De: Gabeira Para: Bolsonaro

Por Morris Kachani, de O Estado de S. Paulo

Com a vivência de quem já participou do sequestro de um embaixador americano, foi preso e torturado, passou 10 anos no exílio, revolucionou os costumes vestindo uma icônica tanga rosa na praia de Ipanema em 1980, primeiro ano da abertura após a anistia, fundou o Partido Verde, elegeu-se deputado, rompeu com o PT, abandonou a carreira política e hoje apresenta um belo programa de reportagens documentais na GloboNews, Fernando Gabeira oferece sua visão 360 graus sobre os primeiros 100 dias do governo.

Na última conversa que tivemos, antes da definição das eleições, você falou que a sobrevivência da democracia não estava ameaçada, mas sua qualidade sim.
Exatamente isso que está acontecendo. Até o momento não houve um passo que justificasse você dizer que houve um retrocesso democrático institucional. No sentido de que não foi feito nada que você pudesse apontar como ruptura com a democracia. Os contrapesos da sociedade brasileira continuam aí.
 
O Jean Wyllis por exemplo teve que sair do país. Não são sinais?
Lamento a saída dele. Há muita gente que se sente ameaçada no Brasil. Acho que a sensação de ameaça vem menos das instituições do que do clima de rivalidade nas redes sociais, o baixo nível de debate político que predomina no país. Naturalmente, o governo tem um papel na medida em que emergiu desse debate radicalizado. O general Mourão afirmou, recentemente, que o governo teria condições de dar segurança a ele. Não sei como isso seria feito. Acho, no entanto, que o melhor caminho é desanuviar o debate político, para que todos sintam-se seguros na expressão de suas ideias.
Sobre as redes sociais e o presidente…
A questão não é propriamente a rede social, a questão é de quem a usa e de como a usa. Se o Bolsonaro saísse do twitter, seria como tirar o sofá do sala. Porque ele ia continuar dizendo besteira em outros campos, em outras plataformas.
Nesse sentido eu acho que o erro mais condenável, que eu jamais vi em um presidente da república, e jamais creio que verei adiante, foi o fato de ele ter divulgado na conta dele um vídeo como o do golden shower. Eu não sou a favor de nenhum tipo de censura, mas eu sou favorável à ideia de que o presidente da República escolha os temas que vai difundir.
Eu acho que as redes sociais têm a ligação direta com a população, Bolsonaro inclusive está muito orgulhoso com o crescimento permanente nas redes sociais. Porque é uma forma também de procurar dizer o que o povo quer, de ganhar popularidade com uma série de medidas.
É por isso que o governo avança com uma série de medidas na área de costumes com debates ideológicos. É porque ele não sente avanço nas coisas materiais, objetivas.
Isso aconteceu muito com Jânio Quadros. Como ele não tinha um desenvolvimento fluido no governo, nas coisas que queria, ele trazia um tema de costume. Se ele tinha uma dificuldade na economia por exemplo, ele proibia o biquíni. Ou então ele proibia a briga de galo. Com isso ele deslocava a discussão e a transformava em algo que estava um pouco fora do centro das preocupações. Afasta o exame crítico, objetivo, do governo dele.
Como bateu pra você essa proposta de revisar o golpe de 64?(Risos)
Alguns deles acham que a história foi escrita de maneira unilateral e que não foram contemplados. Como o desejo de acabar com o comunismo, ou os que que sofreram alguma violência também. Mas para haver revisão histórica, é preciso de fatos e realidade.
O arranjo que fizemos com a anistia ampla, geral e irrestrita, foi uma forma de estabelecer um equilíbrio no qual o Brasil pudesse avançar democraticamente para outros momentos, e nesse sentido deu certo, nós conseguimos um período democrático grande da ditadura até hoje.
Acho que não tem sentido nesse momento discutir o governo militar, o golpe militar, porque daqui a pouco a gente vai chegar na Guerra do Paraguai, vai ficar todo mundo discutindo Guerra do Paraguai, com uma série de problemas caindo sobre nossas cabeças. No Rio de Janeiro por exemplo, eu vejo uma cidade sendo destruída, não vamos ficar discutindo quem ganhou a guerra do Paraguai…
Fazer isso é estar fora do mundo.
O relacionamento do governo com o Congresso anda complicado. O tom da discussão entre Bolsonaro e Maia, as gritarias nas sessões… Estamos em evolução ou indo pra trás?
Nós estaríamos indo para trás se fosse colocado imediatamente sem nenhuma máscara e reserva o sistema do toma-lá-dá-cá. Acho que Bolsonaro tentou uma forma que todos os candidatos novos tentariam necessariamente. Uma possibilidade de você fazer um governo de coalizão sem terminar em uma troca material, sem que envolvesse necessariamente um processo de corrupção. Eu acho que isso é uma coisa desejável.
No entanto eu acho que ao escolher um ministério longe das influências políticas mais imediatas, ele foi um pouco mais radical.
Um inovador bem intencionado saberia que sem o apoio do Congresso, não conseguiria fazer nada.
Esta semana ele colocou no Ministério da Educação um cara que não tem experiência na educação. Não tem sentido você fazer isso. Mesmo se ele tivesse uma grande experiência na educação, é necessário fazer uma consulta política. Se você tiver políticos com capacidade e com honradez, preparados para assumir o cargo, você tem que fazer isso.
Bolsonaro precisa buscar uma mediação entre a ideia de não tratar com os políticos, e o toma-lá-dá-cá. Ele não conseguiu formular isso no princípio e até agora está um pouco hesitante, embora recentemente tenha se aproximado um pouco mais do Parlamento.
Você acha que o Mourão é a voz do bom senso nesse governo?
Olha, acho que Mourão representa, ainda que não diretamente, a opinião de alguns generais que teriam um nível intelectual bastante diferente do Bolsonaro no meu entender. Eles têm uma experiência histórica maior, o Mourão por exemplo já serviu na Venezuela, conhece bem o problema de lá, o Heleno já esteve no Haiti, conhece bem os problemas de uma força de pacificação, o Santos Cruz já esteve no Congo também resolvendo problemas gravíssimos como comandante de uma força internacional.
São pessoas mais experientes do que o Bolsonaro, com conhecimento internacional maior que o de Bolsonaro e possivelmente com conhecimento do Brasil maior que o de Bolsonaro.
Então essas pessoas tendem a ter posições muito mais sensatas do que Bolsonaro e seus ideólogos.
Ele recebeu mais de 57 milhões de votos. Será que a sociedade brasileira compactua com sua ideologia?
A ilusão dele foi a de que por ter sido eleito, a sociedade brasileira na sua maioria estava afirmando suas ideias. Ele subestimou muito a carga antipetista enorme que havia no eleitorado dele. Ele não compreendeu que foi escolhido porque era quem tinha chances de derrotar o PT.
E ao não compreender isso e iniciar o governo com este tom e esta perspectiva, ele tem perdido muito apoio, e é hoje o presidente avaliado nos primeiros 100 dias como o mais impopular. A aprovação dele caiu brutalmente. É sinal de que ele está equivocado.
O que ele supunha ser um aval eleitoral para ele, ele não entendeu bem, continua achando que é um aval da sociedade para ele tomar essas posições. Como se a sociedade tivesse refletido sobre a construção ou a transferência da embaixada do Brasil para Jerusalém. Não há uma reflexão na sociedade a esse respeito, me parece que o consenso está muito mais próximo do que existe hoje.
Ele está tomando posições que tem ideologicamente e que supõe que foram aprovadas nas urnas. Ele não foi eleito necessariamente por conta dessa visão ideológica e sim pela perspectiva de reconstruir o país a um nível de normalidade que as pessoas achavam que o governo do PT tinha tirado no final.
Outro dia li um artigo dizendo que talvez a Câmara passasse a decidir as coisas importantes e o presidente cada vez mais inexpressivo.
Acho que este ano de 2019 vai ser muito crítico. Não quero ser pessimista, mas acho que a crise vai ser a forma de governar.
Temer precisou se livrar de algumas acusações e negociar com o Congresso constantemente. O Congresso sentiu o poder dele ali. Quando ele sente o gosto de sangue, quando sente que o governo está fraco dependendo dele, ele passa a assumir progressivamente o espaço que às vezes é ocupado pelo próprio governo.
Quanto mais fragilidade, mais o Congresso vai ocupando esse espaço. Essa é a tendência.
Você acha que está havendo um desmonte do Estado brasileiro?
Não, não necessariamente um desmonte, mas eu acho que em alguns setores está havendo transformações perigosas, como no caso das relações exteriores, e no caso da educação.
Nesses dois setores há um impacto ideológico maior, muito maior do que a posição pragmática e necessária para conduzir as coisas.
No caso da política externa, você abandona uma linha tradicional, brasileira, construída ao longo de todo esse período, e não coloca no lugar nada, apenas algumas afirmações muito vagas.
Originalmente, seria importante uma aproximação maior com os Estados Unidos, mas essa aproximação não poderia ser uma aproximação que emulasse algumas posições americanas, sem que a gente tenha condições de ser os Estados Unidos.
Podemos ser aliados, mas somos um país com condições diferentes, ambições diferentes, interesses diferentes.
E o que foi colocado no lugar da política externa foi uma adesão ampla, uma confiança no Trump como o salvador do Ocidente, e um certo messianismo, uma certa vontade de levar ao mundo a fé e os valores.
Richelieu, no século 17, já dizia que o indivíduo tem salvação, tem uma alma, ele vai para o outro mundo e se salva. Mas o Estado não tem isso, ele tem que se salvar aqui e agora.
Até hoje me parece muito equivocada, toda a política externa.
 
