Marco Aurélio Nogueira: O Leviatã em coma

Basta a ameaça a um interesse poderoso para que o STF trema e passe a flertar com o casuísmo

Sociedades são arranjos complexos e dinâmicos. Têm suas contradições, suas diferenças, suas forças internas. Movem-se em função delas. São, como diz uma máxima, o “mundos dos homens” e mulheres.

Sociedades conhecem altos e baixos, crises, fases de bem-estar e felicidade e fases de fracasso e incerteza, em que o futuro parece solto no ar. Há períodos em que o arranjo desanda de tal jeito que se generaliza a sensação de que a tarefa de aprumá-lo não poderá ser cumprida. Esses são períodos de confusão e turbulência, de desânimo cívico, indignação e revolta.

É onde está hoje o Brasil. Numa estrada repleta de curvas, depois das quais não se antevê nenhum belvedere.

A Lava Jato encurralou a corrupção instalada no Estado. Tem prendido e condenado políticos, empresários e intermediários poderosos, fato que acende muitas esperanças. Mas há ao mesmo tempo judicialização excessiva e a elite togada não se mostra qualificada para dar conta do recado.

O assassinato da vereadora Marielle Franco foi um atentado contra a democracia e contra os direitos humanos. Mas causou uma indignação social tão grande que pode ter inaugurado uma nova situação. Não há escalada autoritária no País, em que pese a violência se reproduzir.

O problema é o que se vê e sente. Os cidadãos só conseguem vislumbrar escombros, que recobrem conquistas políticas e sociais duramente alcançadas nos anos mais “heroicos”, em que a maioria caminhava numa mesma direção e acreditava nas mesmas coisas.

Olham para o Estado, esse guardião da comunidade, e ficam ainda mais ressabiados e inseguros. O Leviatã simplesmente parece em coma. Da Presidência da República ao Legislativo, passando pelo Judiciário, sucede-se o mesmo quadro: cabeças batendo entre si, mediocridade generalizada, reações adaptativas e defensivas, uma recorrente demonstração de que ninguém sabe bem que direção tomar.

A crise do Supremo Tribunal Federal (STF) é o indicador mais recente do quanto a comunidade política nacional está em condição de sofrimento. Não é preciso analisar as minúcias do problema para ver a gravidade da situação. Afinal, estão ali sentadas 11 sumidades jurídicas, intérpretes autorizados da Constituição. Esse panteão de figuras consideradas superiores, porém, não consegue entender-se. Dissonâncias ultrapassam o razoável, o individual sobrepõe-se ao institucional, as decisões são erráticas, a tal ponto que a sociedade fica a se perguntar se os magistrados não seriam somente personagens de um drama que não conseguem decifrar. Em vez de paz e consenso, o STF produz atrito, fogo e fumaça. Basta a ameaça a um interesse poderoso para que a Corte trema de cima a baixo e passe a flertar com o casuísmo, ameaçando modificar jurisprudências e entendimentos procedimentais ainda frescos de tinta, como é o caso da prisão em segunda instância. A oscilação de alguns ministros deixa transparecer que alguma força externa pesa nas avaliações.

Os cidadãos afastam-se, assim, dos juízes. Assistem a bate-bocas pesadíssimos, cheios de ofensas verbais e agressões. O ministro Luís Roberto Barroso disse a Gilmar Mendes: “Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia. Vossa excelência é uma desonra para todos nós, um temperamento agressivo, grosseiro, rude. Sozinho desmoraliza o tribunal”. E se Barroso estiver certo?

Agindo nos bastidores, ministros forçaram a presidente da Corte, Cármen Lúcia, a levar a plenário o julgamento de um habeas corpus (HC) preventivo para livrar Lula da prisão após decisão em segunda instância. Na quinta-feira, 22, o Tribunal decidiu aceitar o HC, mas não conseguiu apreciar seu mérito, transferindo a decisão para 4 de abril e aprovando uma liminar que suspende uma eventual prisão de Lula. Deixou tudo em suspenso, criando mais desconfiança e sensação de parcialidade.

Assustados, os cidadãos procuram os partidos, que deveriam dedicar-se à valorização da política, mas apenas conseguem encontrar entes desnervados, que só fazem lustrar os próprios sapatos. Pensam em recorrer aos políticos e se deparam com pessoas que preferem semear ventos para colher tempestades, na vã ilusão de que depois delas a bonança prevalecerá.

Chegam, então, à sociedade civil, esse setor que carreia tantas esperanças, mas, com o tempo, foi sendo estressada pelos particularismos – partidários, ideológicos, identitários – e pela guerra de “narrativas”. Impulsionada por redes sociais destemperadas, não consegue articular-se e tem pouca incidência consistente na vida dos cidadãos, da cultura, da política, do País.

Atingido esse ponto, os cidadãos perguntam: o que fazer?

Diz-se que é nos piores momentos que aparecem as melhores ideias. Foi assim durante os anos da ditadura, quando, por volta de 1975, ao abrir-se a “transição lenta, gradual e segura”, as nuvens se carregaram a ponto de ameaçar o País com uma tormenta bíblica. Foi assim na luta para conter a inflação, introduzir maior racionalidade na administração pública e adotar programas de transferência de renda e assistência social, durante os governos de FHC e Lula. Nesses momentos, o País como que se re-uniu e avançou.

Não dá para dizer que o mesmo acontecerá hoje. Faltam-nos alguns ingredientes básicos – lideranças, ideias, um pacto de convivência, unidade democrática. E não há aquela fagulha mágica que incendeia mentes e corações.

É preciso, porém, resistir. Buscar um eixo, viver a hora da verdade. O coma do Leviatã não pode calcificar as esperanças. Com boa vontade e empenho, os democratas – liberais, de centro, socialistas, de esquerda – têm como atuar de forma “anticíclica” e promover uma articulação que pavimente outro caminho. As instituições estão aí, prontas para ser recuperadas. E a política, acima de tudo, é uma atividade vocacionada para inventar saídas. Mesmo quando tudo parece conspirar contra.

 


PD #49 - Marco Aurélio Nogueira: O centro, a esquerda democrática e o novo como fetiche

Faltando um ano para as eleições de 2018, ainda é cedo para prognósticos certeiros. O palco está repleto de candidatos e pré-candidatos, pesquisas são feitas para avaliar o poder de fogo de cada um deles, mas o que prevalece mesmo são a dúvida e o vazio propositivo. Estão confusos os políticos e os formadores de opinião, perplexos e desconfiados os cidadãos, ninguém parece contar com um estoque de ideias para fazer o país avançar.

A campanha vai indo para as ruas, naquela fase de balões de ensaio, declarações genéricas e olho atento nas pesquisas. Mas  não há como prever o que acontecerá nos próximos meses.

Não dá para saber nem sequer se os que lideram as sondagens serão candidatos ou conseguirão manter o pique nos meses subsequentes. Lula e Bolsonaro têm seus problemas e dificulda- des, mas vão fazendo de conta que não ligam. São os que mais investem em caravanas e comícios, porque serão os que mais perderão se não puderem concorrer ou se murcharem quando estiverem perto da praia.

Uma boa prova do cenário embaçado em que se vive são as escaramuças e a bateção de cabeças dos partidos frente  ao governo Temer. Ora juntam-se contra ele, atiçados por redes e mídias, ora o elogiam como “campeão das reformas”. Não esca- pam dessa flutuação nem sequer os partidos que lhe dão sustentação,  como  o  PMDB  e  o  PSDB,  este  último  principalmente.

O “centrão”, com isso, se fortalece, embora não possa ser tido como um vetor que organize o que quer que seja.

O PT fica fora dessa constatação. Mas não escapa da esquizofrenia geral. Está na muda, como se diz, mastigando suas próprias contradições e sendo pautado por Lula e pelo lulismo. Agora, deu para admitir que o “golpe” contra Dilma contou com o apoio da maioria da população e se dispõe a fazer alianças com “golpistas” para tentar recuperar os votos perdidos. Vai assim,  dando  uma no cravo, outra na ferradura, soltando névoa sobre o futuro.

O fato é que não há um partido, ou uma coligação, que lidere e coordene, ainda que os maiores pretendam estar na direção. Em consequência, Temer apanha de todo lado, se recolhe, se finge de morto, mas segue no posto. Dentro de seu governo, porém, reina o inferno. Num dia, um ministro boquirroto fala uma bobagem, em outro uma ministra pisa na bola de forma grotesca, no terceiro dia há declarações desprovidas de sentido. Chega a ser difícil dizer que se tem um governo, ainda que se tenha muita oposição.

A disputa pela sucessão de Temer não só está aberta, como espalha veneno e toxinas na vida política. Como há pouca coorde- nação e como os democratas parecem perdidos em meio ao tiro- teio geral, ficam todos com a sensação de que está tudo dominado e pouco pode ser feito, com o que o carro segue em marcha iner- cial, a população aprofunda sua indiferença e a política vai-se embriagando com seus próprios dejetos.

É um cenário estranho, porque embaixo, no mundo da vida real, as coisas parecem “normais”, como se as coisas “lá de cima” não atrapalhassem. Há muita raiva e decepção, mas pouca disposição de luta, seja essa luta o protesto mais contundente, seja ela a preocupação em se preparar melhor para a disputa que se avizinha.

Passam-se os dias, os escândalos se sucedem, Temer segue na defensiva, o marasmo geral ganha corpo, mas não surge uma iniciativa que se disponha a botar os pingos nos iis e iluminar a estrada.

Os novos e os outsiders

Com a campanha eleitoral encorpando e começando a se  fixar no horizonte das ruas e dos palácios, tudo pode ganhar outra qualidade. No momento, porém, o que há mesmo é muito fogo amigo e fumaça. Ninguém tem como prever o que acontecerá nos próximos meses.

Prova do momento de indefinições e jogos de cena é a sofreguidão com que se sai em busca de um nome que simbolize o “novo” em política. Dia sim dia não há quem procure fabricar um nome ad hoc. O campeão do segundo semestre de 2017 foi Luciano Huck, cortejado por muitos. É o novo que parece caído do céu, confortável, mas que levanta mais suspeitas que adesões entusiasmadas. Ele, ao menos, no artigo em que no final de novembro declarou não pretender ser candidato, mostrou cautela suficiente   e consistência, contribuindo para manter viva a ideia da articulação democrática e da renovação política. Pode ser que volte a ser cogitado, mas por enquanto está na posição de colaborador.

João Dória também tentou ocupar esse espaço, impulsionado pela vitória nas eleições municipais do ano passado, mas recuou depois de ter sua gestão mal avaliada pelos paulistanos e de ter recebido mais vaias que aplausos em sua peregrinação nacional. Há Meireles, claro, correndo por fora, mas com apetite. Sem falar de Joaquim Barbosa, ou de João Amoêdo. Até Marina Silva trafega por essa pista.

Há também o novo, representado por Jair Bolsonaro, que exibe certo fôlego mas tem muitíssimos flancos desguarnecidos. É novo porque vocaliza a raiva social contra tudo o que está aí, a come- çar dos políticos, porque oferece a “autoridade” que vários grupos acreditam faltar no país, porque vende a “firmeza” e a “convicção” tão apreciadas pela direita extremada, não democrática, porque  se apresenta como não tendo vínculos, laços e compromissos com a classe política. Mas Bolsonaro é um novo velho, chamuscado pelos seguidos mandatos parlamentares e pela mesma inoperân- cia parlamentar que ele acusa nos demais. É um novo que oferece comida requentada, que ele até agora tem conseguido esconder.    O mais provável é que desidrate quando a corrida eleitoral come- çar para valer. Mas nunca se sabe.

