com a direita. A crise, por sua vez, atinge o sistema de partidos. Incapazes de representar os amplos interesses da sociedade e suas frações os partidos tradicionais, ou tradicionalmente organizados, vêm escapar parcelas do eleitorado ao mesmo tempo em que não são capazes de manter uma unidade ideológica ou programática, promovendo, por consequência, cisões internas. As modificações nos últimos 25 anos nas organizações partidárias europeias foram de tal monta que talvez superem as havidas nos quase dois séculos anteriores desde o início da formação dos partidos políticos modernos na Europa continental.

Sem representatividade muitos destes segmentos sociais refutam o modelo de desenvolvimento e crescimento imposto pela política de austeridade do Banco Central Europeu e não encontram na forma partido vigente organizações que possam lhes representar. Muitas das frações políticas nos partidos surgem a partir de uma leitura crítica da política econômica e suas consequências no agravamento do quadro social, como também na percepção da própria crise da forma partido. Este contexto promove um efeito tipo Big Bang, qual seja fuga do centro para a periferia, para o extremo. É a gestação de uma nova radicalidade.

Seria muito ingênuo associar o movimento anticentro como extremista. Os partidos rumo ao centro tentam caracterizar essas novas organizações políticas divergentes como extremistas ou radicais, procurando associa-las de algum modo aos velhos extremismos de direita (neofascistas, neonazistas, etc.) ou esquerda (Baader-Meinhof, Brigadas Vermelhas, etc.). O espectro que se cria é o de reputar aos movimentos anticentro o caráter de agremiações resistentes às regras do regime democrático em curso. Aos partidos que são atraídos pela força gravitacional do centro o ideal democrático é a conformação de relações políticas que garanta a governabilidade. E esta, governabilidade, se torna a mágica palavra-de-ordem dos novos tempos, que, por fim, legitima todos os tipos de alianças em governos de coalização. As alianças conjunturais e temporais em vista o processo eleitoral e à formação da maioria relega o fator ideológico a plano inferior, fragilizando, por consequência, a forma partido.

O fracionamento dos partidos de esquerda no novo milênio ocorre em toda Europa. Ressalvadas suas particularidades poder-se-ia sintetizar que o elemento comum a todas as frações é o welfare state. A questão central é o modelo de gestão da União Europeia sintetizada na crítica à política de austeridade.

O Partido da Rifondazione Comunista, fundado na Itália em 1991, pouco tempo depois do fim do PCI, decorrente da fusão do Partido Comunista d´Italia, a Democrazia Proletaria e os dissidentes do PCI foi a primeira grande experiência de cisão europeia à esquerda logo em seguida ao início dos movimentos de aggiornamenti dos PCs. Em seus primeiros anos apesar da crítica ao aggiornamento do PCI, o PRC apoiou os governos Prodi em 1996 e depois em 2006. Contudo eleitoralmente o PRC foi perdendo terreno no campo da esquerda. Entre as razões de sua fragilização, como em tantos outros casos, se dá principalmente em virtude de que sua derivação à esquerda representava a volta ao “velho comunismo”, ao dogmatismo e ao sectarismo, projetando-se fora do movimento da história.

O movimento de aggiornamenti dos PCs não foi igual em todos os países. Alguns permaneceram na velha concepção como o Partido Comunista Português e o Partido Comunista Grego, apesar de que no caso do partido grego surgiu internamente um forte grupo modernizante que se mantém como fração. O PCI foi o que mais radicalmente mudou, sendo que o alemão, o espanhol e o francês o fizeram de modo mais lento. Nos países do ex bloco socialista os PCs, muito enfraquecidos, mantiveram-se nas velhas tradições. Contudo vale salientar que ainda neste período a evasão de militantes, principalmente entre intelectuais, dirigentes e líderes sindicais, homens do campo da cultura, foi bastante significativa. E, em muitos casos, formaram-se grupos de debate, revistas, círculo de estudos, agrupamentos políticos setoriais, etc., evitando uma diáspora sem retorno.