Estava há pouco assistindo uma entrevista com o Ciro Gomes feita nos Estados Unidos…
Nos Estados Unidos está se discutindo mais o Brasil do que aqui. Todos eles estão lá.
(Risos) Ciro falou que esse governo está saqueando nosso país, citando o acordo de Alcântara e a venda da Embraer.
O acordo de Alcântara é mais ou menos um consenso entre nós que acompanhamos aquele pântano que foi a relação com a Ucrânia nesse processo. Este acordo passa a ser uma coisa interessante para o Brasil, para a exploração espacial, porque o lugar é privilegiado, a instalação já está mais ou menos colocada. Eu acho que é um acordo interessante, uma vez que ele determinou bem, que o Brasil está cedendo para que os Estados Unidos usem Alcântara apenas em determinadas circunstâncias.
Por isso eu acho que o acordo de Alcântara talvez tenha sido o único aspecto positivo dessa relação. Então nesse sentido nós divergimos.
Também no caso da Embraer houve quase um consenso de que era um negócio a ser feito, não havia grandes problemas no fechamento desse acordo.
Não são esses acordos que me preocupam. O que me preocupa são as posições mais ideológicas.
Por exemplo, um questão mais delicada, mais próxima, mais preocupante, que é da Venezuela. Nós temos tido uma posição de condenação do Maduro e uma tentativa para contribuir com a democracia, mas sempre definindo que nossos limites são os limites políticos e diplomáticos. Ao passo que os Estados Unidos afirmam que todas as cartas estão sobre a mesa. O que significa indiretamente também, uma intervenção militar.
Aqui no Brasil as posições têm sido um pouco diferentes,
porque a nós que somos vizinhos e vamos continuar tocando essa relação ao longo dos anos, não interessa resolver o conflito desta forma.
O problema é que a posição brasileira é diferente, a posição representada pelo general Mourão, que se estabeleceu no Grupo de Lima, é uma posição que exclui essa alternativa, então há uma divergência nítida aí.
Marca a diferença entre interesses brasileiros e interesses americanos. Ambos querem contribuir com democracia, mas o Brasil não aceita a carta de intervenção militar, pelo menos em tese.
Embora as últimas declarações do Bolsonaro tenham sido um pouco enigmáticas…
Você usou o termo messianismo. Como ele se manifesta nesse governo?
Por exemplo, nas declarações e artigos do ministro das relações exteriores, em que o Trump aparece como líder do Ocidente e o potencial salvador de um mundo em que segundo ele é preciso afirmar os valores cristãos, democratas etc
Eu acho que quando você se coloca em política externa querendo reformar o mundo, é difícil.
Você tem alguma opinião sobre o Olavo de Carvalho?
Olha, eu não tenho opinião. A única vez em que Olavo me mencionou, foi em um livro chamado O Imbecil Coletivo, há muitos anos. Sobre mim ele disse que eu militarmente era inferior a um sargento do exército de Uganda ou de Zâmbia, já não lembro mais. Esperei Uganda ou Zâmbia protestarem (risos), mas como não protestaram nunca mais me interessei.
Mas realmente, discutir um pensador que está fora do Brasil, cujos livros sinceramente não li, eu não tenho condições.
A influência dele se dá através de cursos, palestras, ideias que são adotadas pelos filhos do Bolsonaro, e também pelo próprio presidente.
Um filósofo que tem a visão ideológica de reformar a cultura brasileira através de um governo determinado (risos), necessariamente está muito mais longe do pragmatismo.
Digamos que ele representa no governo Bolsonaro aquele setor que a gente chama de revolucionário, que pensa em alterar completamente as condições. Entra em choque necessariamente com outro setor, que tem a proximidade do real, que necessariamente tem que ser conduzido de forma mais pragmática. Esse setor são os militares.
Você consegue visualizar até onde vai essa perspectiva ideológica?
Até o momento essa questão tem um enorme peso nesse governo. De certa forma a questão ideológica tinha um peso também nos governos de esquerda, apesar do pragmatismo em alguns momentos. A questão ideológica definia nossa política externa, por exemplo empurrando a balança de relações mais pro lado dos países bolivarianos – coisa que não acontece agora.
Mas eu acho que a questão ideológica hoje está mais concentrada em três setores.
Primeiro, relações exteriores. Segundo, educação. E terceiro, direitos humanos.
No ministério dos direitos humanos, temos a ministra disse, que a partir de agora os meninos vestem azul e as meninas vestem rosa.
Você imagine uma mulher que bate na mesa com alguns funcionários ao lado, dizendo o seguinte, ‘agora vamos mudar o país, com meninas vestindo rosa e meninos vestindo azul’ (risos).
Qual o poder que uma mulher e seus funcionários têm para alterar e definir uma situação nesse campo?
Essas questões não se formam a partir de uma definição de governo. Essas coisas se definem na sociedade em várias dimensões nas quais o governo não está presente. Na cultura, nas relações cotidianas, nas relações com os outros países…
Mas o governo pode interferir bastante, inclusive com cortes na cultura justamente…
O governo pode se preparar para isso, mas não deixa de ser idealista, na medida em que está supondo que estas coisas se definem na sociedade a partir da orientação de alguns burocratas, quando na verdade elas são bem mais amplas.
O que está havendo é uma retropia. Que vem a ser o contrário de utopia. Zygmunt Bauman fala isso do mundo, uma tentativa de voltar atrás, uma mitificação do passado. Um passado idealizado, que de fato não existiu assim exatamente, e que é semelhante às utopias, só que em um caminho invertido. A utopia te aponta para o futuro fantasiado, e a retropia te remete para um passado fantasiado para o qual você deve voltar.
Robert Shiller, vencedor do Nobel de Economia, afirmou que o Brasil merecia mais, depois de assistir ao discurso de Bolsonaro no Fórum de Davos.
É verdade, o problema é esse, o Brasil precisa de mais. Eu não sei se ele merece mais, mas ele precisa de mais. Porque ele teve a oportunidade de escolher nas eleições, e o caminho que ele decidiu escolher foi esse, então ele está de uma certa maneira aprisionado neste caminho que escolheu, pelo menos até 2022.
Nós falamos do núcleo ideológico. Existe outro mais pragmático, que procura resolver as questões que foram as mais decisivas na campanha, no meu entender.
O Bolsonaro talvez não pensa assim, ele pensa que o mais decisivo na campanha foi supor que as crianças estavam usando mamadeira de piroca, mas na verdade não é isso, o mais decisivo é a reconstrução econômica, e nesse sentido foi encaminhada a proposta de uma reforma da previdência que não é perfeita, tem alguns defeitos que precisam ser corrigidos, mas é uma reforma da previdência que se dá em um momento em que o Brasil precisa fazê-la. Porque se não o fizer, muito provavelmente ela será feita contra a nossa vontade, como aconteceu na Grécia.
Outro ponto importante e que teve um peso enorme nas eleições, é a questão da segurança pública e combate à criminalidade.
Então eu vejo esses dois núcleos importantes, que dependem menos do comando dele. O Guedes que funcionou pra ele como espécie de Posto Ipiranga, ele já disse que não entende de economia e confia no Paulo Guedes. E o Sergio Moro que é o elemento mais popular do governo dele.
Como está se construindo o campo de oposição a esse governo?
Acho que tem uma desagregação muito grande ainda. Primeiro porque de um lado a própria esquerda está dividida. Há uma parte da esquerda tentando se articular como oposição ao próprio Bolsonaro, e a outra parte da esquerda significativa que é do PT, ainda muita baseada em uma palavra de ordem Lula Livre.
Enquanto uma tem a perspectiva de buscar encontrar um caminho de apresentar alternativas e críticas, a outra concentra a energia maior na libertação de seu líder.
O que possivelmente vai acontecer é a confluência da oposição em determinados níveis e questões. É possível que surja na sociedade movimentos de oposição, ideias de oposição, que não necessariamente se alinhem com a esquerda.
Já estão surgindo. A deputada Tabata Amaral talvez seja um exemplo.
Exatamente. Uma linha de oposição séria que realmente tenha algumas ideias sobre o Brasil e queira discutir e neutralizar as bobagens do governo através dessas ideias.
Esse tipo de oposição que não tem as características da oposição que o PT sabe fazer, e fazia no passado. Mais agressiva, mais disruptiva, do tipo “quanto pior, melhor”.
No estágio em que o Brasil está, qualquer pessoa que diga “quanto pior, melhor”, certamente ficará isolada porque nossa consciência é de que já estamos muito mal.
Há uma nova geração de políticos.
Acho que existe um processo de renovação com algumas pessoas interessantes. Existem também alguns sobreviventes interessantes. A minha tese sempre foi essa, de que era preciso haver encontro dos novos com os sobreviventes que tivessem alguma experiência. Porque a história não começa do zero. Você precisa de experiência e energia para poder seguir adiante.
Tenho procurado contato com parlamentares que conheço, e falado sobre a importância disso, de se formar um núcleo trabalhador, estudioso, que pudesse encaminhar uma oposição programática.
Esse grupo pode não ser suficiente para alterar a correlação de forças, mas tem potencial para alterar algumas situações, desde que saiba se aliar com a opinião pública.