Muitos dos que incentivam candidaturas desse tipo agem  como se acreditassem na existência de um fulano “puro” ou de alguém com maturidade inata e densidade suficiente para conquistar o povo, assumir o governo federal e fazer algo “diferente”. Nenhuma das figuras que jogam e se jogam na mesa passaria pelo crivo da política tal como ela é, com seus defeitos e suas virtudes, ou seja, com suas características próprias. Candi- datos não são inventados a bel-prazer, e quando o são (Dilma, por exemplo) o resultado quase nunca é bom.

Candidatos inventados são como ilusões óticas. Mostram coisas que não vemos, que não existem ou estão distorcidas.  Criam mil sensações, derivadas da “astúcia” das imagens, e em algum ponto da curva se desfazem.

Dirão os estrategistas que algo precisa ser feito para chamar os cidadãos de volta para a política, para, em suma, compensar a perda brutal de legitimidade dos políticos e da própria política como tal. Parecem acreditar na improvisação e na força magnética que teria uma celebridade, uma estrela oculta, uma lua nova criada às pressas nas pranchetas dos marqueteiros. O pior é que, com seus inventos, vão sugestionando os caciques partidários e dando a eles a ilusão de que algo pode ser entronizado de dentro para fora na política prática.

Oferecem, como facilitadora, a ideia de que é necessário encontrar o mais perfeito “antiLula”, ou o “antiBolsonaro”, demônios que precisam ser excomungados. Querem que o “novo” seja um elemento de polarização. Os mais radicais vibram com a perspectiva de que o ex-presidente seja preso ou impedido de disputar as eleições. Pintam-no como um “populista” irresponsável, mas não conseguem vislumbrar como enfrentá-lo numa disputa eleitoral, que é onde os políticos devem ser julgados. O mote é dado pela perspectiva de se encontrar um quadro no qual um “nós” impre- ciso seja erguido como um dique contra Lula. É uma simplificação grosseira, que só faz aumentar o prestígio dele.

O fator Lula, por sua vez, ajuda a que se forjem polarizações a partir do outro lado da praça, que também tem seus artesãos e seus bruxos de plantão. A ideia é criar um cenário em que Lula ocuparia o espaço principal, ora impulsionando uma dinâmica Lula contra “eles”, ora apresentando o ex-presidente como “vítima” e o “único que pode salvar o país”. Torce-se para que as múltiplas pequenas polarizações artificiais desaguem numa grande polari- zação Lula x Bolsonaro, com a qual se imagina acomodar toda a complexa sociedade brasileira. Os esquemas maniqueístas simplórios tentam crescer mobilizando a seu favor a aparência retórica do “radicalismo”.

É um quadro trágico, que ergue uma interrogação diante de 2018 e em nada ajuda a que se pense o país com olhos generosos. Ao se afastar tanto assim das condições de possibilidade de uma competi- ção eleitoral que honre o nome da democracia, os políticos só fazem aumentar o descrédito de que gozam na sociedade. Não percebem isso, porque sua arrogância os cega. Mas é o que acontece.

A ideia do novo em política é sempre controvertida e está sujeita a muitas ponderações. Novo ou novidade? Algo novo, em política, não se apoia em currículo, fama ou visibilidade, mas em ideias, propostas e articulação, de modo inclusive a que se façam as devidas ligações com o que há de “velho” na vida.

Os outsiders sofrem vetos generalizados e, em geral, têm vida curta. Dificilmente dão certo, até porque não se caracterizam por possuir dotes organizadores expressivos, conhecimento  dos ritmos da vida pública e paciência para contornar obstáculos, estender-se em negociações demoradas, engolir sapos e cascáveis. Ou seja, são estranhos no ninho e tendem a ser forçados a um aprendizado longo. A ideia de carreira política cabe aqui: não se começa por cima, mas por baixo e pelas margens. Não é preciso ter sido vereador ou deputado para postular uma candidatura presidencial, mas o manual do bom-senso diz que tal experiência funciona como uma espécie de vestibular, de preparatório, um recurso que ajudará mais à frente.

Outsiders dificilmente entram de forma triunfal no primeiro plano da política. Há exceções, claro. Lula não fez carreira e era  um outsider quando enfrentou Collor, em 1989, outro que só não era um estranho no ninho porque vinha de família entranhada na política. Lula talvez tenha perdido justamente por ser um outsider. Tentou ser deputado, foi eleito mas nada fez com o mandato, foi um fiasco. Seu vestibular foi a vida sindical. Dilma foi inventada por Lula, mas não era uma estranha no ninho. Não tinha talentos especiais, nem sequer currículo ou visibilidade, mas esteve sempre nas proximidades do poder, conhecia alguns dos caminhos.

Ah, mas há Emmanuel Macron! Nada disso. Ele pisou num longo terreno antes de se lançar candidato. Foi ministro, conviveu com políticos e governos, aprendeu um monte de coisas. Venceu não porque era “novo”, mas porque soube perceber certos sinais emitidos pela vida social francesa e os incorporou a uma lingua- gem política adequada, desconstruindo os grandes partidos e ligando-se aos jovens e aos bolsões de novidade socioeconômica que passaram a pulsar com mais força nas últimas décadas.

Os “novos” são um fetiche recorrente. Encantam e iludem. Mantêm o público enfeitiçado, mas quando falham desencadeiam uma imensa frustração, que faz com que sejam rapidamente abandonados. A política prática é mais forte do que eles.

Uma “nova política” só tem como se viabilizar se estiver de algum modo articulada com o que existe de “política tradicional”. Ela é que poderá dar aos que chegam agora o projeto, o arco de forças, o potencial de crescimento. As pontes.

Hoje, no Brasil, são muitos os que estão sinceramente em busca de alguma opção que tenha brilho e força suficientes para furar essa verdadeira muralha da China que converteu a política nacional em um recinto blindado que protege suspeitos, investi- gados, gente pouco qualificada, mas que tem o  mapa nas mãos.  É um recinto que tritura, enquadra e pasteuriza tudo o que nele respira. Estamos mesmos necessitados de uma articulação que impulsione a renovação política e um programa mais ousado de governo nacional. Implodir essa muralha é sonho de muitos brasileiros, cansados de ver sempre os mesmos fazer sempre as mesmas coisas, indiferentes seja ao clamor da massa pobre e excluída, seja às expectativas políticas, morais e culturais dos setores mais “modernos”.

Erguer pontes que tragam a “nova sociedade” para a política é uma tarefa essencial nos dias atuais. Afinal, o Brasil  tornou-se um arquipélago composto por ilhas que vão sendo multiplicadas pela “vida líquida”. Há muitas multidões em ação, à procura de opções, interessadas em limpar Brasília dos “maus elementos”, da corrupção, da indiferença social. É preciso dar um norte político   a essas multidões.

Este Brasil real cansou de polarizações vazias de substância e dedicadas tão somente a disputas de poder. A rigor, ninguém se mostra interessado nas  rixas  entre  PT  e  PSDB.  Muitos  ainda serão levados por elas, que organizaram a política nas últimas décadas e se converteram num vício difícil de largar. Mas  a  maioria – e seguramente os habitantes dos nichos de vida líquida que crescem sem parar – querem algo mais: querem  uma  nova  proposta, uma nova filosofia política e um novo  campo  democrático que possa funcionar de fato como um  polo  generoso,  refratário a regressões, aberto a todos, plural e dinâmico.

Novos e outsiders não podem ser tidos como fatores capazes de viabilizar a articulação democrática de que o país necessita. Devem ser bem-vindos, mas precisam descer ao chão duro da política. Ou farão parte da articulação necessária ou pouco significarão. Poderão ajudar muito, desde que emprestem sua visibilidade, suas ideias e seus movimentos ao difícil trabalho de construção da fuselagem de um campo político que se converta num efetivo polo de poder democrático.

Suicídio em banho-maria
No interior dos partidos brasileiros atuais, de vários deles, a bateção de cabeças funciona como estacas espetadas no coração: ferem e enfraquecem as organizações, em vez de revigorá-las.

Travadas sem densidade programática e ideológica, as lutas internas não produzem valor ou melhores agregações. O que deveria ser um choque de arejamento e diversificação, ao final do qual se atingiria uma unidade de melhor qualidade, acaba por se reduzir a meras brigas de correntes. Lutas por poder, pura e simples- mente. Em vez de se purificarem internamente, as organizações são contaminadas por venenos e toxinas que as debilitam.

O PSDB é o caso exemplar. O partido, que já foi um dos grandes artífices da democratização brasileira, mergulhou na escuridão profunda. Encontra-se sem rumos, entregue a caciques e a lideranças despreocupadas  com  o  futuro  da  própria  legenda.  Os muitos caciques pelejam entre si e deixam de lado o funda- mental, comprometendo seriamente a imagem e a mitologia parti- dária. O PSDB engasga, sufoca e ameaça se dissolver.

Por erros acumulados, pela falta de uma direção empreende- dora, pelo ônus derivado das estripulias de Aécio Neves (sobretudo a partir das denúncias dos irmãos Batista), o partido ingres- sou na pior luta interna de sua história, fase na qual ele vai se inviabilizando politicamente. Agora, ficou difícil que os tucanos continuem a se apresentar como alternativa ao PT e ao PMDB. Se nada for feito de vigoroso para promover o reencontro do partido com suas tradições e seu perfil socialdemocrata, não haverá força que impulsione o tucanato. Ele será deslocado para as margens.

Sem o PSDB em boas condições, e com os demais partidos enfraquecidos como estão, diminuem as chances de que se possa ter, em 2018, um polo democrático que impulsione um bom e amplo debate e articule uma saída mais razoável para o  país. Uma megapolarização entre o “novo” e o “velho” poderá ganhar contornos catastróficos.

Com a degradação do PSDB, perdem sobretudo os tucanos. Mas perde também a democracia como um todo. Sistemas políticos que assistem à decomposição de seus entes estruturadores ficam mais fracos e com menor capacidade de articulação. O país fica sem eixo e de certo modo menos democrático. Passa-se o mesmo com o enfraquecimento do PT.

O PSDB tem uma história. Como toda história, teve seus altos  e baixos mas, vista em bloco, foi até aqui mais positiva que negativa. O partido definiu uma identidade e acumulou alguns trunfos importantes, o que fornece um patrimônio que poderá ajudá-lo a recuperar o fôlego e a sensatez, expurgando o que deve ser expurgado e formulando uma nova e mais substantiva agenda.

Polarizações destrutivas
PSDB em crise, PT recolhido, PMDB às voltas com as dificuldades de Temer, partidos em geral excitados com a proximidade de 2018. Todos começam a fazer cálculos, tendo em mente a conquista dos eleitores. O troca-troca de legendas  combina-se  com a abertura da temporada de caça aos “melhores nomes” e a busca da posição ideal para apoiar esse ou aquele candidato.

O estoque de artefatos polarizadores é grande: avanço ou retrocesso, reforma ou conservação, progresso ou reação, populismo ou responsabilidade, desenvolvimentismo ou neoliberalismo. Não faltam, evidentemente, os conhecidos esquerda x direita e PT x PSDB, ora em versões repaginadas ora no formato anquilosado de sempre.

A pergunta que ninguém faz é: a quem interessa a reposição dessas polarizações? Qual delas pode expressar os dilemas atuais do país e organizar os interesses fundamentais dos cidadãos?

O ponto comum dessas construções é a recusa ao diálogo, a reiteração de divisões improdutivas, a falta de uma articulação política que ofereça uma perspectiva de futuro para os brasileiros e modernize o país. Para dar vida a isso, criam-se campos ideoló- gicos antípodas, soltos no ar, alimentados por frases de efeito e sem pé na realidade. Parte-se de uma visão de que a sociedade é mais dividida do que se vê, e com isso criam-se divisões por sobre divisões, agravando ainda mais o quadro.

