Benefício social influencia a decisão de trabalhar?

Foto: Alina Souza/Especial Palácio Piratini
Foto: Alina Souza/Especial Palácio Piratini

Em artigo publicado na imprensa brasileira, o pesquisador do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG), Luis Henrique Paiva, afirma que não existe constatação empírica que sustente a hipótese de que beneficiários de programas sociais deixem de trabalhar por receberem tais benefícios.

A suspeita de que pessoas que recebem benefícios sociais trabalhem menos ou deixem de trabalhar é uma questão internacionalmente debatida. Curiosamente, essa suspeita recai sobretudo nos benefícios contra a pobreza. No Brasil, é o caso do Bolsa Família. A hipótese de que esse programa faria as pessoas trabalharem menos (ou pararem de trabalhar) foi extensamente investigada.

O leitor vai encontrar um “survey” dessa discussão no artigo de Luis Batista de Oliveira e Sergei Soares, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, “O que se sabe sobre os efeitos das transferências de renda sobre a oferta de trabalho”). O Bolsa Família só reduziu a oferta de trabalho de crianças, mas esse era um dos seus objetivos.

No que diz respeito ao trabalho dos adultos, as pesquisas chegam a conclusões parecidas: não existe constatação empírica que sustente a hipótese de que haveria efeito preguiça causado pelo programa. Mulheres tendem a reduzir marginalmente o número de horas trabalhadas, aumentando o tempo com os filhos. Homens chegam a aumentar (também marginalmente) sua produção. Na prática, efeito nulo.

Os resultados encontrados no restante do mundo para programas do mesmo tipo são idênticos. O Professor Abhijit Banerjee (do Massachusetts Institute of Technology, MIT) e colegas analisaram dados de sete avaliações aleatorizadas de programas de transferência de renda adotados ao redor do mundo (no artigo “Debunking the Stereotype of the Lazy Welfare Recipient”). Conclusão? “Não encontramos nenhum efeito das transferências sobre a oferta de trabalho, para homens ou mulheres”.

É surpreendente que o número de estudos que procuram efeitos negativos do Bolsa Família no mercado de trabalho seja tão grande e que praticamente não tenhamos estudos voltados a investigar outros benefícios. Gastamos 12% do PIB com benefícios previdenciários (quase 25 vezes mais do que com o Bolsa Família, que custa só 0,5% do PIB) e o número de estudos sobre o impacto dessas transferências na decisão de trabalhar continua sendo ínfimo.

Buscamos preencher esse vazio ao avaliar como o acesso precoce às aposentadorias — traço marcante do sistema previdenciário brasileiro — afeta a decisão de trabalhar. Os resultados estão no artigo “O Impacto das Aposentadorias Precoces na Produção e na Produtividade dos Trabalhadores Brasileiros” (com os colegas Leonardo Rangel e Marcelo Caetano), recentemente publicado pelo Ipea.

Já sabemos que as aposentadorias precoces contribuem para gastos desproporcionalmente altos com benefícios previdenciários no Brasil; que não reduzem as desigualdades de renda ou regionais; que são concedidos em idades muito baixas (em média, aos 55 anos para homens e aos 52 para mulheres), nas quais parte significativa dos seus beneficiários ainda tem plena capacidade produtiva. Agora, temos evidências de que as aposentadorias precoces estão associadas a uma forte redução da oferta de trabalho e a uma queda na produtividade, entre os que continuam trabalhando.

Antes de apresentar os resultados em maior detalhe, cabe notar que não estamos tratando de pessoas idosas. Cerca de 30% dos brasileiros com 59 anos recebem aposentadoria, portanto, abaixo da idade de serem considerados idosos. Além disso, em nosso estudo definimos como “aposentados precoces” beneficiários com idade entre 53 e 59 anos (se homem) e 50 e 54 anos (se mulher). Idades produtivas, portanto. Caberia também lembrar que esses beneficiários poderiam continuar trabalhando normalmente, já que a aposentadoria, no Brasil, é compatível com renda do trabalho. Se na iniciativa privada, poderiam inclusive permanecer no mesmo emprego.

Quais as conclusões? Primeiramente, que o perfil dos aposentados precoces é menos vulnerável do que o dos que não conseguiram se aposentar precocemente, nas mesmas faixas etárias. Os aposentados precoces têm maior percentual de homens, brancos, chefes de família, pessoas com maior acesso a serviços públicos e moradores do Sul e Sudeste em relação aos não-aposentados precoces.

Portanto, é falsa a afirmação de que a aposentadoria por tempo de contribuição protege os mais pobres, que começaram a trabalhar cedo. Os mais pobres, por passar longos períodos na informalidade, aposentam-se por idade ou requerem um benefício assistencial aos 65 anos. A aposentadoria precoce alcança um grupo com trajetória contributiva consistente, que teve (se muito) curtos períodos no desemprego ou na informalidade. Um grupo relativamente mais produtivo da nossa força de trabalho.

Até por isso, a segunda conclusão é preocupante. A taxa de ocupação (como percentual da população do grupo) entre os aposentados precoces é inferior a 40%. Nossas estimativas sugerem que, sem as aposentadorias precoces, a taxa de ocupação nesse grupo seria superior a 80%.

A terceira conclusão também é preocupante. Os aposentados precoces que continuam participando do mercado de trabalho têm um salário 10% inferior ao que seria esperado dadas suas características individuais (como escolaridade, por exemplo). Pode-se supor que uma fração dos aposentados precoces passa a ocupar postos de menor produtividade, em trabalhos que têm como objetivo apenas complementar a renda da aposentadoria.

Em suma, quem tem acesso às aposentadorias precoces é um grupo relativamente mais produtivo da nossa força de trabalho. Após se aposentar precocemente, esse grupo passa a trabalhar muito menos do que o esperado e, entre aqueles que continuam trabalhando, observa-se ainda uma queda de produtividade.

Estimativas preliminares sugerem que o PIB brasileiro seria 0,6% maior do que é, não fossem as aposentadorias precoces. Com o envelhecimento da população, esse número aumentará exponencialmente nas próximas décadas, se nada for feito.

Temos, assim, uma razão a mais para fazer a reforma da Previdência Social. Já sabíamos que a reforma é necessária para melhorar a situação fiscal de longo prazo e por questões de justiça distributiva. Agora também sabemos que a reforma previdenciária é necessária porque o Brasil não pode se dar ao luxo de retirar do mercado, de forma precoce, a parte relativamente mais produtiva da nossa força de trabalho.

Por Luis Henrique Paiva, pesquisador associado do IPC-IG, Pesquisador do Ipea, gestor governamental do Ministério do Planejamento e secretário do Programa Bolsa Família (2012-2015)

Artigo originalmente publicado no jornal “Valor Econômico” em 23 de agosto de 2016.


Fonte: nacoesunidas.org

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