Fernando Gabeira: Venezuela inspira cuidados

Articular a pressão interna e externa parece-me no momento a melhor saída

Fui quatro vezes à fronteira com a Venezuela. A última jornada, entrega de caminhões com comida e remédio, acompanhei de longe. A sensação que tenho é de que algumas pessoas superestimaram a possibilidade da queda imediata de Maduro. Esperam um nocaute numa luta que só poderia ser ganha por pontos. E de certa forma a luta foi ganha. A violência contra os manifestantes e o incêndio dos caminhões contribuíram para isolar um pouco mais o ditador bolivariano.

Numa luta ganha por pontos, o vencedor também sofre alguns golpes. O grupo de países que apoiou Juan Guaidó utilizou um grande símbolo, que é a ajuda humanitária, mas parece ter-se esquecido de que outras crises surgem constantemente no mundo. E um dos princípios da ajuda humanitária é exatamente não usá-la para proselitismo político.

Se entendi bem os informes acerca da reunião sobre a Venezuela na Colômbia, havia uma divergência latente entre a posição brasileira e a norte-americana. Creio que essa divergência pode ser encontrada numa frase que os americanos usam com frequência: todas as opções para derrubar Maduro estão sobre a mesa. A julgar pelo general Hamilton Mourão, que representou o Brasil, há pelo menos uma opção que não nos interessa: a intervenção militar.

Há muitas razões para o Brasil descartar essa hipótese. Uma delas é o fato de termos uma fronteira comum e uma série de questões que precisam ser resolvidas bilateralmente. Um clima de guerra poderia atrair milhares de novos refugiados. Apesar do indiscutível poderio militar dos EUA e das forças bem equipadas da Colômbia, a vitória rápida na Venezuela não é tão previsível.

O centro de todas as táticas, no momento, é tentar descolar as Forças Armadas venezuelanas da ditadura de Maduro. Daí a insistência nas promessas de anistia e o apelo aos oficiais para que pensem no futuro. No entanto, a resistência a uma intervenção militar não surgiria apenas nas Forças Armadas. Há os paramilitares organizados por Maduro e possivelmente orientados pelos cubanos. E há uma polícia política que só teria a perder com a queda do regime.

Mesmo entre os militares há os que parecem imunes a qualquer proposta de anistia. São os generais que ocupam postos no governo e obtêm neles grandes vantagens financeiras. Podem até achar interessante a ideia de uma velhice tranquila. Mas dificilmente se disporão a perder os ganhos materiais que recebem de Maduro em troca de apoio.

É um caminho complicado. Guaidó definiu-o bem, afirmando que a ditadura não cairá por si própria. Não só Maduro pode refugiar-se no seu bunker em Miraflores, como existem centenas de pessoas dispostas a se imolar pelo socialismo do século 21.

O general Mourão também disse algo que me parece correto: a Venezuela não consegue sozinha se livrar desse esquema de dominação. Se Maduro não renuncia, a intervenção militar é inviável e a Venezuela não pode resolver a parada sozinha, o que nos resta como alternativa?

Guaidó marcou nova manifestação para amanhã. Ele, que parece ter capturado a simpatia de grande parte do povo, seguirá nesse caminho. Mas sabemos que nem sempre as manifestações se mantêm quando não conseguem resultados práticos. Elas tendem a refluir com o tempo, para reaparecer adiante, às vezes com mais força.

Articular a pressão interna e externa parece-me no momento a melhor saída, ainda que tome mais tempo. O sofrimento do povo venezuelano é um dado que leva muitos ao desejo de rapidez e nocaute.

Nem sempre soluções fulminantes são as menos dolorosas. Há outras ditaduras no mundo. Algumas são tratadas pela comunidade internacional com certa tolerância. Não só a Arábia Saudita, como a Coreia do Norte são objeto de táticas diferentes dos EUA. Há nisso tudo outra questão delicada: combinar com os russos. E os chineses. Ambos financiam a Venezuela e possivelmente têm sua dívida paga com petróleo. Assim como é necessário tranquilizar os militares com anistia, seria preciso convencer os russos e chineses de que não terão perdas econômicas com a mudança.

Não sei qual é a posição de Guaidó sobre isso. Mas como seu objetivo é conduzir a transição para a democracia, realizar eleições, não só ele, como outros atores da oposição vão precisar se manifestar sobre isso. Naturalmente, Maduro e a cúpula do governo podem também ser alcançados por uma política de anistia e retirada segura da Venezuela.

Imagino como algumas pessoas podem torcer o nariz para essas hipóteses. Combinar com os russos? Deixar Maduro escapar do país? São as contingências de uma vitória por pontos, diferente de simples nocaute.

Supor um caminho mais radical e de curta duração pode trazer sérias consequências, e não só as sangrentas de uma guerra no continente. São também as constantes decepções das pessoas que acreditam que um regime comunista, apoiado pelos cubanos, vai deixar a cena, refugiando-se numa embaixada ou pura e simplesmente partindo num avião de carreira.

Não creio que o Brasil deva temer uma posição moderada. Afinal, embora exista um esforço muito amplo para derrubar Maduro, as consequências do processo violento vão ser mais sentidas nos países vizinhos. Outro dia, em Pacaraima, segui uma ambulância militar venezuelana. Quando chegou a Boa Vista foi direto para o Hospital Geral e desembarcou um jovem soldado que precisava de ajuda.

Isso me fez pensar. Se até os militares cruzam a fronteira em busca de ajuda médica, qual o papel de Roraima num cenário de guerra? Volta e meia há apagões em Boa Vista. A energia vem da Venezuela. Estamos prontos para substituí-la?

O próprio Maduro, ao condenar a ajuda humanitária, de certa forma poupou o Brasil. Disse que tinha dinheiro para comprar nossa carne, nosso arroz e nosso leite em pó. Não é verdade, mas é uma nuance. E, em política, nuance conta. Ele não ignora que o Brasil quer derrubá-lo. Mas distingue o método dos adversários.


Fernando Gabeira: Ouviram do Ipiranga

Orgulho pelo país não nasce necessariamente das aulas de Moral e Cívica; desenvolve-se nas dores e alegrias do cotidiano

Conversa de segunda-feira de carnaval. Antes de vir para o Brasil, passei na velha livraria Bertrand, em Lisboa. Queria comprar um livro, apenas um para a estrada, a longa viagem de volta. Optei pelo de Milan Kundera “Os testamentos traídos”. Dei sorte. É um livro excelente. Num dos ensaios, intitulado “Em busca do presente perdido”, ele fala de Hemingway. Ressalta o esforço do escritor americano em ouvir e anotar diálogos, sua tentativa de capturar na forma e no som a realidade das conversas.

Kundera menciona a novela de Hemingway “Colinas como elefantes brancos”. É um diálogo entre um homem e uma mulher. Cheio de ambiguidades, aberto para a imaginação do leitor. Mas a interpretação de alguns críticos transformou a história numa lição de moral, heroína e vilão, bem contra o mal. As abstrações acabaram engolindo a realidade do momento vivido.

É um tipo de visão do mundo, segundo Kundera, que nos faz morrer sem saber o que vivemos. A realidade se esvai nas abstrações.

Podemos escrever um diário, lembra Kundera, anotar todos os acontecimentos e descobrir que não registramos nenhuma imagem concreta. O presente é um planeta desconhecido. Não conseguimos mais acessá-lo nem pela memória e nem pela imaginação.

Cheguei ao Brasil em meio à polêmica sobre o Hino Nacional nas escolas. O ministro da Educação queria que as crianças o cantassem e recitassem o slogan de Bolsonaro: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Tudo isso já foi desfeito pelo recuo do governo na proposta. O ministro tinha a intenção de levar Moral e Cívica às escolas. Seus opositores respondem também com uma visão cívica, pois alegaram contra a proposta dispositivos constitucionais e algumas leis ordinárias.

E as crianças nisso tudo foram apenas objeto de um confronto entre diferentes visões cívicas.

O que representa um hino nacional para elas? Às vezes acho que, na infância, primeiro brincamos com o som das palavras para mais tarde entende-las. Meu neto aprende a cantar em alemão. Brinca com a sonoridade, mas não tem a mínima ideia do sentido das palavras. Eu mesmo, quando menino, cantava os hinos mais importantes tentando trazê-los para a realidade tangível. “Já podeis da pátria, filhos”, por exemplo, substituía por “Japonês tem quatro filhos”.

Com o tempo, as experiências coletivas, a vivência da história, passei a ouvir os hinos de forma diferente e, em certos momentos, cantá-los emocionado. Mas o que a criança pode fazer com um lábaro que ostentas estrelado? Que tipo de terra é mais garrida? Pode se guardar na mochila o penhor dessa igualdade?