Polarizações não devem ser temidas. São intrínsecas ao jogo político e ganham peso quanto mais a situação social é complexa, quanto mais a agenda nacional é difícil e desafiadora,  quanto mais o poder se mostra disponível.

Se não há consenso sobre quase nada, por que na política os polos não cresceriam? Se os próprios partidos não conseguem preservar seu molejo democrático e sua capacidade de alcançar uma autêntica “unidade dos distintos”, que autoridade teriam  para condenar as polarizações?

O problema surge quando as polarizações fogem do controle e se artificializam, traduzindo-se em tensões insuperáveis, rupturas e intolerância. Podem assim se tornar crônicas, levando ao infinito a dialética amigo-inimigo e corroendo as bases mesmas de um consenso mínimo. Com isso, o que poderia haver de virtude nas polarizações se traduz por inteiro em seu contrário. Todos perdem.

Com mais polarizações, aumenta a tentação de enquadrar  tudo em esquemas binários tipo esquerda x direita.  Com  isso, pela própria dinâmica da luta ideológica radicalizada, deixa-se de lado o diagnóstico em benefício da agressividade verbal, do ardor retórico, do exagero performático. Para que tenha efeito, tudo é simplificado ao extremo, vira coisa plana, rasteira.

Vai-se assim num crescendo. No topo da escalada, o convite à boçalização cívica, o empobrecimento político, o desprezo pelos adversários ou pelos que pensam diferente, tudo devidamente empacotado por convicções e propagandas que simulam soluções rápidas e radicais, facilidades e biografias heroicas. Mentiras, invencionices e mistificações ganham livre curso.

É uma “guerra” complicada, pois não são se limita aos entrechoques ideológicos. Entram na liça também as opiniões – sempre mais desenfreadas – e as identidades, que se afirmam por sobre classes, grupos de referência e partidos. Tudo devidamente  turbinado pelas redes, onde as propostas para que se criem conexões e “pontes” (bridging) são fuziladas como se estivessem a priori comprometidas com concessões inadmissíveis. É nas  redes,  aliás,  que melhor se expressa a tendência a que se hipervalorize o próprio gueto ou tribo e se menospreze tudo o que respira fora dele.

A consequência disso é a dificuldade para que se  formem maiorias razoáveis, reflexivas, sem as quais não há como se ter avanços em propostas reformadoras ou lutas por direitos. Viver  a vida como se fosse uma batalha permanente pela afirmação de identidades particulares, por exemplo, pode ser o caminho mais curto para que os preconceitos se reproduzam. O eixo virtuoso – o combate sem trégua ao preconceito explícito ou subentendido  –  cede, por falta da capacidade de produzir apoio e persuasão.

Ao se engalfinharem em confrontos artificiais ou secundários, os “guerreiros” perdem de vista aquilo a que se deve dar prioridade. Vão ajudando a produzir quantidades absurdas de informa- ção de má qualidade, saturando a agenda de proposições excludentes que nada acrescentam à construção democrática ou ao reformismo de que se necessita.

Esta modalidade inconsciente de burrice não é privilégio de nenhuma corrente política ou ideológica. É comum a todas.

Ela se mostra, à esquerda, pelas lentes do maniqueísmo e do esquematismo, que anunciam um “novo mundo” que estaria ao alcance da mão, bastando tão somente uma boa dose de intransi- gência, de espírito contestador e de “vontade política”.

O bestialógico mais à direita é seguramente muito pior. Agrega gente que não se envergonha de praticar o reacionarismo mais tosco, burilando-o com frases de efeito e justificativas pífias. São pessoas que exibem publicamente sua simplicidade argumentativa, que falam de “marxismo cultural” sem saber do que estão falando, que manipulam descaradamente alguns gigantes do pensamento crítico (Marx, Benjamin, Gramsci, Marcuse) e são incapazes de reconhecer as sutilezas da política e do debate de ideias.

Para gente desse último tipo, tudo que questiona o que está errado, tudo que canta um futuro mais justo, tudo que divulga sonhos e esperanças cabe em uma única caixinha: “comunistas”, que não somente comem criancinhas como querem infernizar a vida de todos e envenenar a alma dos viventes.

Seja qual for o ângulo a partir do qual se olhe, o fato é que aquilo que tem sido chamado de “velha política” estrebucha, mas nos seus estertores mostra força para bloquear o surgimento de uma “nova política”.

Um centro inclinado à esquerda
A agenda complexa, a falta de clareza intelectual, a excitação ideológica e a fragmentação política funcionam entre nós como engrenagens que movimentam uma máquina polarizadora.

Pouco se faz para enfrentar esse quadro desagregador, que se vai naturalizando. Fala-se muito em “centro democrático” mas ele não se materializa, com o que não se introduz mais racionalidade na competição política nem se oferecem ideias e propostas substantivas claras aos cidadãos.

A democracia alimenta-se do conflito. Polarizações não somente são inevitáveis, como ajudam a manter a temperatura política no limite do suportável e a explicitar diferenças que pulsam no terreno social.

Acontece que uma multiplicidade de polos não é uma virtude. Pode mesmo funcionar para impedir a plena manifestação dos polos “verdadeiros”, aqueles que carregam no ventre os interesses fundamentais da sociedade, as contradições principais. Divisões artificiais e pouca disposição para o diálogo terminam por criar campos ideológicos antípodas, soltos no ar, sem pé na realidade. Parte-se da ideia de que a sociedade é mais dividida do que se vê,  e com isso criam-se divisões por sobre divisões. A intolerância cresce, as tensões tornam-se insuperáveis e provocam rupturas. Esfuma-se assim o que poderia haver de virtude nas polariza- ções. O antagonismo criador esfria, sendo substituído por atritos sem perspectiva de consenso.

O Brasil dos últimos anos esteve condicionado pela polariza- ção PT vs. PSDB. Tamanha foi sua força que a sociedade se deixou encantar com o que se anunciou como sendo duas matrizes de governança e de projeto nacional. Nem petistas, nem tucanos, porém, conseguiram se firmar como forças dotadas de densidade programática e vocação hegemônica. Foram se desconstruindo ao longo do tempo, e chegaram hoje ao ponto mais baixo de sua trajetória. A sociedade, por sua vez, foi-se saturando com a reite- ração daquela polarização, roubando-lhe chances de reposição.

Polarizações podem funcionar como fatores de organização, nos quais o antagonismo qualifica o quadro geral. Nem sempre os polos estão fechados para entendimentos e composições. Podem conviver no interior de polos maiores e convergir para um patamar comum. É o segredo da unidade democrática, que é feita de soldagens dialó- gicas, e não impositivas, entre correntes distintas.

A política sofre quando não dispõe de patamares unificadores, que possibilitem o diálogo entre campos distintos. Afasta-se dos cidadãos, assiste à apresentação de propostas diversionistas e ao surgimento de candidaturas voluntaristas ou regressistas.

No Brasil atual, as forças democráticas enfrentam dificuldades para romper os círculos que estreitam sua movimentação e impedem sua reposição vigorosa na cena nacional. Precisam recusar o papel subalterno a que foram relegadas. Devem contestar os ataques da direita jurássica, confrontar a ingenuidade social e problematizar a ideia de que a solução passaria por um condottiere acima do bem e do mal, apresentando em contrapartida uma renovada ideia de país e uma agenda nacional inclusiva.

A esquerda democrática cumpre um papel nessa operação. Um “centro” sem ela terá reduzida potência reformadora e tenderá a ser hegemonizado pelo conservadorismo. Um centro democrático inteligentemente inclinado para a esquerda, por sua vez, poderá organizar uma agenda com sensibilidade social e disputar as multidões.

Uma esquerda democrática não é “inimiga do mercado”: seu anticapitalismo é realista, respeita a correlação de forças e apoia- se numa teoria social que se dedica a compreender as novas formas do capitalismo, da luta de classes, do modo de vida, do mundo do trabalho e do emprego. Seu eixo é a regulação política do sistema econômico, de modo a que se reduzam suas incon- gruências e sua capacidade de produzir desigualdades.

Mas esta esquerda aprendeu que também é preciso regular e controlar o Estado, de modo a fazê-lo atuar em consonância com as expectativas de crescimento econômico e de justiça social, sem se comprometer com políticas de gasto público desprovidas de “responsabilidade fiscal”. Incorporou os valores do liberalismo político e da democracia progressiva, com os quais defende a necessidade de um reformismo gradual aberto para a justiça social, os direitos e a modificação das estruturas sociais que produzem desigualdade.

Um centro que se componha a partir do liberalismo político precisa assimilar a generosidade  democrática e  social  da esquerda. Num país como o Brasil, aliás, somente assim poderá cumprir uma função progressista e preparar a pista  para  que  o país derrote seus piores inimigos – a desigualdade, a injustiça, o crescimento não sustentável, a corrupção  sistêmica,  o  desres- peito, as discriminações que vitimizam pobres, negros, pardos, índios, homoafetivos e mulheres.

Concebido como plataforma suprapartidária integrada por diferentes formas de pensar – um permanente compósito de conflito e consenso, não um arranjo de acomodação  e  conciliação  –,  tal  centro poderia organizar a parte mais ativa da sociedade, hoje afastada da política mas interessada em fiscalizar os governos e que necessita, por isso mesmo, das práticas e dos valores que a esquerda democrática cultua.

A construção dessa plataforma requer habilidades artesanais raras, foco no fundamental, respeito à diversidade, tolerância e sabedoria política para administrar interesses e modular o tempo. Necessita de lideranças, mas não de um líder todo-poderoso. Precisa contar com o desprendimento dos partidos, especialmente dos maiores, que costumam olhar as eleições como uma “oportuni- dade de negócios”, não como uma oportunidade política, organiza- cional. Nessa toada, movidos por suas lógicas internas, os partidos complicam a gestação de uma unidade que seria vantajosa para o país. Por isso, será preciso haver engajamento e pressão cívica, social, algo que, de resto, também precisa ser construído.

Um ataque bem concatenado terá de ser desferido contra os males e as inconsistências que afetam o país e bloqueiam seu futuro. Este deveria ser o objetivo principal dos democratas brasileiros. Se conseguirem reduzir a competição interna que os tem prejudicado e, por extensão, prejudicado a sociedade, poderão ser o aríete que derrubará as muralhas que nos atrasam e nos separam de um futuro melhor. O “centro democrático” não cairá do céu. Depende de muito empenho e determinação. Mas precisa  ser martelado desde logo, para ter chances de produzir a indispensável convicção política e social.


Marco Aurélio Nogueira: Onze candidatos e nenhuma ideia

Será que somente o reduzido grupo dos que defendem e valorizam a necessidade de uma nova pactuação democrática consegue ver o tamanho do buraco em que caiu o País?

A fragmentação continua a avançar, trazendo consigo a sensação de que o próximo governo será marcado pela inoperância, pelo artificialismo da concorrência político-partidária e pela tensão ideológica. Ninguém parece se preocupar com o quadro e todos continuam a correr rumo ao precipício, que fica sempre mais próximo.

Cada candidato faz de conta que o problema não é com ele, mas com os outros, sempre tidos e havidos como “inimigos”. Falta cordialidade, desprendimento e tolerância entre os postulantes, e deles o problema se transfere para os eleitores, que já começam a se pegar nas redes.

