Dorrit Harazim: O despejo

É quase humilhante constatar que, por quatro anos, mundo civilizado conviveu com um delinquente na Presidência dos EUA.
Foto: White House
Foto: White House

É quase humilhante constatar que, por quatro anos, mundo civilizado conviveu com um delinquente na Presidência dos EUA

Foram 1.460 dias. É quase humilhante constatar que, por quatro anos, o mundo civilizado sobreviveu e conviveu com um delinquente cívico na Presidência dos Estados Unidos. E essa eternidade não acabou: ao se confirmar sua derrota, Donald Trump dispõe de outras 11 semanas para minar com ferocidade vingativa o funcionamento da máquina governamental até a posse de Joe Biden em janeiro. Esse serviço de porão já foi iniciado. Na última semana de outubro, de forma atipicamente silenciosa, Trump lascou sua assinatura num documento de nome quase esotérico: “Ordem Executiva sobre a Criação do Nível F no Serviço Protegido”. Tradução: pelo novo decreto, uma vasta gama de postos federais passam a ser designados como “cargos de confiança e de formulação de políticas”. Poderão perder o direito à estabilidade que sempre tiveram como servidores de carreira. Esses milhares de funcionários que trabalham e analisam fatos — cientistas e juristas, médicos, economistas — seriam repassados a essa nova categoria F. Inversamente, os nomeados políticos de Trump passam a integrar a classe dos funcionários, com estabilidade e tempo para travar a máquina do futuro governo Biden.

Mas isso são meras migalhas. Atual e alarmante é a combustão do ocupante da Casa Branca, entrincheirado com sua bílis por ter acreditado nas próprias fake news. Na última “New Yorker”, a jornalista Jane Mayer escreve sobre a possibilidade de Trump, quando perder a imunidade, vir a ser preso. Mayer inicia a reportagem com uma cena histórica — a de um presidente dos EUA em pânico dando ordens descontroladas e exigindo dos assessores uma lista de escapatórias. Sem ser particularmente religioso, o chefe da nação cai de joelhos e passa a rezar alto; soluça, bate com os punhos no tapete e grita “O que que houve?”. O chefe de gabinete acha prudente chamar a equipe médica e ordena o confisco de todos os tranquilizantes, para afastar a possibilidade de suicídio. Tudo isso aconteceu de fato na Casa Branca de Richard Nixon, no verão de 1974, e está narrado con gusto pela dupla Bob Woodward-Carl Bernstein em “Os últimos dias”.

Mas Trump não é Nixon — nem na formação intelectual (sim, Nixon tinha sólida formação, o que não deve ser confundido com caráter), nem na índole, nem no reconhecimento da existência de um estado de direito. Nixon nunca foi mimado, tinha medo da vergonha, do opróbrio público. Trump tem medo da humilhação social. São coisas muito distintas. Para o Narciso-em-Chefe na Casa Branca, a ideia de ser perdedor, ou de parecer perdedor, o obrigaria a desprezar a si mesmo — e essa possibilidade inexiste. Parecem nulas as chances de Trump jamais vir a “vestir calça de menino que cresceu e congratular o vencedor”, como sugeriu Jim Kenney, o prefeito democrata da Filadélfia. Mesmo que, ao final da tortuosa apuração dos votos, o resultado lhe tenha sido desfavorável, Trump quer parecer indestrutível aos olhos de seus devotos.

A nação de quase 63 milhões de eleitores que o elegeu em 2016 cresceu e se multiplicou para 70 milhões em 2020. “Me sinto seguro ao garantir que Donald Trump estará entre os candidatos à eleição em 2024”, lançou de Dublin o seu ex-chefe de gabinete e atual enviado especial à Irlanda do Norte, Mick Mulvaney. Não sem razão: em quatro anos Trump conseguiu moer a cúpula partidária em massa de manobra. À exceção de John McCain, que já morreu, não sobrou nenhuma figura de porte nacional. Viraram moluscos. O vice-vassalo Mike Pence só existe enquanto Trump existir. Mesmo derrotado, Donald Trump pretende continuar representando o partido que já teve “Honest Abe” (apelido e sinônimo de Abraham Lincoln) como primeiro presidente republicano.

Ainda assim, e independentemente de quando e como o resultado for referendado, a extraordinária catarse democrática que deu a Joe Biden a maior votação da história do país — mais de 4 milhões acima da de Trump — será um marco indelével. O colosso americano parece ter despertado de uma longa noite de quatro anos para redescobrir o valor de cada voto e o júbilo de votar.

Recompor uma nação separada por duas realidades, duas visões de si e dois conjuntos de fatos poderá levar uma geração inteira. Perdeu-se o conhecimento básico que um cidadão americano acreditava ter do outro. O escritor e colunista Anand Giridharadas, americano nascido na Índia, aponta para a oportunidade de os Estados Unidos aprenderem a real história do país. Hora de aceitar que a visão de James Baldwin da sociedade americana nunca foi radical. Se para nada mais serviu o ano de 2020, ele ao menos consolidou a urgência dos Estados Unidos se reconhecer como nação onde não basta ser não racista. É preciso aprender a ser antirracista.

O radical de hoje é Donald Trump. Por quatro anos, ele comandou uma nação incapaz de deliberar seu futuro baseada numa mesma fonte de fatos. Joe Biden chega para iniciar a longa jornada de retorno, senão à normalidade, pelo menos à sensatez quando diz: “Não cabe a mim nem a Donald Trump declarar quem venceu a eleição. Esta é uma decisão do povo americano”.

Para Trump, a questão do despejo é inconcebível. A única transição de poder que aceita é dele para ele mesmo. Talvez precise de monitoramento.

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