Mesmo essa história do slogan de Bolsonaro, “Deus acima de todos”, pode não confundir as crianças, mas a mim confunde. Deus não está em toda parte? No meio e abaixo ele deveria estar também, creio; não apenas acima de tudo. Pode estar nas pequenas coisas, nos antros mais sórdidos do planeta.

Compreendo que é tudo um modo de dizer. Mas são essas grandes ideias abstratas que povoam a cabeça da direita e da esquerda. Ambas correm o risco de criar uma espécie de cortina que nos afasta da própria realidade.

Existe uma força permanente que visa não apenas ao jogo vital das crianças, seu divertimento, mas também a mascarar a própria face do real. Como diz Kundera: “para que nunca saibas o que vivestes”. Crianças uniformizadas cantando hinos e acenando bandeirinhas estão presentes em muitas situações. Na Coreia do Norte, por exemplo, parecem disciplinadas e endurecidas pelo patriotismo; no entanto, há uma certa tristeza nesses espetáculos.

Alguma coisa no olhar, na rígida encenação, revela que a alegria e a espontaneidade foram embora, que as crianças amadurecem um pouco à força, como frutas de supermercado.

Compreendo que exista o medo de que as crianças não sintam amor pelo seu país, nem se entusiasmem por defendê-lo. Uma de minhas filhas é atleta. Toda vez que que consegue uma vitória internacional, costuma acenar com a bandeira do Brasil.

O orgulho pelo país não nasce necessariamente das aulas de Moral e Cívica nem dos prolixos hinos pátrios. É algo que se desenvolve na experiência coletiva, nas dores e alegrias do cotidiano.

Lançar o véu dos lugares-comuns sobre a riqueza do instante presente, como observa Milan Kundera, é a forma de sufocar o real com abstrações para que a criança nunca saiba o que viveu.


Fernando Gabeira: O país que importa

Temos de achar forma de abstrair baixo nível e nos unirmos no principal: tirar o Brasil da crise, votar a reforma da Previdência

Aqui na Praia do Norte, em Nazaré, pensando nos portugueses que se atiraram, como diz o poeta, ao mar absoluto, ao encontro do impossível — aqui sigo surpreso com o que acontece conosco, com o que fizemos de nós no outro lado do Atlântico. São tristes as imagens que chegam do Brasil, a mulher deformada pelo espancamento, a jovem mãe correndo com um bebê no colo do conflito entre torcida e polícia. E Maduro fechando a fronteira para comida e remédio.

Todo cais é uma saudade de pedra, como lembra Fernando Pessoa. É preciso um momento de reflexão à distância. A mais recente crise política no Brasil seria tema de um folhetim, amores enviesados, mentiras, veneno e fel.

Temos de achar uma forma de abstrair esse baixo nível e nos unirmos no principal: tirar o Brasil da crise, votar a reforma da Previdência, reduzir o número de crimes. No caso da Previdência, ela tem a aprovação das pessoas preocupadas com o país e não pode ser nem rejeitada nem mutilada pelo Congresso.

Por mais que o governo considere a imprensa como inimiga, os ambientalistas como obstáculo ao progresso, é preciso ajudá-lo, pois o que está em jogo no momento é muito maior que ele.

O Congresso derrubou o decreto que deformava a Lei de Acesso à Informação. Já havia criticado Mourão por tê-lo lançado. A transparência venceu. Faz parte do jogo ganhar ou perder. Sou catedrático em derrotas e asseguro que não importam tanto. Com uma boa análise, fugimos das inevitáveis; com alguma cintura, transformamos outras em vitória relativa.

Num outro artigo em que divago sobre o tempo na concepção do historiador Fernand Braudel, classifico a vitória de Bolsonaro apenas como uma conjuntura em que vários fatores convergem para alterar o tempo rotineiro.

Guardadas as proporções, uma convergência que também aconteceu nos Estados Unidos. São conjunturas que necessariamente não quebram a longa linha do tempo.

Conheço um pouco do Brasil e de Bolsonaro. Quando se tornou um candidato favorito, sabia que sua experiência ainda era limitada. E que sua vitória exigiria de todos nós uma dose de maturidade para evitar traumas. O resto ficaria por conta dos eleitores em 2022.

Foi essa a escolha majoritária. Diante dela, creio eu, o ideal é mapear os temas essenciais para sairmos do buraco. E criticar o governo sempre que se afaste deles.

Intrigas, vaidades, embriaguez do poder sempre se apossam das pessoas mais simples. Ainda mais no Brasil, onde tudo parece ter um viés novelesco: “Carlos Henrique, nunca pensei que fosses me trair…”

De novo, reafirmo aqui minha defesa do jornalismo preventivo. Não se trata de evitar as coisas feias, mas simplesmente de colocá-las no contexto.

Com todo o respeito pelo seu trabalho, Bebianno não existia na política brasileira até a campanha de Bolsonaro. Por sua vez, Bolsonaro nunca foi um hábil estadista, atenuando arestas, unindo forças divergentes. São, por assim dizer, forças não buriladas, que podem amadurecer ou seguir aos trancos até o fim do mandato.

Bolsonaro sempre foi um homem risonho e brincalhão, embora, é natural, tenha ficado mais sombrio depois do atentado que sofreu. Não me importo com as coisas que diz sobre o meio ambiente, muito menos com seus seguidores fanáticos. Pertenço a um grupo no Brasil que leva porrada dos dois extremos e já se acostumou.

Na hora de fazer a coisa certa, como proibir barragens a montante e dar um prazo para desativar as que existem, ele o fez. Será que está esverdeando? Será que, como todos os outros verdes, ele é uma espécie de melancia, verde por fora, vermelho por dentro?

É um país estranho. Não sei se os portugueses traçariam o mesmo rumo se soubessem do desfecho. Sei apenas que é hora de partir. Saudade e dever me empurram de volta, depois desses dias ao lado de Fernando Pessoa:

“E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente/ A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária/ É uma coisa que a gente aprende pela vida afora, onde tem que tolerar tudo/ E passa a achar graça ao que tem que tolerar/ E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!”

O poeta me saúda no cais:

“Boa viagem! Boa viagem!/ Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor /De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos.”


Fernando Gabeira: Brasil, uma visão de tempo

Nada se parece mais com comunista do que as ideias de Bolsonaro sobre meio ambiente

A longo prazo estaremos todos mortos. Essa frase, atribuída a lorde Keynes, é verdadeira. Mas prefiro ficar com as dimensões de tempo descritas pelo grande historiador Fernand Braudel: o tempo imediato é local, a convergência de fatos que produzem uma nova conjuntura é a extensa linha do longo prazo. Naturalmente, estaremos todos mortos, mas existe uma linha de longo prazo e devemos interrogá-la para definir uma estratégia.

No meu entender, a vitória de Bolsonaro é uma convergência de fatos que produziu uma nova conjuntura. Mas continuo achando que na linha do tempo, no longo prazo, o Brasil não pode fugir de seu destino de detentor de grandes riquezas naturais que são um trunfo econômico e diplomático.

O governo Bolsonaro foi eleito pela maioria, de forma democrática. Alguns de seus ministros, Agricultura e Meio Ambiente, consideram que o controle ambiental sobre a produção é coisa de comunista fantasiado de defensor do meio ambiente. Melancias, verdes por fora, vermelhas por dentro. O chanceler Ernesto Araújo classifica o aquecimento global como uma invenção do marxismo globalizante.

Isso não corresponde à realidade. Eles não conhecem um país comunista. Não visitaram o Leste Europeu, não viram a devastação ambiental deixada pelo regime. Os desastres por lá, a julgar por Chernobyl, eram piores que os nossos. Aqui, contaminamos com lama e minério dentro de nossas fronteiras. As usinas nucleares espalham a radiação por todo o continente, às vezes além dele.

Os ministros de Bolsonaro ignoram até o debate nacional. Em 2003, quando saí do PT, afirmei que o partido tinha uma visão ambiental atrasada e replicava a visão dos velhos partidos comunistas. A ideia dos antigos quadros era de que o essencial era o crescimento econômico, a melhoria de condições dos trabalhadores. Era preciso competir e vencer o Ocidente.

Por mais que Bolsonaro deteste os comunistas, nada se parece mais com eles do que suas posições sobre crescimento e meio ambiente. Na realidade, seu ponto de partida é diferente. Bolsonaro defende a propriedade privada e acha que está sendo tolhida pelo controle ambiental. Pelo menos é isso que depreendo de seus discursos de campanha.

A defesa da propriedade privada é uma boa causa. No entanto, ela tem nítidos limites. Um rio que passa na sua fazenda não pode ser usado de qualquer maneira. Há pessoas a jusante, comunidades que dependem dele.

Por causa disso, afirmamos em lei que os rios são de responsabilidade dos Estados ou do governo federal. E criamos um instrumento democrático para geri-los: o comitê de bacia, no qual os usuários são também representados.

Seria fácil descartar a visão de Bolsonaro e seus ministros, afirmando só que ignoram os fatos. Eles, ao que parece, têm uma visão de longo prazo. Acreditam que o meio ambiente pode ser explorado com menos limites se avançamos em ciência e tecnologia. É uma suposição muito frequente a de que as principais tarefas da natureza podem ser substituídas por descobertas científicas. Ainda que isso fosse possível, estaríamos construindo uma civilização solitária, a mais solitária que existiu até hoje, dispensando plantas, animais, fontes de água limpa.

