CIDADE SÃ, MENTE SÃ?

Urbanização precária afeta saúde mental
Foto: reprodução | Revista Piauí
Foto: reprodução | Revista Piauí

Carlos Leite, Hermano Tavares e Paulo Saldiva

As cidades surgiram da necessidade de sobrevivência da espécie humana. Em regiões onde o modo de vida de nossos antepassados caçadores/coletores não era possível, tornou-se imperioso obter alimentos por meio de técnicas agropecuárias. O aumento da produção de nutrientes permitiu o crescimento e a fixação da população humana em cidades. 

A convivência próxima de um número maior de pessoas – ou seja, a vida coletiva – permitiu gradativamente todos os tipos de trocas e o desenvolvimento de tudo o que conhecemos: instituições, democracia, artes, ciência, ensino, inovação etc. As cidades talvez sejam a maior invenção humana – e vieram para ficar. Em 1800, menos de 10% da população do planeta morava nelas; já no início deste século um pouco mais da metade (55%) as habitam. Somos agora um planeta urbano. No Brasil, mais de 85% da população vive nas cidades.

Porém, junto com as aglomerações vieram o saneamento precário e a proliferação de patógenos que trouxeram consigo o adoecimento. Talvez seja válido dizer que Logos e Páthos caminham de braços dados pelas ruas das cidades mundo afora. 

Ao longo da história, as cidades superaram crises monumentais, como pestes, guerras e mudanças climáticas. No entanto, a urbanização acelerada das últimas décadas acarretou novos desafios. Nas metrópoles do chamado Sul Global – onde ocorreu uma “explosão de urbanização” em pouco tempo, ao contrário dos países do Norte, onde as cidades levaram séculos a evoluir gradativamente – a distribuição desigual das infraestruturas urbanas, dos equipamentos e serviços públicos, das áreas verdes e de lazer, o excesso de trânsito, poluição e ilhas de calor, a falta de moradia digna para milhões de pessoas e, em especial, a existência de favelas com condições precárias de vida, áreas propensas a inundações e deslizamentos, representam evidentes ameaças à saúde humana. 

Nesse contexto, a cidade é o resultado de uma complexa interação entre governança, ambientes urbanos físicos, sociais e econômicos, tendo como protagonista a biologia dos seus habitantes. De fato, segmentos populacionais menos privilegiados, que ocupam, em sua maioria, as periferias urbanas combinam um ambiente mais hostil (moradia precária, mau saneamento, maior exposição à poluição do ar e risco de doenças infecciosas) com mais comorbidades, deficiência nutricional, menor acesso à informação, à educação e, sem dúvida, à saúde em si – não apenas física como também mental.Trata-se de demanda social urgente, pois estima-se que cerca de 17 milhões de pessoas, 8% da população brasileira, residam em favelas, e o déficit habitacional no país seja de aproximadamente 5,8 milhões de moradias (o equivalente a 18,5 milhões de pessoas, segundo dados da Fundação João Pinheiro.

No Brasil, as doenças mentais são o terceiro maior conjunto de morbidades a pesar na sociedade, atrás apenas das doenças cardiovasculares e oncológicas, e o primeiro a subtrair tempo de vida produtiva entre os indivíduos situados na faixa dos 5 aos 15 anos de idade. Um estudo epidemiológico conduzido na região metropolitana de São Paulo mostra que aproximadamente 40% da população urbana preencheu critérios para ao menos um diagnóstico psiquiátrico ao longo da vida, 30% para um transtorno mental nos últimos 12 meses, e 10% necessitavam de atenção psiquiátrica imediata. As condições mais comumente encontradas foram transtornos ansiosos (20%), depressão e outros transtornos do humor (11%), transtorno do controle do impulso e abuso de substâncias como álcool, tabaco e drogas (4% cada). Exposição ao ambiente urbano e privação social foram associados como fatores de risco para todas as condições mentais, particularmente para os transtornos do impulso, manifestação psiquiátrica na infância e adolescência e para os transtornos associados ao abuso de substâncias. Entre os mais afetados, sobressaíram as mulheres e homens migrantes que viviam nas regiões metropolitanas mais pobres e vulneráveis, conforme pesquisa sobre transtornos mentais nas megacidades.

A pandemia de Covid, com a disrupção das rotinas de trabalho e de relacionamentos e o confinamento prolongado que trouxe visibilidade à questão da saúde mental, apenas agravou uma condição que já se encontrava em curso, antes do seu advento. Dentre os diversos problemas que as comunidades que vivem nas favelas enfrentam, há a descontinuidade de ações e serviços de atenção psicossocial. Sabe-se também que as relações entre classes sociais e gêneros têm associação com a saúde mental, demonstradas pelas arbitrariedade e obediência de um grupo por outro. 

Nas favelas, outra questão que se impõe é a da violência urbana. Um estudo epidemiológico sobre o tema mostrou elevada exposição da população a eventos traumáticos (86%), dos quais 11% apresentariam risco para desenvolvimento de um transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), sendo que as mulheres teriam um risco três vezes maior do que homens nesse aspecto. Chama atenção no estudo, o fato que 35% dos casos identificados de TEPT foram desencadeados pela perda inesperada de um ente querido e 40% devido à violência interpessoal.

