Cristiano Romero: O genocídio negro

Em Alagoas, 99% das mortes violentas em 2019 foram de negros
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas

Cristiano Romero / Valor Econômico

Será que, se fosse um branco andando e mexendo na mochila, tinham atirado no meu irmão três vezes?” Foi dessa forma que Fabiana Teófilo reagiu ao assassinato de seu irmão Durval Teófilo Filho, no dia 2 deste mês, em São Gonçalo (RJ), uma das cidades mais violentas do país. Durval tinha 38 anos, era casado e pai de uma menina de seis anos, Letícia, que tinha o hábito de esperar o pai retornar do trabalho.

Antes de trabalhar como repositor de supermercado _ o profissional que reabastece as prateleiras, à medida que estas vão sendo esvaziadas _, Durval foi letrista em plataformas da Petrobras. O pintor letrista é responsável por escrever sinalizações para orientar, por exemplo, a aproximação de barcos e helicópteros às plataformas.

Na noite fatídica, ao chegar perto do portão de entrada de seu condomínio no Colubandê, em São Gonçalo, Durval parou para buscar a chave do portão dentro da mochila. Naquele momento, foi alvejado por três tiros disparados por Aurélio Alves Bezerra, sargento da Marinha. Ele atirou de dentro de seu carro, sob a alegação de que temia ser assaltado. O militar era vizinho da vítima no condomínio.

“É mais um preto morto, e vai ficar por isso mesmo?”, questionou, indignada, Fabiana, a irmã de Teófilo. “Já passei por isso diversas vezes. [A morte de] meu pai foi assim, já tive primos que foi assim, mas, agora, de novo? Agora, não! Vou atrás de onde tiver que ir, entendeu? A justiça tem que ser feita.”

Durval se mudou com a família para o Colubandê, justamente para fugir da comunidade do Capote, um exemplo da violência em forma de guerra-civil que assola os grandes centros urbanos deste país há décadas. E a intensidade está aumentando.

Os dados oficiais de mortes violentas mostram queda no número de casos, segundo o Atlas da Violência. O problema é que a qualidade e, portanto, a credibilidade das informações, repassadas pelas secretarias estaduais de segurança pública, são hoje discutíveis, uma vez que o número de cidadãos mortos de forma violenta, mas sem causa determinada, tem crescido de maneira exponencial. Como essa estatística não entra no cômputo geral de assassinatos, criou-se a falsa impressão de que a violência está diminuindo. Em alguns Estados, o número de casos que não entram na estatística é superior ao de registro de mortes violentas com causa determinada, o que nos remete à famosa frase de Hamlet: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”.

No fundo, do jeito que estão, as estatísticas sobre violêdncia mascaram a verdadeira dimensão da tragédia que nos leva a concluir que, no Brasil, viver não é preciso. “Vendo as câmeras, ouvindo a fala do delegado e pelo que os vizinhos estão falando, tenho certeza de que isso aconteceu porque ele é preto. Mesmo eles falando que ele era morador do condomínio, o vizinho não quis saber. Para mim, foi racismo sim”, disse Luziane, a viúva de Durval.

Ora, Durval morreu porque era negro. Quando um negro é visto nas ruas de São Paulo, por exemplo, a primeira reação dos viventes, principalmente, dos que estão devidamente acomodados dentro de seus automóveis, com as janelas e portas travadas, e com o ar condicionado ligado porque ninguém suporta o calor que faz aqui nos trópicos, é achar que se trata de um assaltante. Isso está impregnado no imaginário coletivo de uma sociedade racista desde a sua fundação.

Durval agora é parte de uma estatística macabra que, de tão comum, integra a paisagem de nossa sociedade. Em 2019 (último dado disponmível), e nos anos anteriores, do total de brasileiros que, ao longo daquele ano, saíram de casa para morrer, 77% eram negros. No gráfico, a proporção por Estado. Em Alagoas, apenas 1% dos cidadãos que sucumbiram, vítimas de morte violenta em 2019, não eram negros.

“Pelo menos desde a década de 1980, quando as taxas de homicídios começam a crescer no país, vê-se também crescer os homicídios entre a população negra, especialmente na sua parcela mais jovem. Embora o caráter racial da violência letal tenha demorado a ter presença constante nos estudos mais gerais da violência, as organizações que compõem o movimento negro há décadas tematizam essa questão, nomeando-as de diferentes modos, conforme apontado por Ramos (2021): discriminação racial (1978-1988), violência racial (1989-2006) e genocídio negro (2007-2018). Nesse sentido, a desigualdade racial se perpetua nos indicadores sociais da violência ao longo do tempo e parece não dar sinais de melhora, mesmo quando os números mais gerais melhoram”, diz o último Atlas de Violência.

*Cristiano Romero é diretor-adjunto de redação 

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/coluna/o-genocidio-negro.ghtml

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