No meu entender, a linha decisiva de longa prazo vai prevalecer. Governos passam. E ainda que não passassem (há os que duram demais), a realidade acabará por se impor.

Os exemplos estão aí. Dilma fazia um governo próximo do marxismo. Mas após o desastre de Mariana ela não mandou fechar as barragens existentes nem proibiu as que são construídas a montante. O governo Bolsonaro, que odeia ecologistas e acha que o controle ambiental deveria ser relaxado em nome da produtividade e do respeito à propriedade privada, fez exatamente o que o chamado marxismo não fez: proibiu as barragens a montante e deu um prazo para que fossem esvaziadas.

Isso foi depois de Brumadinho. Mas não desmonta o argumento de que os fatos acabam produzindo uma aproximação do que chamo de linha estratégica de longo prazo.

O ministro do Turismo de Bolsonaro compreendeu também que a melhor tática para salvar Brumadinho é estimular o turismo, sobretudo o baseado no grande museu a céu aberto de Inhotim. Na verdade, o museu é só uma das atrações da área, rica em águas, no pé da Serra do Rola-Moça, com grandes pedaços de Mata Atlântica ainda preservados.

Ao desenvolver essas ideias, não quero dizer que exista uma história pré-escrita, nem aconselhar que as pessoas cruzem os braços e deixem de lutar por melhores condições ambientais. Ao contrário, quero dizer apenas que existem fortes tendências determinadas por nossa rica biodiversidade que abrem um caminho para o Brasil num mundo assustado com a degradação planetária.

Não importa tanto, aqui, se o ministro gosta de laranjas ou tangerinas, neste caso específico o importante é que faça a coisa certa. Não importa, ainda, se Bolsonaro atribuiu ao PT a defesa de nosso meio ambiente ou se o chanceler confere ao marxismo a constatação de que o planeta esquenta de forma perigosa. Karl Marx compartilhava o otimismo burguês com a exploração ilimitada dos recursos naturais.

Quem vai conter a realidade quando ela se revela em eventos extremos, furacões e tempestades, quando a barragem mineral desce na forma de um tsunami de lama? Não tem nenhuma importância que continuem a combater um comunismo desenhado na cabeça deles, nem mesmo que nos mandem prender por criticá-los com acidez. Conjunturas, convergência singular de alguns fatos, são ebulições que nos deixam pensar tudo, sobretudo fantasiar a realidade como um produto de nossa ideologia. Mas a longa linha do tempo, as grandes tendências históricas acabam nos trazendo ao mundo concreto.

Esta é minha interpretação livre da visão de tempo de Braudel. Não sei se ele autorizaria minha tosca leitura. Pelo menos estou lendo e tentando entender.

 


Fernando Gabeira: Um futuro para Brumadinho

Ter o mais belo museu a céu aberto do mundo e uma estrutura de hotéis e restaurantes sugere o novo caminho

De novo em Brumadinho, desta vez para falar de reconstrução, como em Mariana. A cidade tem dois polos: cultura e mineração. O Museu de Inhotim, erguido no meio de um lindo pedaço da Mata Atlântica, pode ser um dínamo desse processo. Recebe 350 mil pessoas por ano e reabriu neste fim de semana. Nele trabalham 600 pessoas.

Se os artistas brasileiros quiserem dar uma força, é possível fazer a cidade transitar da hegemonia da mineração para se tornar um centro cultural. Será preciso apenas esquecer as diferenças ideológicas. Certos temas de união nacional ajudam até a lidar com as divergências.

Não sou especialista em barragens. Os engenheiros pensam coisas claras. Um deles sugeriu que a barragem se rompeu por liquefação. Desde esse momento, levei a serio a hipótese.

Agora, fico sabendo que a barragem de água estava a montante do minério armazenado. Vazava constantemente. A Vale construiu um cano para desviar essa água. Mas será que foi suficiente? Os sensores funcionavam mal, e faltavam cinco deles.

O atestado de estabilidade dado pela empresa alemã TÜV SÜD tratou desse tema. E parece que houve pressão para que os alemães transigissem: ou davam o atestado de estabilidade ou seria rompido o contrato com a Vale.

Indo um pouco adiante, como detetive amador, lembro que a barragem de água estava tão cheia que ameaçou romper após o desastre. No domingo de manhã, a sirene tocou por lá, pelo perigo da barragem de água. Possivelmente, a mesma sirene que silenciou diante do tsunami de lama. Nesse caso, enganada pela insuficiência dos sensores. Diante de tais circunstâncias, não é correto dizer, como disse a Vale, que a barragem de rejeitos era de baixo risco e grande poder de dano. Ela era de alto risco.

Essa é a conclusão de um ignorante esforçado. Quando a Vale disse que o desastre era inexplicável, ela estava de posse de todos os dados, tanto que tentava desviar o curso da água.

Espero que os fatos confirmem esta hipótese, pois, até agora, não consegui ouvir alternativas. Houve uma fake news, na época do desastre, dizendo que explodiram uma bomba. Um venezuelano e um cubano teriam sido presos. E não é que circulou. Os venezuelanos não têm bombas para uso externo: estão à beira de uma guerra civil.

Apesar de tudo, espero que a Vale participe do esforço de reconstrução, sem ambiguidades como em Mariana. Seria aprender a operar num espaço estrategicamente mais valioso que suas minas de ferro.

A entrada de Brumadinho é feinha e encardida. Na cidade, há um conjunto de painéis pintados por artistas brasileiros. Foi uma parceria da Vale com a prefeitura. Os painéis perderam a cor, foram degradados pelo descaso, alguns parecem uma colagem de minério de ferro.

A ideia geral era esta: já que produzimos minério, por que se importar com a beleza? Em outras palavras: já que vai sujar mesmo, por que manter limpo?

Antes do desastre, fui a Brumadinho uma única vez. Na época, para a palestra de fundação do Partido Verde, que hoje, quem diria, é o partido do prefeito. Não o conheço bem. Apenas o entrevistei sobre os fatos correntes. Mas, se pudesse dar um palpite, diria que o futuro de Brumadinho deveria se concentrar numa ideia simples: entra a beleza, sai a feiura.

As mineradoras costumam deixar apenas buracos, quando não levam as montanhas, como levaram o Pico do Cauê, na Itabira de Drummond.

Ter o mais belo museu a céu aberto do mundo e uma estrutura de hotéis e restaurantes sugere o novo caminho, que nem merece ser chamado de economia criativa: é uma decorrência lógica. Seria preciso um novo marco regulatório para exploração de minério numa área onde a cultura tem um grande papel. Brumadinho tem lindas estradas vicinais com áreas preservadas. Os 300 hectares enterrados na lama são apenas uma pequena parte de um município maior do que Belo Horizonte. Seu bairro mais atraente, Casa Branca, está no pé da Serra do Rola Moça, um parque estadual. É um belo roteiro, que pode florescer no futuro.

Em Casa Branca, onde há muitos moradores fugidos do estresse da grande cidade, há um movimento de defesa da águas em permanente choque com a mineração. O que alguns mineradores chamam de Quadrilátero Ferrífero é, na verdade, para os moradores um quadrilátero aquífero.

Há um passado e um futuro para Brumadinho. Hora de virar o jogo.


Fernando Gabeira: Algumas reflexões diante da lama

Nem tudo será esquecimento; 348 pessoas soterradas pela lama ficarão para sempre na memória das famílias

Difícil não ser caótico para descrever uma catástrofe.

“O Rio? É doce/ A Vale? Amarga/ Ai, antes fosse/ Mais leve a carga” (Carlos Drummond de Andrade).

Viajei triste para Brumadinho. Estou cansado de desastres. Conheço até sua lógica: tristeza, indignação, medidas urgentes para acalmar os ânimos e logo depois o esquecimento.

A única forma de suportar o que veria era levar a obra de Drummond na viagem. Ninguém melhor do que ele descreveu as relações das mineradoras com a paisagem e mesmo com as almas. Talvez seja o melhor caminho para entender toda essa história.

Drummond era ao mesmo tempo a testemunha e o profeta. Morreu antes do desastre de Mariana, não viveu a fase trágica que se completa agora com o desastre em Brumadinho. A maneira como descreve Itabira é um desastre em câmera lenta.

Depois de Mariana, passei a seguir o trilho da mineração. Cobri um vazamento de alumínio nos igarapés de Barcarena, no Pará. Em seguida, o rompimento do mineroduto em Santo Antônio do Grama.

Não foram em barragens, onde se situa o maior perigo, sobretudo a do tipo de Mariana, que deveria ser proibida. Era uma decorrência do desastre. Mas onde estavam governo e Parlamento? Muito próximos da indústria, muito longe das pessoas e da natureza.

Onde estava a Justiça no caso de Mariana? Por que tão lenta? No ano passado, estive lá e nos escombros comentei a decisão de um juiz de suspender o processo contra a Samarco. Chicanas.

