Elio Gaspari: Triste Brasil

É como se o país tivesse virado um grande pernil e cada um vai lá para tirar sua fatia.
Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Corrêa/PR

É como se o país tivesse virado um grande pernil e cada um vai lá para tirar sua fatia

Atribui-se ao professor San Tiago Dantas uma observação mortífera: “A Índia tem uma grande elite e um povo de merda, o Brasil tem um grande povo e uma elite de merda”. Com certeza, San Tiago disse que “vem se processando há séculos no Brasil um trabalho social de contínua desorientação das ‘elites’, que as vai afastando do exame cultural e político dos valores nacionais.” No discurso de posse que não viveu para ler, Tancredo Neves disse a mesma coisa: “Temos construído esta Nação com êxitos e dificuldades, mas não há dúvida, para quem saiba examinar a História com isenção, de que o nosso progresso político deveu-se mais à força reivindicadora dos homens do povo do que à consciência das elites.”

Nunca a elite nacional ofereceu um triste episódio como o que os Três Poderes da República e boa parte do andar de cima vêm oferecendo diante da epidemia. (Ressalvada a doação de R$ 1 bilhão pelo Itaú Unibanco, a maior da história nacional.)

O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão. O século 20 teve 36 anos de ditaduras. Em 1978 o supermercado Carrefour foi expulso da Associação de Supermercados do Rio porque aceitava cartões de crédito. A ponte aérea Rio-São Paulo levou anos para dar aos seus passageiros acesso a programas de milhagem que existiam há mais de uma década. Os fazendeiros que insistiram em comprar escravos empobreceram. O supermercado que liderou a expulsão do Carrefour sumiu, e o oligopólio das aéreas foi à garra.

Sendo velho, o atraso poderia ter aprendido. Já morreram mais de mil pessoas e o oportunismo epidêmico do andar de cima agravou-se. O presidente da República diz que a Covid é uma gripezinha, afrontando a Ciência e a opinião pública. O ministro da Saúde é hostilizado pela charanga do Planalto porque defende o isolamento. Os inimigos de Bolsonaro passaram a ser seu ministro e os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro. Já à Covid, que está matando gente, ele deu compreensão. Do outro lado do balcão, a Câmara aprovou um pacote de ajuda aos estados que é visto como uma bomba fiscal, e o ministro da Economia avisa que o Executivo deverá vetá-lo. Empresários beneficiados pelos programas federais provisórios defendem sua transformação em mimos permanentes. Fazem tudo isso sabendo que depois da epidemia virá a recessão.

É como se o Brasil tivesse virado um grande pernil e cada um vai lá para tirar sua fatia. Admita-se que todos têm razão, inclusive Bolsonaro com sua gripezinha. Se cada um continuar gritando, quem ganha é a Covid. Os barões da medicina privada querem falar de tudo, menos do colapso de hospitais do SUS (que está carregando o piano). Falta que essas duas turmas conversem, partindo de uma premissa: “Eu não quero te quebrar, mas você não pode querer me matar”.

Todos os lados acham que têm razão, mas não conseguem conversar. À primeira vista pode-se achar que isso se deve à polarização bolsonariana. É pouco. Em 1830 o deputado Antônio Ferreira França apresentou um projeto de abolição gradual da escravidão. Ela acabaria em 1851. Acabou em 1888 porque havia gente interessada nisso.

Há hospitais públicos recusando-se a admitir pacientes. Por quê? Porque chegam mortos.

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