O fenômeno do Partido da Rifondazione estabelece um certo marco no final do século passado dos partidos, frações e grupos dissidentes que acabaram convertendo-se em propugnadores de uma perspectiva conservadora na defesa da velha forma partido.
O novo milênio vê surgir um movimento de outro tipo, qual seja da crítica à gravitação rumo ao centro e a recuperação dos valores básicos dos movimentos comunistas, socialistas e sociais democráticos, não tendo, porém, como parâmetro o socialismo real anterior. É o socialismo do século XXI, como afirmam muitos em seus Manifestos, sendo esta nova etapa aquela do capitalismo financeiro em escala mundial. Os inúmeros partidos ou movimentos nesta Nova Esquerda não são ideológica e programaticamente unânimes e cada qual responde aos seus antecedentes históricos. Contudo, como já dito, o traço comum que a liga é o welfare state e crítica ao modo de gestão do Estado e da política unitária europeia. Existem aqueles que pregam um novo neokeynesianismo até aqueles que vêm no Tsipras grego um novo berlinguerismo. Uns mais ortodoxos como o Bloco de Esquerda português e outros mais heterodoxos e modernos como Die Linke na Alemanha.

Sumaria e reduzidamente ei-la. Novi Levi Perspettivi – Bulgária (2012). “Todos os valores do liberalismo e da democracia cinicamente serviu como adereços para a destruição do Estado de bem-estar, e com ele – o da própria sociedade. Então, hoje a análise dos problemas da sociedade capitalista foi substituída pela proposta de medidas orçamentárias rigorosas supostamente extraordinárias para se tornar parte da nossa constituição.” (Manifesto) Die Linke – Alemanha (2007), fundado por Oskar Lafontaine, ex presidente do SPD, que em 2009 obteve 12% dos votos. “O Die Linke luta por uma ordem econômica diferente, democrática, que sujeita o mercado a regulamento de produção e distribuição através do enquadramento e controle democrático, social e ecológico. Tem que ser baseado na propriedade pública e democraticamente controlada nos serviços de interesse geral, da infraestrutura social, no poder industrial e no setor financeiro. Queremos que a socialização democrática das áreas mais estruturalmente relevantes seja com base no estado, municípios, cooperativa ou propriedade da força de trabalho.” (Manifesto) A fração de Jeremy Corbyn junto ao Labour Party inglês. Tsipras – Grécia que venceu as ultimas duas eleições gregas superando a Nea Democratia e o Partido Comunista Grego. Podemos – Espanha – em 2014 obteve 7,98% dos votos para o Parlamento Europeu. Parti de Gauche – França (2009). Rede dos Estudantes – Hungria. CriticAtac – Romênia. Crítica Política – Polônia. Inciativa para o Socialismo Democrático – Eslovênia. Partido Comunista da Boêmia e Morávia (KSCM) – República Checa. Bloco de Esquerda – Portugal, no 2º semestre de 2015 em aliança com o PS e o PCP derrubou o governo direitista português. Em 2010 compunham o Partido de Esquerda Europeu 32 partidos em 22 países, todos ou de origem socialista ou de origem comunista, entre eles os velhos partidos e a nova esquerda.

O Manifesto de 2015 assinado por Oskar Lafontaine, ex ministro das finanças, fundador do partido Die Linke (Alemanha), Stefano Fassina, parlamentar, ex vice-ministro da economia e finanças (Itália), Jean-Luc Mélenchon, parlamentar europeu, co-fundador do Parti de Gauche (França) e Yanis Varoufakis, parlamentar, ex ministro das Finanças (Grécia) resume o novo fantasma que ronda a Europa: “O euro tornou-se um instrumento de dominação econômica e política por parte de uma oligarquia europeia que se projeta no governo alemão, muito contente em deixar o trabalho sujo para a chanceler Merkel e o que os outros governos não são capazes de realizar. Esta Europa gera apenas violência nos países e entre eles: o desemprego em massa, insultos brutais, dumping social e contra a periferia europeia, tudo atribuído à liderança alemã, mas em verdade repetida como um papagaio por todas as elites europeias, incluindo as dos mesmos países da periferia. Desta forma, a União Europeia tornou-se portadora de um ethos de extrema-direita e os meios para tornar impossível na Europa o controle democrático sobre produção e distribuição”.

O tema é relevante e não e esgota aqui.

José Claudio Berghella (1945). Ítalo-brasileiro. Sociólogo. PhD em Sociologia (USP/1972). Professor aposentado na UFSCar. Autor de livros e artigos.

Fonte: Assessoria do PPS

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