Tenho um pouco de escrúpulo em dizer: isto não pode se repetir. As coisas se repetem tanto. O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, assumiu o cargo com o slogan “Mariana nunca mais”. Agora, a Vale quer prometer Mariana e Brumadinho, nunca mais. É só ir empurrando o nunca mais para o fim e acrescentando alguns nomes antes dele.

Lembra-me dos trens italianos, rapido, molto rapido, rapidissimo .

Acreditamos demais na palavras. O presidente da Vale estava na plateia em Davos quando o presidente Bolsonaro afirmou que o Brasil é o país que mais protege o meio ambiente no mundo. Falava apenas da relação das florestas com agricultura e pecuária.

Isso é um problema antigo com Bolsonaro. Ele teve a ideia de fundir o Ministério da Agricultura com o do Meio Ambiente. Argumentei que o meio ambiente era mais amplo, crise hídrica, saneamento básico, estendia-se até o licenciamento no pré- sal.

A pressão de todos os lados o fez recuar: manter o Ministério do Meio Ambiente. Mas, ao falar em Davos, de novo ele abstraiu o meio ambiente e o reduziu à questão do campo.

Bolsonaro dizia na campanha que o Ibama é uma indústria de multa. O Ibama não recebeu, por exemplo, nenhum centavo da multa de R$ 250 milhões aplicada à Samarco. É uma indústria completamente falida. Seus devedores não pagam.

Não vou argumentar mais, o desastre fala por si: toneladas de lama, bombeiros rastejando no barro fétido, uma vaca atolada, uma antena de TV flutuando, uma caixa-d’água, o desespero das famílias.

A sirene que não tocou, e a lama levou os hóspedes da Nova Estância, a própria pousada foi arrastada. Eles tinham um plano de fuga. E a sirene não tocou. Eram 34, ao que me consta. E mais um bebê na barriga da mãe, mulher de um arquiteto brasileiro que vivia na Austrália e veio conhecer Inhotim. E a sirene não tocou.

A resposta geral do governo Bolsonaro foi rápida. Vem aí um Plano de Segurança das Barragens. Faltou aparecer o responsável pela Agência Nacional de Mineração. Pode ser que não tenha visto, estava no meio do desastre.

O que mais temo no pós-desastre é o esquecimento. Triste como a música do Piazzolla “Oblivion”. É um país se esquecendo de si próprio. Essa talvez seja a resposta para a pergunta mais adequada. Por que o que não pode se repetir tem se repetido? Esquecimento. Mas, pelo menos, a obra de Drummond lembrará para sempre as origens do drama:

“Quantas toneladas exportamos/ De ferro?/ Quantas lágrimas disfarçamos/ Sem berro?”

Nem tudo, entretanto, será esquecimento. Trezentos e quarenta e oito pessoas soterradas pela lama ficarão para sempre na memória das famílias, dos amigos, dos bombeiros de vários pontos do Brasil, dos soldados israelenses, voluntários, repórteres amadores, todos que se aproximaram física ou emocionalmente da tragédia. Carregam na memória o capítulo trágico do testemunho poético de Drummond.


Fernando Gabeira: Estreia e reprises

Bolsonaro se vê diante do desafio de João: divulgar a verdade e esperar que ela o liberte

A ida de Bolsonaro a Davos é parte da aposta maior de seu governo: reformas e retomada da economia. A reforma da Previdência, por exemplo, não será tão consensual como Paulo Guedes afirmou. No entanto, tem chance de ser realizada.

Concordo com a tese geral de que um passo correto na economia fortalecerá seu governo. Discordo, entretanto, de quem acha que a economia neutraliza todos os outros problemas.

Não tem sido assim. No passado discutia com simpatizantes do PT o mesmo tema. Argumentavam que o importante era crescimento e renda e a corrupção seria apenas uma nota de pé de página na História do período. Teoricamente, acho que as dimensões econômica e política se interpenetram e, em certos momentos, uma delas pode ser a determinante.

O período de democratização revelou para mim que existe uma grande demanda de valores na vida pública. Na primeira eleição direta, Collor era o caçador de marajás; Lula, o que traria a ética para a política. Na verdade, era uma demanda já na eleição do período anterior, em que Jânio venceu esgrimindo uma vassoura.

O governo Bolsonaro surge com uma demanda maior, potencializada pelas redes sociais e diante de um País bastante severo e conhecedor das táticas evasivas dos políticos. Por isso vejo com a apreensão o episódio envolvendo o senador Flávio Bolsonaro. Os elementos que existem ainda não nos permitem concluir sobre o conteúdo. Mas é possível ter uma opinião sobre como as pessoas reagem quando estão sob suspeita – o comportamento acaba revelando mais do que a própria denúncia.

Quando Flávio Bolsonaro pediu ao Supremo que suspendesse as investigações, usando o foro privilegiado, alguns analistas concluíram que tinha tomado um elevador para o inferno. No primeiro andar já encontrou uma fogueira. Durante a campanha, Jair Bolsonaro, ao lado de Flávio, condenou o foro privilegiado.

Novas revelações – é sempre assim – surgiram e as explicações foram ficando mais difíceis e complicadas.

Surge um novo elemento com a prisão do Escritório do Crime, uma organização criminosa. Nova fogueira pelo caminho. Um dos milicianos teve a mãe e a mulher empregadas no gabinete de Flávio, então deputado estadual. Flávio disse que a responsabilidade da contratação era de Fabrício Queiroz, o motorista que já o enredara nas transações bancárias, levantadas pelo Coaf. Acontece que é muito difícil um deputado não conhecer perfeitamente seus assessores.

Além do mais, Flávio tem uma visão de que as milícias são um mal menor, porque expulsam os traficantes. E achava razoável que fossem financiadas pela comunidade.

São posições muito delicadas porque se aproximam da apologia do crime, na medida em que ignoram que as milícias vendem gás, controlam parte do mercado imobiliário, do transporte alternativo e em certos lugares elas próprias até assumem o tráfico de drogas.

Bolsonaro elegeu-se repetindo a frase “conhecereis a verdade e ela vos libertará”. Ele se vê agora diante do desafio de João: divulgar a verdade e esperar que ela o liberte.

É apenas uma suposição que o caso de Flávio não atinja o governo. Qualquer observador pode constatar nas redes sociais o desgaste entre os próprios apoiadores do governo. Foi uma campanha feita com explicações diretas pela rede. Os seguidores estão perplexos, pois as explicações agora são em entrevistas escolhidas.

Como o governo Bolsonaro tem bastante popularidade, as perdas talvez sejam subestimadas. Mas em política sabemos que não é bom sangrar.

Na verdade, quem acompanha os debates na direita observa que já existem conflitos abertos, alguns preocupantes. A viagem de um grupo de parlamentares do PSL à China produziu um grande debate interno. Isso tudo se passa na internet, mas a sensação é de que foi uma viagem sem briefing do Itamaraty, sem visão dos limites.

Segundo Olavo de Carvalho, os deputados foram conhecer um sistema de monitoramento facial da Huawei, empresa chinesa acusada de espionagem e que é um dos temas da guerra comercial EUA x China.

De modo geral, somos muito sensíveis a sistemas de monitoramentos. Lembro-me do Sivam, fizemos muito barulho em torno dos equipamentos que iriam monitorar a Amazônia. Talvez o barulho tenha sido excessivo, o problema maior é usar todo o potencial do sistema. Isso apenas para dizer que não é uma tarefa de deputados recém-eleitos discutir essa questão na China. Envolve outras dimensões de governo.

O mais desolador é o nível do debate entre eles na redes sociais. Revela, para mim, uma das grandes distorções do presidencialismo no Brasil. Um presidente popular arrasta consigo dezenas de parlamentares. Na verdade, muitos deles são bombas de efeito retardado.

É possível que com eles, ou apesar deles, as primeiras batalhas da economia sejam vencidas. Mas de novo coloco a questão política e cultural: a direita tem consistência para dirigir um país tão diverso?

Outra dimensão preocupante é a questão ambiental. É uma ilusão ver isso com lentes ideológicas. Não é possível que considerem o tema uma trama marxista. O próprio organizador do Fórum de Davos, Klaus Schwab, questionou Bolsonaro sobre isso. Não parecia um marxista.

Antes de partir para Davos, o governo designou para o Serviço Florestal um deputado que é autor de uma lei autorizando a caça de animais silvestres. Pode argumentar que ela existe nos EUA. Eles têm um sistema de controle maior e, além do mais, por que se inspirar nos EUA nesse caso? Não há espaço para essa lei no Brasil. Nem para os setores que querem avançar sobre a floresta para criar gado, liberando carbono e toda a flatulência.

Economia à parte, os passos do governo nas dimensões político-culturais me deixam em dúvida se estou vendo estreia ou versão de um antigo filme.


Fernando Gabeira: Lições do terror

No fundo, a simples enumeração de ataques é, de forma involuntária, o jogo que interessa aos líderes de facções criminosas

Calor absurdo aqui no interior do Mato Grosso do Sul. Coisas do marxismo internacional. Acabo de ler o livro de Afonso Arinos, graças às longas viagens de avião: 1.780 páginas.