Por enquanto são onze, que a preguiça analítica distribui entre esquerda, centro e direita, mas que a rigor pouco se diferenciam entre si, a não ser pelo tamanho da língua e pela volúpia de chegar ao poder. Outros mais deverão aparecer e embolar ainda mais a corrida. Como não há ideias postas na mesa, a atribuição do lugar que cada candidato ocupa no tabuleiro político e ideológico não passa de exercício classificatório desprovido de sentido. Serve tão-somente para que se delineie uma situação “ideal”, com polos que se contradizem. As contradições, porém, não são explicitadas. Nem as diferenças.

Dizem que é cedo para que pense em coligações. A incerteza geral, a fragilidade das postulações e a inexistência de conteúdos programáticos claros impediriam que se cogitasse, no momento, da formação de frentes políticas desenhadas para maximizar o poder de fogo de propostas perfiladas no mesmo espaço político-ideológico. A hora é de cada um testar sua densidade.

Pode ser. Mas nunca é cedo para se fazer o certo. A ideia de se levar o eleitor ao limite e de conclamá-lo a pensar no país só no segundo turno é uma opção suicida, que pode implicar a organização de uma disputa desconectada dos interesses populares e nacionais: daquilo que precisa ser feito.

A sociedade não merece ser tratada como se fosse uma coisa qualquer, menos importante que os caprichos, os interesses e as manias dos políticos.

A articulação dos democratas entre si, feita com generosidade, sem vetos e com programas claros, é uma saída tão evidente e tão plena de possibilidades que chega a surpreender que poucos se dediquem a ela.

http://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/onze-candidatos-e-nenhuma-ideia/


Marco Aurélio Nogueira: O “golpe” como disciplina universitária

Muito barulho nas redes e nos corredores universitários por causa da manifestação do ministro da Educação, Mendonça Filho, contestando o oferecimento, na Universidade de Brasília, de uma disciplina escolar sobre o impeachment de Dilma Rousseff.
Em solidariedade, professores de outras instituições acadêmicas (Unicamp e Federal da Bahia) propuseram-se a seguir o exemplo da UnB.
Surpreende que tanto alvoroço esteja sendo criado em torno de um fato corriqueiro.
Não é de hoje que as faculdades de Humanas vivem às voltas com a questão de definir que conteúdo programático oferecer aos estudantes. Sempre há controvérsias. As disciplinas das diferentes áreas de conhecimento estão mergulhadas nos embates políticos e ideológicos da época e nas pulsões a ela correspondentes, cabendo aos professores zelar tanto pela liberdade de cátedra quanto pelo rigor teórico e conceitual. Uma sala de aula não pode ser tribuna para a apresentação categórica das preferências ou idiossincrasias filosóficas do professor, nem muito menos espaço para a defesa militante de interesses políticos ou partidários.
A questão é tão complicada que sempre se recorre àquilo que o sociólogo alemão Max Weber chamava de “liberdade em relação aos valores”, procedimento também chamado de “neutralidade axiológica”. Com isso, Weber pretendia demonstrar que não há como excluir os valores do trabalho científico ou docente mas, por isso mesmo, é preciso manter certo controle sobre eles, para que o conhecimento não seja indevidamente invadido por considerações de ordem política ou moral. Tudo depende sempre de escolhas valorativas e opções subjetivas, que precisam ser adequadamente integradas ao processo científico. Não há “imparcialidade” absoluta e tudo passa por uma relação dinâmica com os diferentes pontos de vista que coexistem na sociedade e na época. Não se trata de encontrar um “compromisso” entre tais pontos de vista antagônicos, que lutam entre si, mas de centrar o foco na descoberta da verdade, fim último da ciência.
É uma discussão complexa, difícil.
Diferentemente do que ocorre no ensino fundamental e médio, na universidade o risco de “doutrinação” é pequeno, pois os alunos já têm ideias próprias e sabem se proteger. Mas o proselitismo corre solto. É parte do jogo, gostemos ou não.
O professor não pode agir como porta-voz de grupos, partidos ou movimentos, ainda que deva se apresentar por inteiro, desde logo e com suas convicções. Não tem o direito de fazer de sua cátedra uma correia de transmissão de “verdades discutíveis” ou uma caixa de ressonância daquilo que considera serem as “injustiças do mundo” ou o “clamor popular”. Sua obrigação é oferecer análises criteriosas que mostrem as implicações fundamentais, as determinações e os conceitos com que podem ser examinados os temas. Precisa saber equilibrar convicção e responsabilidade. Sua missão é disseminar serenidade e ponderação, não conclamar os estudantes ao “engajamento político”. Ele não é um prosélito, nem um agitador.

A liberdade acadêmica que vigora nos campi universitários implica a discussão com os estudantes de problemas que o corpo docente considera relevantes para sua formação. Os departamentos acadêmicos são livres para definir o conteúdo das matérias a serem oferecidas aos alunos. Muitas vezes os temas são polêmicos e ainda não estão devidamente processados em termos científicos. Estão, por assim dizer, na fronteira, no lusco-fusco, flutuando entre a pesquisa e a curiosidade, entre o senso comum, a denúncia e a reflexão crítica.
Não deveria haver dúvida de que a análise do impeachment é um ponto importante, que merece ser estudado, debatido, investigado. Especialmente nas faculdades de Humanas, o cotidiano é atravessado por discussões feitas “à quente”, que aparecem até mesmo nas disciplinas que não estão direcionadas para a análise de conjuntura política do país. Nada a estranhar, portanto, que alguns professores procurem sistematizar essas discussões e dar elas um pouco de organização. Eles estão levando para dentro de suas aulas aquilo que rola fora delas. Pode haver um exagerado senso de oportunidade, mas, se capricharem na organização e se dedicarem a manter o padrão acadêmico, poderão ajudar os estudantes a ter uma visão mais criteriosa do processo político brasileiro, nele incluindo o impeachment de Dilma, a crise do PT e os males que a corrupção vem causando ao partido, as características do lulismo, o funcionamento das instituições políticas e jurídicas do país, o governo de Michel Temer, e assim por diante.
A questão e o perrengue só surgiram porque os professores resolveram associar ao impeachment a palavra “golpe”, o que sugeriu um alinhamento automático às diretrizes das oposições petistas e lulistas posteriores ao fim do governo Dilma. Ao fazerem isso — reiterando uma denúncia já ultrapassada pela dinâmica política real — terminaram por tomar uma posição que antecipa as conclusões a que as próprias disciplinas deveriam chegar. As propostas assumiram unilateralmente que o processo que destituiu Dilma foi feito fora da lei e da constitucionalidade vigente, implicando a “ruptura da democracia”, o “retrocesso nos direitos” e a “restrição às liberdades”.
Alimentaram, assim, uma fogueira que, a essa altura, já deveria estar apagada.
Foi o que bastou para que o ministro da Educação se encrespasse, mostrando sua dificuldade de conviver com o contraditório. Nem ele, nem o governo que integra, nem os que apoiaram o afastamento de Dilma aceitam ser vistos como “golpistas” e nem pensam que o processo violentou as normas legais do país. Nenhum “golpe” de fato aconteceu, a não ser no sentido genérico de “manobra política” ou de “golpe parlamentar”. Mas ninguém tem o direito de vetar as atividades dos que pensam de outro modo.
A declaração de Mendonça Filho de que se deve “lamentar que uma instituição respeitada e importante como a Universidade de Brasília faça uso do espaço público para promoção de militância político-partidária” é, no mínimo, inadequada. Tanto que a Comissão de Ética Pública da Presidência o intimou, no prazo de dez dias, a prestar esclarecimentos em processo que apura se cometeu abuso de autoridade no exercício do poder. É uma declaração-bumerangue, que se volta contra o ministro e dá fôlego aos que ele gostaria de atingir, permitindo-lhes denunciar o contexto “autoritário” em que se estaria viver. Ajuda a consolidar a imagem de um governo receoso, que teme o que se passa no recôndito de auditórios universitários e salas de aula.
Como tudo anda fora do eixo no debate político nacional, aquilo que deveria ser rotina virou caso extraordinário, ganhando uma dimensão excepcional e uma partidarização desnecessária. Com a elevação artificial da temperatura, as disciplinas passaram a ser vistas como sendo parte da tática petista de denunciar “golpes” para justificar a derrota política do partido.
Enquanto a sociedade exibe suas chagas e espera respostas, abrem-se discussões diversionistas para descobrir se houve ou não um “golpe” no Brasil, se professores podem ou não debater os acontecimentos recentes de nossa vida política, se um governo tem autoridade para questionar o que se passa dentro das universidades.
É muita perda de tempo.
Deveríamos todos deixar o barco navegar. Nada ocorrerá de grave se alguns estudantes participarem de debates falando de “golpes” e de “retrocesso democrático”, até porque a maioria deles, nas faculdades de Humanas, já pensa assim e os que não pensam poderão contra-argumentar ou simplesmente não assistir ao curso. Não dá para saber como as aulas transcorrerão e não há porque dizer, de antemão, que elas darão ensejo à “doutrinação” dos meninos e meninas ou que não passarão de mera manifestação “panfletária”.
A razão – nesse caso e em vários outros – pega carona nas asas da coruja de Minerva, que só alça voo ao entardecer.

Marco Aurélio Nogueira: Centro, esse escorregadio objeto de desejo

Ocupá-lo é uma necessidade, sem ele, nenhum sistema político ganha fluidez

Entra semana, sai semana, o centro continua em evidência. Todos querem atrair ou neutralizar suas correntes. Procuram-se também nomes que o unifiquem.

Luciano Huck mostrou a dificuldade do processo. Desejou ser o centro renovador: o novo em política. Excitou os movimentos cívicos e reiterou a ideia de que os partidos precisam reinventar-se. Criou turbulência no interior do PSDB, mexendo com os brios de Geraldo Alckmin. A operação não deu certo, mas serviu para realçar a necessidade de preencher o vazio que se reproduz na política nacional: um vazio de nomes, de ideias, de projetos que sacudam a poeira das velhas vestes que ainda recobrem a política.

O excesso de movimentação demonstra que o centro é um espaço em busca de quem o organize. Seu magnetismo se impõe porque não há vitória eleitoral ou políticas positivas que não tenham ao menos um pé centralizado.

Os dogmáticos falam que a afirmação de um centro seria uma estratégia da direita, assustada com a liderança de Lula nas pesquisas. Os liberais querem um centro que neutralize os “excessos” e proteja a liberdade. Os conservadores mais à direita, por sua vez, veem no centro um obstáculo para seus planos de conter a renovação dos costumes. Mesmo setores da esquerda, quando pensam em sua própria articulação, concebem um “centro-esquerda” que se una para enfrentar o “centro-direita”.

Os democratas entendem o centro como um fator de ultrapassagem do atual padrão de competição política, muito polarizado. O suposto é que sem o centro o sucesso será mais difícil, posto que saturado pela reposição mecânica do velho padrão. O desafio passa pela reconstrução de algo que, em boa medida, foi a força propulsora da redemocratização. Como a vida mudou e a política entrou em parafuso, reconstruir o centro tornou-se ao mesmo tempo problema e estratégia.

Ruim em termos de articulação, a situação tem como contraponto positivo a pressão social, a hostilidade popular à política praticada, a indignação contra a corrupção, os privilégios e a ineficiência dos políticos. Procura-se um nome “novo”, mais que um novo projeto. Não se conseguiu, até agora, definir que forças políticas poderão articular-se em torno de propostas claras para a questão fiscal, o formato do Estado, a agenda social, o desenvolvimento. Sem isso tanto fará se o candidato for “novo” ou “velho”.

Mas o que seria o centro político, esse objeto de desejo tão escorregadio?