Um outro estudo de natureza qualitativa soma a esse panorama, já desolador, o elemento da coerção social. Em muitas dessas comunidades, o poder do arbítrio e o uso da violência como instrumento de controle social, funções atribuídas ao Estado, são complementados – quando não completamente substituídos – pelas sociedades dedicadas ao tráfico de drogas e o crime organizado. Tais sociedades, normalmente designadas como “o tráfico”, podem ser acionadas para resolver até mesmo pendências entre vizinhos ou providenciar repressão à violência doméstica. Essa atuação, entretanto, vem a um alto custo, através da lei do silêncio imposta pelos traficantes e dos embates com as forças policiais que colhem recorrentemente toda a comunidade em um literal fogo cruzado. Cria-se uma dinâmica perversa, na qual todos os membros do território sofrem os efeitos da violência, mas são impedidos de compartilhá-los com profissionais de saúde e outras pessoas genuinamente interessadas em ajudar porque não pertencem à comunidade. Em uma complementaridade pungente ao relato mais técnico do levantamento epidemiológico, o estudo qualitativo dá voz ao sofrimento principalmente de mães, esposas e cuidadoras em geral que se sentem impotentes diante da perda de um ente querido.

Contudo, o ambiente urbano desafia a saúde mental para além dos seus aspectos sociais, envolvendo questões físicas e materiais como a poluição ambiental e sonora; o espraiamento das cidades e a necessidade de longos períodos de deslocamento de casa para o trabalho e vice-versa; e, ainda, a progressiva substituição da paisagem natural pela chamada “selva de concreto”. No caso dos longos deslocamentos diários casa-trabalho-casa, eles podem ser agravados quando, por força da baixa remuneração, a população mais vulnerável tem que assumir dois ou mais empregos para garantir uma renda condizente. Isso se traduzirá em mais horas de afastamento do domicílio, da família e dos filhos, com maior sofrimento para mulheres e crianças. Os pequenos, necessitados de uma presença parental mais efetiva, crescerão no ambiente adverso, com pouca supervisão, disso resultando, entre outros problemas, um reduzido aproveitamento escolar, evasão e baixa qualificação – perpetuando assim tal ciclo negativo. A evolução dos transtornos mentais reforça a percepção da relevância do amparo à infância como o meio mais efetivo de prevenção desses males. Metade desses transtornos identificados em adultos tiveram seu início antes dos 15 anos de idade – e a maioria começa antes dos 20 anos. Não por acaso, os principais fatores de risco para os transtornos ansiosos, depressão e queixa somáticas associadas são um conjunto de variáveis que basicamente expressam vulnerabilidade social e baixo status socioeconômico.

O esforço, porém, para o resgate da sanidade mental no contexto urbano transcende os limites da saúde e da epidemiologia. Ele reclama um envolvimento interdisciplinar que envolva campanhas de sensibilização para o tema, redução do estigma associado à saúde mental, treinamento para reconhecimento e encaminhamento precoce ao tratamento, políticas sociais de amparo aos vulneráveis, reconfiguração dos espaços urbanos para viabilização de um transporte público efetivo e redução do deslocamento. É verdade que a colheita dos benefícios coletivos dessas iniciativas exige tempo, porém menos do que se imagina – cerca de quinze anos. Não fosse por outro motivo, a certeza de que as futuras gerações sofreriam menos já seria mais do que suficiente para a implementação de políticas capazes de transformar o cenário atual dessa questão de saúde pública. O diálogo entre planejamento das cidades e os setores da saúde é, portanto, uma necessidade incontornável. 

Nesse sentido, os programas do urbanismo social podem ser instrumento poderoso. Isso porque se trata de uma metodologia de atuação nos territórios de maior vulnerabilidade social que orienta transformações físicas e sociais integradas, constituídas com base na participação comunitária organizada e na governança compartilhada. Consagrado em Medellín, Colômbia, desde 2003, e referenciado no Programa Favela-Bairro, realizado, de forma pioneira, no Rio de Janeiro na década de 1990, o urbanismo social é um modelo que pode e deve ganhar maior robustez nas cidades. Ou seja, urge otimizar as valiosas metodologias do urbanismo social para além de seus focos essenciais – urbanização do território, promoção de infraestruturas urbanas, habitação social, equipamentos e serviços públicos, mobilidade etc. Os Planos Integrados de Ação Local, instrumento essencial do urbanismo social, devem se ampliar para outras dimensões, a fim de que, integradas, tornem a vida urbana mais saudável nas periferias de nossas cidades. Sabe-se que não são apenas as intervenções físicas que transformam o território, mas o tecido social de confiança, com articulação comunitária construída na vida coletiva e no exercício cidadão. Não à toa, o sucesso de Medellín em grande parte se deve à promoção, desde o início do processo, dos espaços públicos e dos grandes equipamentos públicos onde a vida comunitária é valorizada. O resgate da vida coletiva nos espaços públicos lúdicos e interativos para as crianças e seus cuidadores no programa Mais Vida Nos Morros de Recife é outro exemplo referencial, já com resultados monitorados e avaliados em programa público de – infelizmente – rara continuidade já por três gestões municipais. 

A mente saudável demanda a vida social e a interação coletiva nos espaços públicos das cidades, formais e informais. As cidades nasceram assim; a ágora grega era seu exemplo pioneiro.

Melhorar as condições de vida dos habitantes das favelas de modo integral, considerando sempre os aspectos sociais coletivos que impõem diversos tipos de sofrimentos mentais individuais, e ampliar o direito à cidade é também promover o direito à saúde mental. Assim, reciclando a célebre citação do poeta italiano Juvenal, que no século I já pedia uma mente sã em um corpo são, cabe-nos trabalhar para promover um ambiente são de modo que mentes-corpos periféricos tenham mais condições de saúde.

Carlos Leite: Urbanista, PhD, Coordenador do Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e professor na FAU-Mackenzie

Hermano Tavares: Médico psiquiatra, é professor na Faculdade de Medicina da USP

Paulo Saldiva: Médico patologista, é coordenador do Núcleo de Saúde Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e professor na Faculdade de Medicina da USP

Artigo publicado originalmente na Revista Piauí

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