De tantos pedaços da história, discursos internacionais, personalidades, tenho espaço apenas para destacar uma frase da neta de Arinos. A mulher dele disse que ele andava triste. A menina resolveu consolá-lo:

— Vovô, não fique triste, o senhor tem sua casa, seus filhos, a sua bengala…

Livros como o de Arinos e Joaquim Nabuco me reconciliam com o Brasil. Fico orgulhoso de me dedicar ao estudo do país.

Em Fortaleza, vi um homem com um carrinho de pequenas frutas amarelas ao longe e disse: seriguelas. O homem se aproximou e, ao passar por nós, perguntei: que fruta é essa? Seriguelas, respondeu.

Fiquei feliz como um menino que passa na prova. Deveria ser um pouco mais sério porque estava cobrindo precisamente a onda de ataques no Ceará.

Acontece que estou reavaliando um pouco minha noção de jornalismo. Nossa tendência é dramatizar ataques, cortar as imagens de forma que o fogo e a destruição se destaquem.

Quando examino mais de perto, os ataques, na verdade, são feitos em lugares desertos e em altas horas da noite. Um exemplo disso foi a dinamite que apareceu no metrô. Não tinha detonante, seu objetivo era assustar.

Não quero dizer que o tema não seja grave. As cadeias estão superlotadas. As organizações criminosas cresceram muito, não apenas no Ceará. E um grande número de jovens sem emprego ou escola é atraído para as facções.

Há alguns anos li um livro sobre um congresso ligado à ONU cujo tema era diplomacia preventiva — como atuar para evitar conflitos, sobretudo aqueles que realmente podem ser evitados.

Na época, falou-se também rapidamente no jornalismo preventivo. Nos anos 1960, tínhamos cadernos teóricos e talvez me dedicasse a escrever sobre essa nova forma de jornalismo.

Mas, como as tarefas aumentaram, resta-me tentar aplicar a ideia na prática. Os puristas podem objetar: prevenir? O jornalismo não previne, não evita, nem provoca: apenas informa.

Mas é de informação de que se trata. Informar significa também colocar num contexto um pouco mais amplo.

Um pouco de estudo militar mostra que ofensivas são um momento delicado: os atacantes se expõem e costumam sofrer grandes perdas.

Com quase 4 00 pessoas presas, parece que aconteceu com as organizações criminosas do Ceará.

Em Fortaleza, há agora um centro de inteligência para todo o Nordeste. Eu visitei o centro, mas não pude entrar porque precisava de licença especial, essas coisas. Imagino que tenham aproveitado esse momento de ofensiva e muitas prisões para entender um pouco mais das organizações criminosas.

O que torna o problema do Ceará mais sério ainda é o fato de que muitas de suas coordenadas estão presentes em outros estados.

A simples enumeração de ataques, grande parte deles em lugares remotos e escuros, no fundo, é, involuntariamente, o jogo que interessa aos líderes das organizações criminosas.

Eles precisam de um tipo de cobertura para difundir o medo. Mas chega um momento, e isso vale também para o terror político, que é preciso vencer o medo coletivo e encarar a vida com normalidade, mostrar que as coisas seguem, apesar deles.

Artistas locais fizeram uma campanha intitulada Quero Meu Ceará de Volta, evocando todas as coisas boas numa cidade tão simpática como Fortaleza: andar nas ruas, ter cadeiras na frente de casa.

A ideia, creio eu, estava numa direção correta. Mas era preciso mais que isso: era preciso retomar as ruas com firmeza. Isso seria também uma tarefa para políticos. Mas eles andam meio escondidos. Exceto os que têm de tratar diretamente do tema pela responsabilidade de governo, os outros são muito discretos, para usar um termo leve.

De qualquer forma, creio que os episódios do Ceará surgiram e sumiram sem que houvesse uma discussão mais detalhada sobre eles.

Minha impressão é que já é tempo de avaliarmos as relações de jornalismo e terror. Minha sugestão não é, absolutamente, a de omitir episódios atemorizantes.

Em muitos casos, informar com mais profundidade e exatidão pode abrir caminho para que a sociedade compreenda o que se passa e retome as rédeas de seu cotidiano.


Fernando Gabeira: Sobrou para Darwin

Assim como o PT, os vencedores de agora parecem achar que o Brasil começou com eles

Sabia que Darwin não passaria incólume por este governo. Inclusive escrevi um artigo prevendo esta hipótese. Nele, falava de um filme americano do século passado, cujo título no Brasil foi “O vento será tua herança”.

Na verdade, o filme era sobre um júri onde se discutia o ensino da teoria da evolução nas escolas. Ficou conhecido como o júri do macaco.

Darwin esteve no Brasil. Parte de sua teoria foi elaborada a partir da experiência em Galápagos. Outro dia, percorri seu caminho no interior do Rio, dentro do território de Maricá. Observava as possíveis plantas que Darwin viu e, ao passar por um casarão da fazenda, vislumbrei a grande pedra da qual, segundo se diz, os escravos se jogavam. A passagem de Darwin pelo Brasil não se limitou à natureza. Ele se impressionou com a escravidão, à qual ele e sua família se opunham na época.

A ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, lamentou que a igreja evangélica tenha perdido espaço para Darwin nas escolas brasileiras, nas quais o criacionismo não é ensinado. O ministro da Ciência, Marcos Pontes, já fez a defesa de Darwin. De qualquer forma, ainda existe no ministro da Educação uma desconfiança em torno da ciência, tema que também abordei no artigo anterior.

O GLOBO tentou comprar uma autobiografia de Damares. Não deu certo porque a edição de “Jesus sobe no pé de goiaba” foi suspensa. O interesse do GLOBO em Damares é o de repórter. O meu é de escritor. Ela é a grande personagem deste princípio de governo.

Imaginei até uma série de ficção, que começaria com uma ministra de cabelos longos com as mãos na mesa de uma de suas três secretárias, alguns carros usados no pátio, dizendo: “De agora em diante, neste país, menino se veste de azul, menina se veste de rosa”.

Eu a sigo com um olhar fascinado desde a história de ter visto Jesus na goiabeira. Estava pronto para defendê-la dos lobos do ceticismo, mas ela mesma recuou. Disse que era uma fantasia de criança.

O recuo a torna uma personagem mais complexa ainda. Se viu Jesus na goiabeira e está relativizando, sua visão é sinal de que não quer enfrentar os céticos.

Mas se foi apenas uma fantasia infantil, por que apresentá-la como se tivesse acontecido de verdade? Aí entraríamos num outro território, o do também fascinante personagem de Sinclair Lewis, chamado Elmer Gantry. No cinema, foi vivido por Burt Lancaster. Era um genial manipulador. Limito-me a observar os primeiros passos do governo, mas, sinceramente, não é o caso ainda de fazer oposição. A fase ainda é a de Sancho Pança, limitando-me a dizer: “Olha mestre, olha o que está dizendo.”

O governo retirou o Brasil do Tratado de Migração da ONU. Disse que o fez em nome da soberania nacional. Mas o tratado não era vinculante. Apenas uma tentativa de organizar o maior caos que a humanidade vive, os deslocamentos em massa.

Bolsonaro falou como se o Brasil estivesse na mira de multidões de refugiados. Mas não está. Na verdade, temos mais brasileiros no exterior do que estrangeiros procurando o Brasil.

Não se pensou no destino dos brasileiros lá fora. Não podem ser vistos com má vontade, uma vez que seu país é tão fechado a acordos sobre o tema?

Bolsonaro falou também que os imigrantes aqui devem saber cantar o Hino Nacional. Minha avó, analfabeta, falava mal o português. Seria uma tortura para ela cantar o Hino Nacional, mas isso não significa que não gostasse do Brasil e não trabalhasse como uma moura.

Sinceramente, não sei se os EUA de hoje são o modelo para uma política migratória. A Alemanha tem uma posição diferente. O Canadá, que me parece mais adequado como referência, deveria ser também observado.

No Rio, um deputado do PSL, a propósito de um centro indígena realmente decadente, declarou que quem gosta de índio deve se mudar para a Bolívia. Se sua inspiração é militar, por que só o capitão Bolsonaro, descartando Marechal Rondon? Talvez nem saiba quem foi Rondon.

Assim como o PT, os vencedores de agora parecem achar que o Brasil começou com eles. A tarefa é sempre se lembrar do país imenso que não cabe nas estreitas ideologias.


Fernando Gabeira: Um novo ato em fevereiro

Moro vai comer o pão que o diabo amassou para aprovar a sua agenda no Congresso

A relação de Bolsonaro com o Congresso é um enigma dentro do enigma. Ele promete romper com o velho esquema de governo de coalizão.

Esse já é um dos grandes desafios. Toda vez que se tentou, a percepção era de que formar um governo técnico seria possível, porém discriminar os políticos o levaria à ruína, uma vez que entre os políticos existe gente capacitada e ainda sem grandes problemas. A própria expressão discriminar é impensável num governo amplo.

Bolsonaro decidiu substituir os partidos pelas bancadas temáticas. Nada garante que elas não tenham os mesmos vícios, ou que possam oferecer fidelidade em temas que escapam ao seu campo de ação.

Houve renovação no Congresso. E foi superior às nossas previsões pessimistas, baseadas no fato de que os velhos caciques concentraram a grana para financiar a campanha.