O centro é sempre importante, mas não é tudo. É parte do jogo, um vir a ser, uma aspiração ou uma obsessão. Não é uma igreja de salvação, nem a praia de todos. Ocupá-lo é uma necessidade. Sem ele nenhum sistema político ganha fluidez.

Particularmente no Brasil, o centro não é o Centrão. Também não é igual a maioria parlamentar ou ao polo que controla essa maioria. Não é governismo. Para ser viável e consistente precisa ir além dessa dimensão, dirigi-la, subordiná-la, por maior que seja a atração exercida pelo poder central. Um centro comandado pelo poder central amarra o País. Autônomo e consciente de si, faz o País avançar.

Em geometria, o centro é o ponto que está no meio de uma figura. Numa reta, divide-a em dois lados iguais. Num círculo ou numa esfera, é o ponto a partir do qual equidistam todos os pontos pertencentes à circunferência. Nas figuras geométricas em geral, o centro pode ser determinado com precisão desde que elas sejam simétricas, regulares.

Em termos políticos, não é assim. Um centro político não tem determinação exata, não é fixo nem equidistante de nada. Pode flertar mais com um lado do que com outro, buscar superar as extremidades, atraindo-as e submetendo-as a si, ou pode simplesmente funcionar como um administrador das forças em presença. Suas figuras e seus espaços de operação são irregulares, dinâmicos.

Trata-se, pois, de uma posição relativa, que só pode ser proclamada tendo em vista uma esquerda e uma direita, entendidas essas duas posições em sua tradução pura, extremada. Como tal pureza não existe, o centro também não se configura com precisão. Como lembrou o cientista político Marcus Mello, citando Maurice Duverger, “o centro é um lugar imaginário, não existe em política”: chamamos centro ao “lugar geométrico donde se reúnem os moderados de tendências opostas”. Para compensar sua limitação costuma ser associado a termos outros, como união, serenidade e temperança.

Há centros que existem para conservar e outros que se dedicam a fazer uma revolução. Um centro inclinado à direita anda para trás. Inclinado à esquerda, é uma chance de avanço, tanto no plano moral quanto em termos de igualdade. Um centro autoritário, burocrático, promove a passividade e a subserviência dos aderentes. Realizado democraticamente, promove a autonomia, o pluralismo e a multiplicidade das vozes. O primeiro é potencialmente regressista, o segundo é progressista.

O centro não existe como algo dado: é uma construção. Por isso somente ganha sustentabilidade se tiver programa e projeto. Sem raízes sociais é como uma casa sem alicerces. Pode assentar telhas e janelas, mas ruirá no primeiro vendaval.

Um centro inclinado à esquerda não é a solução, mas pode ajudar a que ela seja encontrada. Sua virtude repousa na articulação dialética Estado-sociedade, no molejo democrático que faz com que se ouça a voz de todos e na disposição de abraçar a causa de um país. Seu programa se volta para o encontro de um novo modo de pensar e organizar a política, atualizando-a aos patamares civilizatórios em que nos encontramos.

2018 promete avançar em meio à incerteza, ao mal-estar social, a crises e polarizações. Não dá para saber se um centro forte possibilitará que se desanuviem as brumas que nos cegam. Mas dá para cravar que sem reformismo democrático, respeito aos direitos e articulação social nenhum centro fará coisa que preste.

 


Marco Aurélio Nogueira: A intervenção no Rio, a segurança, a política

Não foi preciso mais que alguns minutos. Anunciada, na tarde de sexta-feira, dia 16, a intervenção federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro, com a nomeação do general Walter Braga Netto como seu coordenador, a reação foi imediata. As redes se contagiaram de protestos, alertas e manifestações de preocupação. Especialistas, intelectuais, políticos, ativistas e cidadãos saíram a campo para entender o fato e repercuti-lo, cercando-o de críticas e de muito ceticismo.Uma densa névoa desceu sobre a Cidade Maravilhosa e a política nacional. O que haveria por trás da decisão de Michel Temer? Teria ela alguma potência para confrontar o avanço do crime organizado no Rio de Janeiro e mitigar o clima de insegurança que atinge sua população? Ou a intervenção não passaria de um “factoide” para espetacularizar o problema, desviar a atenção das fraquezas do governo federal e justificar o arquivamento da reforma da Previdência?

Há duas dimensões a serem consideradas. Uma diz respeito à segurança pública em sentido estrito, ao efeito da intervenção sobre o crime organizado e a corrupção que contaminou a política e a polícia do Rio. Outra tem a ver com a repercussão política da intervenção, com seus efeitos sobre a popularidade de Temer e a disputa eleitoral que se avizinha.

A segurança como problema
Quanto à primeira, há a essa altura alguns consensos. O problema não é somente do Rio: a “metástase” é nacional, vem de antes e afeta várias outras cidades. Algo precisa ser feito além de alertas e protestos, no mínimo para dar alguma proteção à população e especialmente aos seus segmentos mais pobres, que são os que mais sofrem. Terceiro: é impossível obter resultados efetivos no combate ao crime somente com intervenções pontuais e aumento da repressão. Uma “ocupação” militar não faria sentido, e nem está sendo cogitada.

O interventor é um general, mas a intervenção não é militar e sim federal. Faz diferença. Não irá salvar a lavoura, mas pode ajudar ou atrapalhar. O problema é tão mais vasto que requer uma combinação de iniciativas e políticas públicas, que considerem a estrutura policial, mas avancem bem além dela. Abraçadas à segurança estão a educação e a saúde, a atenção aos jovens, a política habitacional. Não é só a segurança.

O Exército atua no Rio já faz tempo. Mesmo que se possa avaliar que sua presença não trouxe resultados, não há por que menosprezar que algum ganho operacional poderá ser obtido com a intervenção. Depende do que vier a ser feito e do modus operandi da operação. Atacará ela o tumor que mina o organismo carioca e fluminense? Irá a força militar para as ruas, para o enfrentamento direto com criminosos e a varredura dos morros, ou se concentrará no trabalho logístico, de coordenação das polícias, de informação estratégica, de inteligência? Será uma força de pacificação ou de guerra?

Nada disso está definido, o que sugere que se deve dar um pouco mais de tempo para ver o rumo que o processo tomará. Críticas precisam ser feitas e consideradas, sobretudo quando acompanhadas de propostas de encaminhamento e apresentadas com senso de viabilidade, rigor técnico e serenidade. A hora talvez seja mais de reflexão que de protesto. A acusação de que a intervenção é outra etapa do mesmo “golpe” que estaria a ser dirigido contra a esquerda e os movimentos populares, por exemplo, não tem pé nem cabeça, só ajuda a deixar a névoa mais espessa.

A dimensão política
A segunda dimensão também requer avaliação cuidadosa. Temer pretende faturar com a intervenção, trazendo o tema da segurança pública, da “ordem” e da “paz” para a agenda governamental. Nada a objetar quanto a isso. Está trocando a reforma da Previdência, que já demonstrava estar praticamente morta, por um tema de forte apelo popular, com o qual as chances de identificação são altas. Se for assim mesmo, o presidente demonstra uma sagacidade inesperada: quer sobreviver e terminar seus dias com alguma dignidade. Isso, claro, se o plano der certo.

Temer pode ganhar alguma coisa, mas é impossível que ganhe tudo, ou mesmo o principal. Não dará vida a uma centro-direita que lhe seja subserviente, pois o centro, hoje, é um espaço amplo demais para ser monopolizado por personagens desprovidas de molejo político e sem capacidade de dialogar com a esquerda. O centro que Temer pode impulsionar é só um pedaço do centro, e o pedaço menos importante. É muito difícil que um governo fraco produza um candidato forte.

Bolsonaro talvez seja o que mais perde, pois foi despojado do tema militar e da segurança. Mesmo assim, ele seguirá em circulação. Poderá obter algum ganho no Congresso caso pautas mais conservadoras entrem em discussão (redução da maioridade penal, por exemplo) ou os parlamentares se deixem contagiar pela passionalidade. Mas não parece razoável que se diga que a intervenção o beneficiará porque passará a ideia de que os militares são a solução para os problemas do país.

Os adversários da “luta contra a corrupção” não ganharão nada, ao menos à primeira vista. Poderão até mesmo ficar mais encurralados, na eventualidade da intervenção se concentrar na cauterização das feridas abertas pela máquina corrupta. Se uma associação mais estreita vier a ser feita entre criminalidade, segurança pública e corrupção, não se poderá dizer que o combate à corrupção é uma forma disfarçada de combate à política. A própria população se encarregará de resolver a equação.

Um fato novo se produziu. A entrega ao general Braga Netto de poderes de governo, com os quais ele poderá demitir e contratar na segurança pública, representa a subordinação das polícias civil e militar, do Corpo de Bombeiros e do sistema carcerário.

O governador Pezão, que já estava mal das pernas, converteu-se assim numa figura decorativa, sem acesso ao fundamental. Seu governo não criou o problema da segurança. Nem o de Sérgio Cabral. O que ambos fizeram – aliados a Jorge Picciani e a uma vasta rede política – foi azeitar uma máquina corrupta que praticamente dizimou o que havia de racionalidade gerencial no Rio, levando água abaixo as finanças, as polícias e os sistemas públicos.

Havia no Rio um governo semimorto, comido pela corrupção, pela falta de credibilidade e pela inoperância. Esse governo agora morreu de vez. Com ele, é de se esperar que se dissolva todo um sistema que abocanhou o Estado e o converteu em reserva de caça.

As chances da intervenção
A melhor chance que tem o general Braga Netto está em conseguir enfiar sua espada nesse sistema e fatiá-lo em pedaços incomunicáveis. O pior é se ele permitir que a operação descambe para a execução de razias nos bairros pobres e a caça de “suspeitos”, o que só reforçará o que de há de racismo e discriminação na política de segurança pública. Nos próximos dias é de se esperar que algo fique mais claro nesse ponto.

É preciso atentar para a sustentabilidade da operação. Em parte, ela poderá vir da população. Mas em parte dependerá do governo federal, de suas verbas e de sua capacidade de apoiar politicamente o que vier a ser feito. A esse respeito, há uma interrogação piscando no horizonte.

Um governo fraco, devorado ele também por desmandos e corrupção, tem como prover recursos e apoios para algo que se pretende grandioso?

O problema passa assim para o Exército. O que esperar dele, de seus quadros e de sua inteligência? Não se pode descartar o que a corporação tem de recursos e experiência. Mas ela estará pisando em terreno minado, precisará de tempo para se aprumar e traçar uma estratégia. Haverá esse tempo? Como gerenciar um problema cuja solução depende de medidas articuladas e de longo prazo com uma intervenção focalizada e de curto prazo?

É um paradoxo. São muitas as possibilidades de fracasso – de simulação, de barulho improdutivo, de varreção da sujeira para baixo do tapete, de agravamento da situação – e muitas as possibilidades de sucesso, ainda que relativo.

Quanto estará o Exército disposto a “ir para o sacrifício”, modificando em parte sua vocação original, para tentar resolver uma questão dramática que tem ingredientes que escapam à lógica militar? É bom lembrar que o Exército, em particular, sempre cumpriu funções extramilitares, de apoio logístico a muitas iniciativas públicas em todo o território nacional. Nunca se dedicou exclusivamente a defender as fronteiras do país ou a combater agressões internas à Nação. Sempre fez mais do que isso. E o Exército da ditadura não existe mais.

Se o modelo a ser inventado pela intervenção conseguir cercar a criminalidade que se alimenta da corrupção e invade a política, um passo será dado.

