Dorrit Harazim: Adeus às armas?

Controle mais severo da legislação que rege a posse de armas tende a corresponder uma diminuição no número de mortes.
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Controle mais severo da legislação que rege a posse de armas tende a corresponder uma diminuição no número de mortes

E de repente ouviu-se um imenso silêncio. Ele foi acachapante, estranho, sinistro. Cobriu campos e vales, trincheiras e povoados, e teve hora cronometrada. Foi num 11 de novembro de exatos cem anos atrás — na 11ª hora do 11º dia daquele 11º mês de 1918. Com o armistício assinado horas antes por Aliados e a Alemanha derrotada num vagão em Compiègne (França), todas as armas se calaram. E a Primeira Guerra Mundial — que durara quatro anos, também chamada de a “guerra de todas as guerras” — pôde começar a olhar para a devastação à sua volta. O britânico Guy Cuthbertson, professor de Literatura em Liverpool, acaba de publicar “Peace at Last: A Portrait of Armistice Day”, um retrato dos minutos finais dessa guerra e do silêncio que se seguiu.

A reconstituição é minuciosa. A ordem de cessar-fogo fora respeitada com pontualidade militar, ora com ceticismo, ora com fé. Mesmo faltando menos de cinco minutos para a hora H, um batalhão britânico exaurido ainda arriscou avançar sobre Lessines, uma localidade belga. Vai que a guerra não acaba… Outras trovoadas de artilharia de última hora tiveram motivação mais prático-otimista: aliviar o volume de material bélico a ser transportado de volta para casa. Vai que a guerra acaba… Um sortudo operador de rádio americano começara a ler o comunicado “São 11 horas e a guerra … ”, quando uma bomba alemã disparada segundos antes arrombou seu bunker. Não terminou a frase, mas sobreviveu.

Cuthbertson conta que até o ar pareceu ficar imóvel quando o ponteiro dos segundos emparelhou no alto do mostrador. “Foi como se todos tivessem ensurdecido de repente”, escreveu. Em nenhuma trincheira houve comemoração, apenas alívio. “A sensação foi de cair num vazio… De escutar o que não existia”, relembra outro veterano. A chegada da paz foi definida pela ausência — a ausência dos sons que matam.

Todos os anos, no dia 11 de novembro — ou no domingo mais próximo a esta data —, Europa, Estados Unidos e parte do planeta comemoram o armistício desta guerra que causou a morte de mais de 20 milhões de pessoas (entre combatentes e civis), e gerou 30 milhões ou mais de mortes indiretas (vítimas de epidemias, doenças e genocídios paralelos). Em alguns países como a Inglaterra, a França e a África do Sul, tudo para, todos param, a vida vira estátua durante dois minutos de silêncio a partir das 11h (hora local); no primeiro homenageiam-se os mortos; no segundo, os que ficaram para chorá-los.

É uma comunhão surpreendente, considerando tratar-se de um conflito ocorrido quatro gerações atrás.

Houve um tempo em que o mundo acreditou que a lição foi aprendida, que o horror não se repetiria. Mas a geração nascida dos escombros de 1918 mal tinha completado 21 anos quando o mesmo mundo voltou às armas. Nunca mais as largou — Segunda Guerra, Vietnã , o Afeganistão que já dura 17 anos, para citar só algumas. A diferença em relação a cem anos atrás é que ninguém mais parece acreditar num mundo menos armado.

Tome-se o episódio desta semana na cidade californiana de Thousand Oaks. Um ex-fuzileiro naval, empunhando uma pistola calibre 45 turbinada e comprada legalmente, adentra o bar onde uma maioria de jovens se embalava ao som de música country. Em poucos minutos, mata 12 pessoas e se suicida. Em novembro de 2017, também durante um festival de música country de Las Vegas, outro atirador entrincheirado num quarto de hotel com 12 fuzis semiautomáticos mata 58 pessoas, fere outras 515 e tira a própria vida. Sem falar na recente matança de 11 fiéis numa sinagoga de Pittsburgh, em crime antissemita cometido por um atirador armado com um fuzil AR-15 e três pistolas Glock. A listagem completa das chacinas ocorridas nos Estados Unidos nos últimos anos ocuparia um jornal inteiro.

O ponto de inflexão na complexa relação da sociedade americana com o porte de armas talvez tenha ocorrido em 2012, quando 20 crianças foram metralhadas em suas salas de aula em Sandy Hook, estado de Connecticut. Como nada mudou no país desde então, o debate sobre controle do uso de armas também foi ficou ali enterrado.

Em levantamento mundial publicado no ano passado, o “New York Times” teve o mérito de dissociar chacinas cometidas por atiradores individuais da violência e criminalidade genéricas de um país. No primeiro quesito apenas o Iêmen supera os Estados Unidos. No segundo, os EUA também claudicam: seis vezes mais homicídios por arma de fogo do que no Canadá, 30 vezes acima do índice na Grã-Bretanha, segundo dados de 2009. Ainda assim, menos propensos à criminalidade do que vários outros países desenvolvidos.

Embora constituam apenas 4,4% da população mundial, guardam em casa, legal ou ilegalmente, 42% das armas privadas do planeta. São 270 milhões de unidades. Mas nem a história constitucional do país, nem divisões raciais ou índice de distúrbios mentais dos perpetradores explicam, sozinhos, o alto índice de chacinas. A única variável capaz de explicar a matança é o número astronômico de armas em mãos do cidadão.

Espremendo as análises de 130 estudos sobre violência em dez países, o “Times” concluiu o que para muitos parece intuitivamente óbvio: que à posse de armas corresponde um aumento de homicídios. E que a um controle mais severo da legislação que rege o tema tende a corresponder uma diminuição no número de mortes. Isso vale tanto para os Estados Unidos, onde o cidadão já nasce imbuído do direito de ter uma arma, como para o resto do mundo, que vê o acesso a armas como um direito que precisa ser conquistado.

No Brasil, Jair Bolsonaro acaba de eleger-se presidente com a promessa de ampliar o acesso a armas para autodefesa. O apoio da opinião pública à lei federal de 2003 que as proíbe vem diminuindo ano a ano — em 2013 eram 68%, hoje são 55%. Está nas mãos do Congresso e da pressão da sociedade decidir o tamanho que se quer dar à nossa guerra cotidiana.

Privacy Preference Center