Mas não foi possível, por falta de articulação ou mesmo perspectiva, unificar os novos com os mais experientes, aqueles que sobraram do desastre e poderiam pôr seu conhecimento a serviço de uma transformação.

Sozinhos, os novos não elegem a Mesa. E se elegessem estariam em dificuldades. Costumo dizer que 512 deputados estreantes e bem-intencionados seriam facilmente enrolados por uma só raposa regimental como Eduardo Cunha.

A saída que parece possível no momento é manter a velha direção; no caso da Câmara, Rodrigo Maia. Ele não sobrevive apenas por falta de alternativa. Sabe conciliar-se com as diferentes tendências políticas, enfim, traz um aprendizado que os novos não têm e os sobreviventes que por acaso o tenham não conseguiram capitalizar.

Dizem que Renan Calheiros é o favorito no Senado. Seria mais uma referência do passado, mostrando a limitação das mudanças. Não surgiu ainda no Senado, apesar da grande renovação, uma alternativa viável. O trunfo para evitar a vitória de Renan seria a conquista do voto aberto.

Sou favorável ao voto aberto e, dentro dos limites, lutei para que fosse ampliado o seu alcance na pauta de decisões. Mas o voto aberto numa eleição é sempre problemático.

A minoria pode se sentir constrangida em abrir um flanco para a vingança dos vencedores. Não falo de todos. Alguns são claros adversários de Renan e vão antagonizá-lo independentemente de voto aberto. E Renan saberá que votarão contra ele, mesmo na votação fechada.

O que os antigos dirigentes do Congresso podem oferecer a Bolsonaro, e parece que já indicaram isso, é rapidez e boa vontade nas reformas econômicas. Renan chegou a falar num processo rápido de votação, um fast track à moda do Congresso americano.

Se a aliança nas teses econômicas é fácil, em outro campo eles vão fazer corpo mole: as medidas contra a corrupção. Renan é a esperança que resta a alguns adversários da Lava Jato. Em vários momentos já demonstrou sua oposição a Sergio Moro.

Aí está o problema para Bolsonaro. Se, de um lado, será mais rápido aprovar medidas econômicas que não são assim tão populares, de outro, Moro vai comer o pão que o diabo amassou para aprovar sua agenda, que é muito mais popular.

É sempre tentador aprovar as reformas econômicas, com o apoio da imprensa e dos investidores. Talvez surja no governo a hipótese de investir nisso e deixar a agenda política para depois. Pode não funcionar.

Adiar a pauta de Moro não tem o mesmo efeito de adiar a pauta de costumes, que serve mais para animar a discussão nas redes sociais do que, realmente, mudar o País. Imagino a ministra de Direitos Humanos diante de três secretárias, alguns carros usados no pátio, batendo na mesa: “De agora por diante, menino veste azul e menina, rosa”. Dava o início de uma boa série da Netflix.

O combate ao crime organizado e à corrupção é tema urgente. Estou em Fortaleza, cobrindo a onda de ataques no Ceará. Mas nem precisava. Já estive antes, para mostrar como as facções criminosas dominaram as cadeias do Estado e se matavam pelo controle das ruas. Agora fizeram um pacto, uniram-se para a onda de terror.

No caso do crime organizado, não acredito tanto numa nova estrutura legal. É preciso inteligência e ação. Creio que a primeira faltou no Ceará quando anunciaram uma série de medidas repressivas sem estar preparados para ela. O golpe se dá de uma só vez, o bem é que se faz aos pouquinhos.

Na hipótese de aprovar as reformas econômicas, Bolsonaro pode se sentir forte. Mas as velhas lideranças também. Será muito difícil desatar o nó e abrir o caminho para a agenda de Moro. O ideal seria pensar todos esses temas no conjunto.

Mas no Brasil a campanha presidencial predomina. Em torno de um nome popular, as bancadas eleitas são uma espécie de arrastão. De fato, eles são novos, mas estão preparados para o longo combate? Os próprios presidentes, ocupados em garantir sua popularidade, esgrimindo frases de efeito, pavimentam sua vitória e deixam para depois a articulação dos grandes problemas.

Se é tudo tão nebuloso, por que escrever um artigo? Porque, apesar das confusões, existem algumas passíveis de ser previstas. Uma delas, inequívoca, é a de que a vitória de Renan e a relativa indiferença de Maia na defesa da Lava Jato podem levar, entre dezenas de pequenas barganhas, à grande e decisiva batalha em torno da corrupção.

Até que ponto isso foi apenas um tema de campanha? Até que ponto a corrupção é algo condenável apenas nos partidos de esquerda, ou é algo muito mais amplo e envolvente na História moderna do Brasil?
Essas previsões só serão mais bem desenvolvidas quando se fizer uma análise mais completa do novo Congresso. Por enquanto, temos nomes, biografias, mas só vamos conhecê-los mesmo diante dos grandes embates.

No meio do século passado as coisas eram mais previsíveis com as grandes bancadas da UDN e do PTB. Hoje é preciso esperar o começo e preparar-se para quatro anos de surpresas.


Fernando Gabeira: Salvação e salvadores

Política externa do PT foi desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita

Outro dia, li uma nota levemente crítica ao ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores. Ele escrevera um artigo afirmando que Deus estava na diplomacia, na política, em todos os lugares.

Embora não seja propriamente um teólogo, considero bastante previsível a crença na onipresença divina. Algumas religiões estendem o dom da ubiquidade a todos os espíritos. Para dizer a verdade, alguns deuses, como o hindu Shiva, têm poderes muito mais ecléticos: dança, destrói, faz um carnaval.

Não temos o dom divino da onipresença porque somos humanos e não toleraríamos a presença na vastidão. No meu caso, dispensaria Bruxelas sob chuva e as noites de Codó, no Maranhão.

O que me intriga no pensamento do ministro Araújo é sua crença na salvação do Ocidente, liderado por Donald Trump. Essa história de salvação, creio que surgiu, pela primeira vez, com Zoroastro, perpassou o cristianismo, reaparece na religião laica que é o marxismo e sobrevive em alguns setores da ecologia que acreditam poder salvar o planeta.

Se a salvação para mim é um conceito duvidoso, o que diria do salvador? De que podemos ser salvos por alguém como Trump, que diz às crianças que Papai Noel não existe e contrata advogados para silenciar mulheres com quem transou?

Se pelo menos Trump usasse o que se diz sempre — errar é humano, a carne é fraca, atire a primeira pedra —, os valores ocidentais estariam em melhores mãos. O problema central é a relação com os Estados Unidos. Ela precisa de equilíbrio, e há quem trabalhe nesse tema desde o século passado.

Afonso Arinos, em 1952, quando ainda esboçava suas ideias sobre uma política externa independente, defendeu o Acordo Militar Brasil-EUA. O governo Vargas queria isso, mas não teve coragem de dar as caras. Resultado, Arinos apanhou sozinho da esquerda.

Acontece que no acordo havia um só tópico que não interessava ao Brasil. Arinos ofereceu uma fórmula diplomática para contornar a dificuldade. Apanhou da direita.

Mesmo nos primórdios do que mais tarde seria uma política externa independente, a proximidade com os Estados Unidos representava um fato decisivo. Mas também era bastante claro que a proximidade não significava uma adesão acrítica a todas as propostas americanas.

No momento, esta questão vai aparecer com muita delicadeza, entre outras, nas relações com a China. Trump espera apoio na sua guerra comercial. Mas tem negociado intensamente com Xi Jiping.

Não está muito claro o papel que teremos nesse triângulo. Por enquanto, estamos ainda em discussões teológicas, ave-maria em tupi, José de Alencar e arroubos nacionalistas.

Tudo isso, para mim, anima um pouco o morno universo político brasileiro. Mas existem algumas contradições. Um forte tom nacionalista quando se trata de organismo multilateral. Uma duvidosa escolha do salvador, quando se trata das ameaças ao Ocidente.

Não imagino que o olhar severo do ministro Araújo esteja voltado contra os jogadores de I Ching ou leitores do Tao. Ele se preocupa com o marxismo chinês, com os grupos islâmicos, com a desaparição de traços culturais do país num mundo globalizado.

Mas é um exagero supor que nossa política externa seja uma medíocre omissão baseada em interesses comerciais. O desejo de defender a paz e solução negociada para os conflitos é um dado da cultura brasileira.

No século passado, o Peru inaugurou uma avenida com o nome de Afrânio Mello Franco, pai de Afonso Arinos. Os peruanos acham que o velho contribuiu para evitar uma guerra com a Colômbia.

Se isso não basta, lancemos um olhar para o próprio governo Bolsonaro. Dois dos seus ministros são generais destacados na manutenção da paz no mundo: Augusto Heleno, no Haiti; Carlos Alberto dos Santos Cruz, no Congo.

O Brasil não é uma invenção intelectual. A política externa do PT foi um desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita.

Política externa é fruto de um consenso nacional. Não adianta forçar a barra. Sofremos com isso, e o preço político que os vencedores do momento pagarão é bem maior que os equívocos domésticos, num país em que nem todos os meninos se vestem de azul, nem todas as meninas de rosa.