Militares continuarão a ser militares, por mais treinamento que recebam para atuar em zonas urbanas não para fazer a guerra, mas para construir paz e solidariedade. Não substituirão os políticos e os gestores civis, pois o país não mais comporta isso nem as Forças Armadas parecem dispostas a enveredar pela trilha.

Por vias transversas, o Exército poderá dessa forma se reencontrar com suas melhores tradições. Já fez isso no Haiti, com sucesso reconhecido internacionalmente. Pode repetir a fórmula por aqui.

Estamos patinando no terreno. Intelectuais, especialistas, gestores e parlamentares não conseguiram até hoje achar uma saída para a crise da segurança pública, que não é evidentemente exclusiva do Rio de Janeiro. Há ideias e recomendações oportunas, muita pesquisa acadêmica, mas pouco disso consegue se traduzir em termos práticos. A animosidade e a dificuldade de diálogo têm bloqueado muita coisa.

Não terá chegado a hora de rodar outro filme?


Marco Aurélio Nogueira: Novidade sem raízes

Se Huck quer se colocar a serviço de uma causa deveria começar do começo, amassando barro e sujando as mãos

Não se pode ser contra quem anda insuflando o Huck a sair candidato. Não o conheço, não votaria nele, mas respeito os argumentos de quem o patrocina. Não se deveria vetar iniciativas políticas desse tipo, até por uma questão de princípio. Todos devem ter direito de propor nomes e articular candidaturas, lutando por elas se acaso nelas acreditarem de verdade.

Também não hostilizo o rapaz, que deve ter seus méritos. Acho uma bobagem extrema dizer que ele não pode ser candidato porque não passa de um “funcionário da Globo” e representaria os interesses dessa organização. É uma acusação que só comprova os tempos intolerantes e de retórica autoritária em que vivemos. É ridículo, para dizer o mínimo, medir sua estatura política ou intelectual pelo programa de auditório que ele pilota há anos. Parte da esquerda aprecia essa prática, em nome da necessidade de apreender os nexos explosivos entre a economia e a política. Para ela, a posição no mercado remete imediatamente a uma posição na política. É a reiteração do mesmo dogmatismo que despreza a complexa dialética entre economia e política e que, aos trancos e barrancos, tem ajudado a empurrar o marxismo para a margem.

A ideia de que Huck pode ser o “sangue novo” que falta à política tradicional e que, por isso, poderia representar a alternativa de que carece o “centro democrático” está, porém, desprovida de substância política. Novo de que tipo? Pela esquerda, pelo centro, pela direita, por sobre partidos, a partir de “movimentos cívicos”? Coisas novas, em política, não saem do bolso do colete de alguém dotado de visão superior. Nenhum caso foi assim: Collor em 89, Lula em 2002, Macron na França, todos surgiram a partir ou de uma construção complexa, ou foram a expressão de lideranças que de algum modo estavam na política. Não há um novo “puro”. A ideia é abstrata e precisa ser traduzida. Especialmente quando embalada por articulações e desejos afirmados de cima para baixo, sem a devida maturação, sem aquele processamento indispensável para que se acerte o alvo, ou se chegue perto dele com um mínimo de autenticidade, massa crítica e base operacional.

Nada contra a ação dos bastidores. Em boa medida, todos os nomes nascem de conchavos e negociações que rolam em camarins pouco acessíveis. Mas somente vencem aqueles que, dispondo de bons bastidores, demonstram ter resiliência e competitividade para chegar ao coração do povo e dobrar os adversários. É tudo óbvio, mas não custa lembrar.

A fonte propulsora de uma eventual candidatura de Huck parece ser a preguiça dos políticos democráticos de enfrentar a própria crise, de romper com a inoperância que ameaça corroê-los e inviabilizá-los.

Ninguém sabe o que pensa Huck, além da promessa de “renovar a política”. Seus patrocinadores nem sequer se preocupam em agregar qualidade programática ao nome dele, como se achassem que prestígio televisivo e apoio de algumas lideranças são suficientes para fazer um país. Credibilidade não é extensão natural de popularidade. Dizem que sua plataforma será construída no devido tempo e a partir de itens “autoevidentes”, impostos pela necessidade que o país teria de “renovação”. É mais uma desculpa que uma explicação.

Se Huck quer mesmo se colocar a serviço de uma causa — e não há motivos para que se duvide disso –, há muitos lugares disponíveis para tal empreendimento na política. Deveria começar do começo, amassando barro e sujando as mãos. Despejado sobre a sociedade como descoberta “genial” de alguns morubixabas, poderá até vencer, mas não terá raízes em que se apoiar. Precisará ser tão assessorado e tão protegido que não poderá dar passos à frente sem as muletas daqueles que o descobriram e patrocinaram. Seu poder, assim, não lhe pertencerá. Nem a ele, nem ao povo que o eleger.

Patrocinado por um dos polos do drama nacional nosso de cada dia, ainda terá por efeito encrespar o polo adversário, prolongando a polarização de que precisamos nos livrar.
 


Marco Aurélio Nogueira: Judicialização e política

Beto Albuquerque, vice-presidente do PSB, aparece hoje nos jornais com uma declaração: “Para quem pensa em política, um aviso: ela não foi feita para usar toga”.

A frase, ao que consta, está referida ao namoro do PSB com Joaquim Barbosa, ex-ministro do STF. Beto é contra sua entrada no partido para ser candidato à Presidência. Para ele, Barbosa ainda não despiu o traje de juiz e não tem nem história na sigla, nem trânsito na política. É um neófito, com quem ninguém do PSB “tomou mais que um café”.

Beto Albuquerque fala em causa própria, pois pretende ser ele mesmo o candidato socialista. Está no seu direito. Soltou uma frase que é oportuna seja para que se pense nas eleições, seja para que se analise a complexidade das relações entre o Judiciário e a política.

Ela mostra, mais uma vez, a facilidade com que está se dando a conversão de juízes e personagens do mundo judicial em heróis nacionais, revelando a força imagética e simbólica que passaram a ter os homens e as mulheres de toga.

Há ao menos duas maneiras de se discutir a chamada “judicialização da política”. Não me refiro à vasta literatura acadêmica já acumulada sobre o tema, mas ao entendimento político mais básico, aquele que aponta para interesses, possibilidades, atores, desejos e programas.

Podemos dizer, por um lado, que são os próprios atores do Judiciário – juízes, promotores, procuradores, advogados – que tomam a iniciativa de “judicializar” a política e fazem isso porque não acreditam na lisura dos políticos e se julgam superiores a eles. Por outro lado, podemos dizer que são os políticos que convocam os tribunais para equacionar problemas que eles próprios, os políticos, não conseguem resolver e nem sequer agendar.

Sempre se pode escapar desse dilema dual. A via do meio diria que a política é “judicializada” tanto porque os juízes se politizaram (eventualmente se partidarizaram), ganhando musculatura profissional, quanto porque os políticos já não conseguem produzir zonas mínimas de consenso e veem no Judiciário um ótimo local para transferir essa responsabilidade, com a vantagem de que os tribunais podem ajudar a que se protelem decisões e se criem embaraços para eventuais adversários.

É a reunião da fome com a vontade de comer.

Postas diante do tema da corrupção e da lavagem de dinheiro – componentes do financiamento ilícito de campanhas e do enriquecimento pessoal de tantos políticos –, as relações entre Judiciário e política revelam plenamente seu caráter explosivo. Não é à toa que chovem críticas e aplausos às incursões judiciais na esfera política, avisos de alerta, reclamações e elogios muitas vezes passionais.

Se uma das molas da corrupção é o apetite demasiado humano dos políticos, quem irá admoestá-los e puni-los? A resposta principal é conhecida: os cidadãos, mediante a negação do voto. Os instrumentos do Judiciário, porém, do Ministério Público aos tribunais, passando pela Polícia Federal, serão sempre indispensáveis, até para que se possa ofertar à população dados, indícios e provas de atos corruptos. Sem isso, uma consciência pública democrática e republicana não tem como se completar. Desde, é claro, que circulem movidos por uma mídia responsável.

É o que mostra a trajetória da Lava Jato até aqui.

Diante dela, o caso dos auxílios-moradia do juiz Marcelo Bretas e de sua mulher, também juíza, funciona como uma espécie de trava. Indica que privilégios e estratégias não escolhem morada: estão espalhados por toda parte, como uma praga. Um juiz da estatura de Bretas que não consegue explicar porque se beneficia de um “direito” que ofende a cidadania – ainda mais quando usufruído em dobro – com certeza não ajuda a pavimentar esse acidentado caminho das relações entre o Judiciário e a política.

É um penduricalho obsceno, um dentre tantos outros, que só servem para emporcalhar as instituições jurídico-políticas. Juízes costumam ser muito bem pagos e afirmam que os altos salários são fundamentais para que possam ter a tranquilidade necessária para cumprir suas funções com imparcialidade, sem sofrer pressões e chantagens.

É um argumento razoável. Para sustentá-lo e legitimar a régia remuneração, penduricalhos só atrapalham, fazendo com que a imagem positiva do Judiciário, conseguida por operações como a Lava-Jato, fique corroída e ameaçada de ser dissolvida pelo corporativismo, devidamente condimentado por uma boa dose de onipotência.

http://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/judicializacao-e-politica/


Marco Aurélio Nogueira: Depois do julgamento

Há um cansaço cívico (ético-político) por se manter o caso Lula no centro da vida nacional

Com a confirmação da condenação de Lula pelo TRF-4, abriu-se uma clareira na política nacional. Em que pesem o componente dramático do fato e toda a controvérsia jurídica que cerca o julgamento, o fato é que ele atinge uma das figuras mais populares da história brasileira recente. Alguns alegam que Lula nada fez de errado e foi julgado pelo conjunto da obra; outros, que não há provas que confirmem as acusações. E há quem diga que tudo não passou de estratégia para afastá-lo da disputa eleitoral, numa demonstração de que a Justiça perdeu as estribeiras.

Continuaremos a discutir o tema e a nos dividirmos diante dele. Talvez por muito tempo.

Por vias transversas, porém, estamos sendo obrigados a fazer um balanço dos últimos tempos e rever estratégias que, por uma via ou outra, tentaram fortalecer a democracia. Hoje vivemos num país sem projetos e programas claros de ação.

Precisamos escapar da reiteração passional do discurso de amor e de ódio ao Lula, razão de tantas divisões e de tanto atraso na formulação política do progressismo brasileiro. Aos poucos poderemos enveredar por um caminho mais laico de luta, que não se renda à narrativa simplista de que tudo o que acontece no Brasil deriva de um “golpe midiático-judicial”, implacável na perseguição à esquerda e a Lula em particular. O País é bem mais complexo do que deseja essa vã filosofia do golpismo das elites.

A partir de agora haverá mais espaços para que se atualize a compreensão das vias a serem trilhadas para que o País avance. Desfazem-se as ilusões de que tudo depende de alguém revestido de um magnetismo ímpar, que traz nas mãos o futuro da Nação. Um novo programa terá de frutificar para que se ataquem as mazelas socioeconômicas e se invista numa pedagogia cívica que tenha a marca do progresso social e da democracia. Uma nova cultura de governo e de prática política precisará avançar com rapidez. Os candidatos serão instados a tomar posição sem subterfúgios perante a exigência nacional de que a corrupção seja arquivada como conduta política, nas suas variadas manifestações, do ilícito administrativo à obtenção de vantagens pessoais, da formação ilegal de reservas eleitorais à cobrança de comissões obscenas nos contratos públicos.

Ao menos por um tempo a vida política continuará intoxicada pela polarização criada por Lula. O “nós” daí decorrente, porém, tenderá a encontrar um caminho menos grandiloquente. O mito vai sobreviver, mas seu brilho tenderá a esmaecer.

Um país sem mitos políticos, a rigor, não existe. Seria um arranjo imperfeito, vazio de simbolismo, carente de animação. Mas mitos não precisam ser levados como estandartes que cegam e vetam o pensamento crítico. Podem e devem ser humanizados, extraídos da esfera do sublime, fixados no chão da terra: uma pessoa igualzinha a todas as outras, que comete erros, tem suas paixões, suas taras e seus defeitos, seus méritos e deméritos, falha e envelhece como o mais comum dos mortais. Sua diferença específica não é mágica, mas funcional, de talento e de disposição ao sacrifício.

A condenação de Lula funciona como um soco no imaginário nacional. Mas está longe de representar uma tragédia ou o fim de uma época. Incentiva a reflexão e estende um convite a que se redefinam os personagens que ocuparão o palco principal. Não é razoável que o País continue a girar em torno de uma polarização que se reproduz por inércia. É preciso que a realidade seja reprocessada como um todo, para que suas contradições, que são muitas, saiam à luz do dia.

O desfecho do julgamento de Lula não causa mais indecisão do que já se tinha. Ao contrário, pode levar à recuperação de uma racionalidade reformadora que estava perdida. Não retira credibilidade do processo eleitoral de 2018: pode valorizar as escolhas eleitorais, chamar os cidadãos para a esfera pública e instituir uma relação de novo tipo com o Estado e a comunidade política.

Lula seguirá fazendo campanha País afora. Permanecerá com um recall importante, mas terá de elaborar o impacto da condenação e o risco de prisão. O PT vai mostrar se é ou não maior que sua liderança principal, se continuará fazendo dela o seu biombo e lhe transferindo todo o vigor partidário.

Será tentado a levar a candidatura de Lula às últimas consequências, pois não dispõe de um nome alternativo e precisa ganhar tempo para se reposicionar no território político das esquerdas que aceitaram seu protagonismo nos últimos tempos. Não poderá mais enquadrá-las por uma posição de força. Terá de se abrir ou para a formação de uma “frente de esquerda” desde logo, ou para uma multiplicidade de candidatos que convirjam num eventual segundo turno. Serão decisões difíceis, a serem tomadas por um partido que perdeu alguns de seus ativos nos últimos anos e costuma ter uma vida interna tensa e intensa.

Nas tratativas que haverá, o PT terá de redefinir o slogan “eleição sem Lula é fraude”, que provoca atrito com todos os que decidirem permanecer a sério na disputa. A estratégia mais afastou do que agregou. O slogan talvez alimente o radicalismo e a passionalidade de alguns militantes, mas é um bumerangue que precisará ser desativado. Sob pena de fazer o PT desidratar. A “radicalização” anunciada por Gleisi Hoffmann terá de se haver com a perspectiva de sobrevivência política do partido.

O problema é que a sociedade está saturada de polarização política. Há um cansaço cívico (ético-político) diante da manutenção do caso Lula no centro da vida nacional. O que coloca um ponto de interrogação na eventual manutenção da estratégia de judicialização radicalizada da candidatura do ex-presidente.

Apostar no desgaste das instituições, em particular da Justiça e das eleições, não é a opção mais razoável. Como, de resto, ficou evidente ao longo do próprio processo que culminou na condenação de Lula em segunda instância.


Marco Aurélio Nogueira: Um julgamento para flertar com a História

Desçam todos, por favor. Faremos uma pausa. Passado o dia de hoje, 24 de janeiro, não haverá novo tempo nem outra época. A vida será a mesma. Com ou sem condenação, a democracia permanecerá, as regras do jogo não serão alteradas, as liberdades não falecerão, eleições continuarão a acontecer. Entre choros, palmas e velas, a institucionalidade jurídico-política prevalecerá, radicalismos à parte, que fazem parte do jogo. A viagem seguirá, após a parada obrigatória. Passageiros continuarão inquietos e divididos, mas seguirão em frente, refrescados uns, pilhados outros. O destino ainda não será vislumbrado, mas todos saberão que ele está logo ali, nas urnas de outubro.

Passado o julgamento, alguma redefinição terá de se impor, ainda que o clima de dramatização persista. Não mais o crime, a culpa ou a inocência, mas o futuro dos personagens, seu potencial e sua razão de ser. Reiterada a condenação de Lula, o PT judicializará a política, concentrando-se numa discutível batalha jurídica a ser travada nos tribunais. Absolvido o ex-presidente, o partido será vitaminado e voltará a ter chances de mostrar o que propõe para o país, além de Lula.

A tese partidária é que, com a condenação, “não teremos mais normalidade institucional no Brasil”, como diz Gleisi Hoffmann, sem se dar conta do tamanho das labaredas que carregam suas palavras. A perspectiva é tão burra politicamente que não é de se acreditar que todos os petistas pensem do mesmo jeito. Afinal, se as eleições serão uma “fraude”, como reza a cartilha, o certo seria ignorá-las. O partido, porém, nem pensa nisso.

O fato, mal processado sobretudo pelos petistas, é que Lula é só a ponta de um gigantesco iceberg, no qual se abraçam políticos de praticamente todos os partidos brasileiros, de centro, direita e esquerda. Todos estão sujos, mas só Lula estaria a pagar o pato? O problema é que sem Lula a esquerda não sabe se orientar. A direita tem vários nomes, além de ter, também, fortalezas muito mais poderosas para resistir ao cerco da Lava Jato.

A esquerda não pode cometer deslizes de corrupção, nem falcatruas, nem levar vantagens pessoais, nem trambicar com os poderosos, nem manter relações promíscuas e não transparentes com quem quer que seja. Se faz isso, deixa de ser esquerda, converte-se numa vertente degenerada da esquerda, tendo ou não consciência dessa opção.

A esquerda dominante não admite isso. Minimiza a sujeira que acumulou quando esteve no poder. Alegar que não há provas suficientes nem crimes é fazer como o avestruz. É desrespeitar a inteligência alheia.

Não se trata somente de Lula. Ele está no centro, domina a planície, é tratado como um semideus imune a críticas. É visto como um raro talento político e os mais empolgados a ele se referem como “o maior líder popular da história”. Lula não se constrange de ser mitificado, talvez na expectativa de que a idolatria ajude a iluminar o caminho da salvação. Não admite ter errado e dormido no ponto no caso do tríplex: como então, uma pessoa rica não pode comprar um apartamento de 1 milhão de reais? Sua opção por não ter propriedades imobiliárias à altura de suas rendas e posses levanta mais suspeitas que aplausos, e seus advogados erraram feio ao não alertá-lo para isso.

O problema é que os que patrocinam e endeusam Lula comprometem parte importante do campo progressista. Não se dão conta disso. Engajam-se, PT à frente, numa viagem de destino impreciso, mas que não poderá seguir roteiros já pisados anteriormente. Ficam paralisados, como a rã diante da luz. Mas se mexem sem cessar, sem um foco claro e sem uma mensagem sintonizada com as carências do pais.

Deixam de perceber que, se não souberem ir além das idiossincrasias e agruras do líder, se não forem maiores do que ele, perderão autoridade e força moral.

Dilemas existenciais
Seria então o momento ideal de se pôr a mão na consciência e resolver alguns dilemas de tipo existencial. Há perguntas incômodas, que não querem calar.

Não haverá mesmo opção melhor, em termos políticos? Não valeria a pena virar o disco e ouvir as canções do lado B? Quem ganhará e quem perderá com a insistência em manter tremulando o estandarte da redenção? Do que necessita o País real? De que homens e mulheres, de que ideias, valores e programas, de quais compromissos? Vamos permanecer pendurados no mesmo mastro, alegando que nele se decide o futuro da Humanidade, que nele estaria inscrito o segredo da democratização brasileira? É isso que chamamos de Esquerda do século XXI?

O principal dilema de Lula e do PT é saber o que fazer no dia seguinte. Não há plano alternativo se Lula for impedido de concorrer. A estratégia é esticar a corda até o limite, manter o mito vivo e sensibilizar o eleitorado para, eventualmente, receber de braços abertos o ex-presidente sofrido e calejado, ou um seu sucessor, fresco de tinta. O espectro de uma segunda Dilma passeia pelo campo petista, mas nem o partido nem a militância parecem preocupados com isso. Para eles, a política deixou de ser praticada com os olhos no interesse mais geral. O importante é salvar o patrimônio acumulado, mantê-lo como um trunfo, um recurso para batalhas vindouras. “O PT vai para o tudo ou nada com Lula”, falou Jilmar Tatto, vice-presidente do partido em São Paulo.

Não se trata de defesa ou solidariedade ao velho chefe cansado de guerra. Mas de estratégia política. Com seus limites, sua frieza e sua indiferença pelas consequências. O PT não delineia qualquer alternativa e nem ela surge a partir de fora dele.

Há outro dilema, não exclusivo do PT e ainda mais decisivo. Quem pode determinar se Lula é ou não culpado? Nas democracias, é o sistema judicial quem decide isso. Sim, Moro, os tribunais, o TRF-4, o STF – essas instituições mesmas, que estão sendo postas em dúvida pelos defensores do ex-presidente. O dilema, aqui, é se se deve ou não aceitar tal prerrogativa institucional. Elas só seriam legítimas se prendessem todos os larápios ao mesmo tempo, de uma só vez? Ou também é razoável que se hierarquizem investigações e penas? Pessoas especiais devem ter tratamento especial? Devemos ou não respeitar a Justiça, ou ela está irremediavelmente maculada pela “direita” e pelo “grande capital”?

A melhor condenação que Lula poderia receber seria mesmo nas urnas: o povo desconstruindo o mito, mostrando ter assimilado a mensagem da Lava Jato, fazendo livremente suas escolhas. Mas, caso venha a concorrer estando condenado judicialmente, o precedente será complicado demais: mostrará que a Justiça não tem força moral e institucional para controlar os demais poderes, que não há mais o império da lei, que a própria lei não vale para todos.

Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. Mas é o que se tem para hoje, na conturbada área da esquerda dominante. Tema para ser considerado com atenção.

* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política na Unesp

 


Marco Aurélio Nogueira: Liberalismos

Manifesto que defende discurso liberal na economia e conservadorismo nos costumes trava a evolução do liberalismo político

Não é de hoje que se sabe que existe liberalismo na economia, na política e no plano dos costumes. Há muitos modos de ser liberal.

Nem sempre esses três focos estão em sintonia coerente. Como há ramos distintos no campo liberal – desde sempre dividido entre um liberalismo democrático e um liberalismo conservador, passando por um liberalismo liberal –, os liberais se distribuem num gradiente flexível, que muitas vezes surpreende e confunde, levando-os ora a flertar com modalidades suavizadas de socialismo, ora a pender para um conservadorismo vetusto, mais próximo da direita.

Os que se proclamam liberais podem, por exemplo, pensar a economia segundo os dogmas da doutrina (livre-mercado, afastamento do Estado, desregulação, privatização) e ficarem abertos a políticas igualitárias de distribuição de renda, direitos e autonomia individual. Nesse registro, podem ser favoráveis à atenuação da propriedade privada e à taxação das grandes fortunas. No polo oposto, podem ser liberais em economia mas “egoístas” socialmente e conservadores em termos morais, sacrificando a autonomia individual no altar da “ordem social”.

Um dos critérios empregados (por exemplo, por Norberto Bobbio) para resolver o enigma e organizar o campo liberal é a maneira como os liberais se relacionam com a democracia política. De modo simplificado, podemos tratar a democracia em termos mais substantivos ou mais formais, isto é, mais como igualdade ou mais como regras do jogo. Historicamente, foi assim que a democracia emergiu no mundo moderno, fato que levou a que todas as doutrinas se posicionassem diante de suas duas faces. Os liberais que se associam ao componente mais igualitário da democracia tendem a caminhar para a esquerda, os demais compõem o que se costuma de chamar de “centro liberal” ou caminham para a direita. Todos os liberais, porém, aceitam o princípio da igualdade perante a lei, a igualdade dos direitos, a igualdade das oportunidades e a igualdade na liberdade, ou seja, a liberdade que não colida com a liberdade dos demais ou que não ofenda a liberdade dos outros.

Democratas e liberais convergem, também, no que diz respeito à reiteração da soberania popular, cuja tradução histórica mais bem acabada é o sufrágio universal masculino e feminino. As ideias liberais encontraram assim no método democrático o critério para se aproximarem da democracia política, o que fez da democracia parte decisiva da evolução do liberalismo propriamente dito. Nasceram assim o liberalismo radical, liberal e democrático, e o liberalismo conservador, liberal mas não democrático. E, por extensão, surgiram democratas liberais e democratas não liberais, os primeiros mais preocupados em limitar o poder e os segundos, em distribui-lo.

Lembro tudo isso, esquematicamente, para dizer que não basta alguém se proclamar liberal para que o liberalismo flua de sua mente como água pura da fonte. Há diversos liberalismos.

Manifestação típica disso pode ser encontrada no “Manifesto” que o presidente do grupo Riachuelo, Flávio Rocha, lançou em Nova Iorque propondo uma candidatura presidencial que “tenha a coerência de um discurso liberal do ponto de vista econômico” e seja “conservador nos costumes”. O empresário afirma que sua intenção é sugerir que “chegou a hora de uma nova independência: é preciso tirar o Estado das costas da sociedade, do cidadão, dos empreendedores, que estão sufocados e não aguentam mais seu peso. Chegou o momento da independência de cada um de nós das garras governamentais”.

Ele vai além, criticando os candidatos até agora surgidos que, na sua opinião, até conseguem defender políticas liberais na economia, mas “tropeçam nas questões sociais”, mostrando-se reféns do que o empresário chama de “marxismo cultural”, uma formosa jabuticaba que floresce abundantemente no Brasil do conservadorismo.

Não sobra nem sequer para Bolsonaro, que na visão de Flávio Rocha se apresenta como conservador socialmente e “de esquerda na economia”. Também Luciano Huck não é bem visto pelo empresário, por não ser suficientemente conservador nos costumes.

Rocha preside o Movimento Brasil 200, que defende uma agenda aberta para o porte de armas e fechada para questões de gênero.

A manifestação demonstra a disposição de parte do empresariado brasileiro de se envolver mais diretamente na disputa política de 2018. Mas, ao misturar alhos com bugalhos e não separar adequadamente o joio do trigo, fazendo chegar ao público uma proposta nominalmente liberal mas de fato muito pouco liberal e quase nada democrática, o manifesto de Flávio Rocha contribui para aumentar a confusão em que o país está mergulhado. Trava, em vez de impulsionar, a evolução do liberalismo político entre nós.

Afinal, se há algo de que o Brasil necessita é de clareza de propósitos. De que liberalismo estamos mesmo falando? De qual democracia? Os doutrinadores de plantão precisam assumir plenamente os postulados de suas doutrinas perante os desafios da hora presente e do estágio civilizacional em que nos encontramos.

 

* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política na Unesp


Marco Aurélio Nogueira: A esquerda que não merecemos ter

Os esquerdistas acham que com a volta de Lula o sol voltará a brilhar e a emancipação será retomada. Não se dão sequer ao trabalho de verificar os dados e de perguntar ao Lula o que ele de fato fará se for eleito presidente

Do jeito que estão as coisas, não há como cogitar da afirmação de um competitivo campo de esquerda no Brasil.

Indo além: o movimento progressista está desnorteado, desarvorado, sem fibra.

A esquerda é um universo amplo, plural, integrado por muitas correntes, agregações e pessoas. Vai do liberalismo político democrático aos defensores do socialismo, de ambientalistas e ecologistas aos libertários, dos que lutam por direitos aos que querem igualdade e reconhecimento. É parte do progressismo, do reformismo, da democracia, ainda que nem sempre acerte os passos com tais plataformas.

Quando, porém, no Brasil, você para e olha, a impressão é que a esquerda se resume ao petismo, aos seguidores de Lula e aos correligionários do PT, com seus aliados, seus trânsfugas e seus satélites.

A simplificação mental é assustadora. Um mundo todo está acabando na política. Partidos e lideranças se desfazem por efeito das transformações estruturais do capitalismo e, no Brasil, dos desdobramentos da Lava-Jato e da crise do Estado e da política. Em vez de reconhecer isso, o esquerdismo prevalecente opta por vitimizar Lula e o PT: somente eles seriam “perseguidos”. Impeachment foi golpe, eleição sem Lula seria fraude, Lula estaria sendo condenado sem prova só para não poder se candidatar, a lawfare seria a adaga espetada em seu peito. Uma catilinária ilimitada.

Tudo isso é interpretado como expressão pura da esquerda, sem mais. Blogs, robôs, sites, mídia eletrônica organizam uma incansável campanha para ampliar o diagnóstico de que tudo só acontece porque a direita (jamais definida com clareza), os liberais, os socialistas democráticos, os partidos do sistema, decidiram atacar o PT e a esquerda, porque a Globo não gosta de Lula e quer dominar tudo, porque Sergio Moro é um partidário antipetista. Porque as elites resolveram sangrar a sociedade.

Estaria assim em marcha uma violenta guinada regressista, tradução brasileira do mesmo fenômeno que se veria no mundo. Direitos pisoteados, pobres sendo remetidos ao inferno da miséria, trabalhadores encurralados, superexplorados, tratados como animais, um cenário de horror. E, no meio dele, Lula e o PT lutando como verdadeiros patronos da Humanidade, que por eles, no mundo todo, torce apaixonadamente.

Consolidou-se assim uma nova faceta do mito global do redentor.

Não há mais crítica política. Muito menos autocrítica. Os iluminados, como se fossem escolhidos, sabem tudo, dominam os mares, voam mais alto. São “perseguidos” e, por isso, automaticamente purificados, desobrigados de analisar os próprios passos, os erros cometidos, as culpas que carregam. Toda exigência deveria ser suspensa para não facilitar o trabalho da “direita”.  Durante os anos do petismo no poder, a crítica não podia ser formulada porque desestabilizaria e enfraqueceria o governo; depois do impeachment, ela é inadmissível porque serviria para fortalecer os “golpistas”. De negação em negação, de recusa em recusa, foi-se empurrando a sujeira para baixo do tapete.

A mitificação corre solta, impulsionada por gente que se vangloria de ter uma inteligência superior, experiência política e boas intenções. Converte-se Lula num factótum da perfeição, dono de uma racionalidade política jamais vista e de uma entrega total aos pobres. Passa-se uma esponja em pecados eventuais, na sede desmesurada por poder, no protagonismo centralizador, avesso a disciplinas e partidos. O mito assim forjado tem alguns pés de barro, devidamente ocultados para não estragar o enredo, mas nem por isso deixa de ser alimentado.

A convicção cega embota as mentes, a superficialidade do diagnóstico agita, mas não consegue esclarecer nem ativar um verdadeiro programa de luta e transformação. Vai-se por inércia, repetindo chavões e slogans fáceis, que se derramam como água, a um ponto em que tudo se converte em senso comum. Nesse momento, as pessoas simplesmente param de pensar. Deixam de ser autônomas, convertem-se em repetidoras passivas, que se lançam em embates infrenes contra tudo e todos.

Os que procuram complicar um pouco o argumento, ponderar ou encontrar um terreno de maior razoabilidade, são atacados sem pena nem consideração. São estigmatizados, convertidos em aliados de “golpistas”.  Avança assim um rolo compressor dedicado a disseminar um tipo de pensamento único “progressista”, a martelar verdades tidas como absolutas, a promover polarizações sempre mais insanas e insensatas, a construir uma narrativa que beira a irracionalidade.

Todos seriam parciais: o MP, a PF, Moro e a Lava Jato, os juízes do TRF-4, a Justiça inteira, as instituições em seu conjunto, os delatores premiados, a mídia. Exagera-se, para levar ao extremo uma estratégia “coitadista”, de vitimização.

O país? Ora, o país… O importante seria não perder o foco: salvar o líder redentor. Fernando Gabeira disse bem: “A esquerda decide lançar todas as suas fichas na salvação do líder num momento em que a maioria está preocupada com a salvação do País. Essa energia concentrada em salvar Lula deixa de lado algumas questões vitais que ela teria de encarar num processo eleitoral”.

O desprezo pela dúvida e pela opinião divergente culmina na redução delas ao imprestável, ao suspeito. Não haveria porque debater se o “outro” é visto como inimigo a ser destruído. É uma questão de fé.

Interditam-se assim posturas e iniciativas que poderiam ajudar a oxigenar o ambiente, a fazer avançar uma crítica mais realista, a tolerância, a busca de entendimentos para fortalecer o próprio campo da esquerda, revitalizando um patrimônio de afetos, agregações, sinergias. Para o pensamento único, a dissonância é incômoda.

Vez ou outra se ouvem vozes falando em “unidade das esquerdas e das forças populares” para frear o “governo entreguista” e impedir a “usurpação” que se anuncia com o julgamento político de Lula. É uma retórica rebarbativa, que não avança na compreensão do quadro e se perde na proposição abstrata de uma imprecisa “aliança nacional” para defender a democracia. Perorações desse tipo desaguam inevitavelmente na postulação do “direito” que teria Lula de disputar a eleição, porque ele é o líder supremo, amado pelo povo, pouco importando se cometeu deslizes, se vier a ser condenado, se tiver a ficha suja de acordo com a legislação em vigor.

Isso tudo acontece não só porque o esquerdismo prevalecente conseguiu acumular recursos e mostra competência na agitação e na propaganda. Acontece também porque a nossa época é uma época de lassidão crítica, de preguiça, de acomodação, de miséria intelectual. Uma época opiniática, em que cada um carrega a sua verdade e sua fé.

Acontece também porque os demais protagonistas do campo democrático e de esquerda – aquilo que se deveria chamar de esquerda democrática – não souberam se projetar e se articular, deixando o terreno vazio. Parte deles nem consegue se descolar do petismo lulista.

A desgraça maior é que ninguém sabe bem o que fazer.

Os esquerdistas acham que com a volta de Lula o sol voltará a brilhar e a emancipação será retomada. Não se dão sequer ao trabalho de verificar os dados e de perguntar ao Lula o que ele de fato fará se for eleito presidente.

Os que querem se diferenciar desse senso comum batem cabeça, ora se entregando ao encontro de um nome com que dar operacionalidade ao moderantismo de centro, ora abraçando bandeiras caras ao neoliberalismo, sem atualizá-las ou corrigi-las.

Uns e outros se acham autossuficientes. Atacam-se reciprocamente sem tréguas, e no correr da batalha deixam de lado o mais importante.

O mais importante? A defesa da democracia e de um reformismo realista, progressivo, consistente em termos programáticos, que nos permita repor o país nos eixos e disputar o futuro, coisa que somente será concebível se houver o concurso generoso de muitos. A defesa da igualdade, da liberdade, de direitos para todos, de formas abertas de vida social, da solidariedade, da cooperação.

O mais importante? A colocação em marcha de uma reinvenção que nos faça voltar a ter orgulho de nos proclamarmos de esquerda.