Por Luiz Carlos Prestes Filho
Para descrever o Brasil colônia (1500-1822) apresento uma síntese das “Cartas Chilenas”, escritas pelo inconfidente, jurista e poeta, Tomáz Antonio Gonzaga. Ele registrou na sua obra o seguinte sobre a situação do Brasil, no final do século XVIII: “Prática de enriquecimento ilícito e de prevaricação; alto custo e ineficiência da justiça; prática de suborno; proteção oficiosa ao contrabando; corrupção na venda de despachos e patentes militares; deficiência de abastecimento e alto custo de vida; prática da usura; precariedade das condições de higiene dos estabelecimentos comerciais e hospitalares; e, finalmente, mendicância”.
Nestas palavras, a justificativa do porque era necessário o Brasil conquistar sua independência de Portugal. Formulação que ia contra a visão da elite que detinha o poder nas mãos em nossa terra.
Passados 30 anos após o massacre, promovido pela coroa portuguesa, contra os participantes da Inconfidência Mineira, destacado movimento que visava a independência do Brasil, José Bonifácio resgata essa visão de Gonzaga. Mas se distancia do propósito republicano. Defende a substituição do regime monárquico colonial português por um regime monárquico brasileiro. Sendo que representantes da família real portuguesa agora seriam os imperadores do Brasil.
Nesse contexto, devemos ressaltar que, em toda a América Latina, somente o Brasil, ao conquistar a independência, se transformou num império. Vejam que ironia do destino! O neto da Rainha, Dona Maria I, aquela que assinou a condenação de Tiradentes à forca e ao esquartejamento, e de todos os participantes da Inconfidência Mineira ao degredo, Dom Pedro I, passa a ser o Libertador. Foi ele quem oficializou a ruptura com Portugal.
José Bonifácio, como os inconfidentes, idealizou um Brasil sem escravos e afirmava que os índios deveriam ter direito à terra. De certa maneira, combatia as práticas de suborno e outras imoralidades levantadas por Tomaz Antônio Gonzaga. Apresentou algumas teses que aprendeu durante a Revolução Francesa, dos tempos quando morava na França. Mas o Império do Brasil fez valer o poder dos fazendeiros escravocratas e corruptos. Apesar de fazer usos do ideário da Inconfidência Mineira, a elite brasileira fez tudo para manter a mesma estrutura social, política e econômica. Mudou sem mudar.
Um detalhe curioso. Atualmente, assistimos, entre os eventos de comemoração dos 200 anos da independência, a visita do coração de Dom Pedro I ao Brasil. Evento impossível de realizar com o coração de Tiradentes, até porque deste grande herói nada restou, nem mesmo um fio de cabelo. Todos seus bens foram confiscados e destruídos. Seu corpo, exposto nas estradas dilacerado, foi consumido pelo tempo. Sua cabeça, fixada na praça central de Ouro Preto, foi roubada e desaparecida.
Vejam que paralelo interessante podemos traçar para com o escrito acima com a história da luta contra a escravidão. Esta foi o objetivo de vida dos seguintes brasileiros: Luís Gama, André Rebouças, Maria Tomásia Figueira Lima, Dragão do Mar e Maria Firmina Reis. Como não citar, também, o nome de um dos mais importantes poetas do país, Castro Alves, que com seu “Navio Negreiro”, publicado em 1869, trouxe forte emoção para aquele movimento. Como não lembrar do nome de Cipriano Barata que, no ano de 1835, apoiou valentemente a revolta dos escravos malês na Bahia, como antes participara ativamente da chamada Conjuração dos Alfaiates, também, na Bahia!
Cipriano passaria mais de dez anos nas masmorras coloniais e imperiais.
Mas, não foram estes líderes incontestes que ganharam destaque na História do Brasil quando veio a abolição da escravidão. Foi a filha do Imperador do Brasil, Dom Pedro II: a Princesa Isabel. Ela foi a redentora, que assinou a Lei Aurea, em 1888!
Outra vez, a elite política, social e econômica se apropriou de bandeiras contra as quais lutou dezenas de anos, e se apresentou como protagonista de um processo social que impedia de prosperar.
Interessante que, após a derrubada da monarquia, após a proclamação da República, em 1889, os fazendeiros entraram com processos judiciais contra o novo governo exigindo recompensa ou ressarcimento financeiro pela perda de patrimônio que sofreram, por conta a Abolição da Escravidão. O primeiro governo republicano queimou os arquivos de propriedade de africanos escravizados, de compra e venda de escravos, para que estes processos judiciais fossem interrompidos nos Tribunais de Justiça.
Da História moderna trago aqui o exemplo do Movimento Tenentista, que agitou o Brasil na década de 1920. Imaginem que Getúlio Vargas que, em 1924, apoiou o envio de tropas para defender o governo do presidente Artur Bernardes contra o qual lutava a Coluna Prestes (1924-1927), discursou na Câmara dos Deputados, criticando os revolucionários. Afirmava que já tinha passado a “época dos motins de quartéis e das empreitadas caudilhescas, venham de onde vierem”…
Porém, passados poucos anos, com a participação de líderes militares da própria Coluna Prestes, com exceção de Luiz Carlos Prestes, que aderiu ao marxismo-leninismo, Vargas adotou as bandeiras tenentistas e passou a ser o líder da vitoriosa Revolução de 1930 e, em seguida, foi governar o Brasil e realizar as reformas sociais, políticas e econômicas durante 15 anos. Até 1945.
Para terminar, apresento mais um exemplo. Foram os partidos de esquerda, os movimentos populares e sindicais, que defenderam a emenda constitucional para a volta de eleições diretas para presidente do Brasil. A Campanha das Diretas Já tomou as ruas e praças de todo o país entre os anos de 1983-1984. Quando a mesma foi aprovada, o primeiro presidente eleito, com financiamento e apoio aberto de estruturas que tinham antigos vínculos com o regime civil-militar que chegara ao poder com o golpe de 1964, foi Fernando Collor de Mello, presidente que não teve nenhum protagonismo na Campanha das Diretas Já e que representava aquelas estruturas que se opunham à democracia no Brasil.
Portanto, entendo que, neste momento, quando comemoramos os 200 anos da Independência do Brasil, temos que homenagear os inconfidentes, os líderes abolicionistas, os líderes do movimento tenentista e os democratas, socialistas e comunistas brasileiros que foram os verdadeiros protagonistas de nossa História.
Não podemos continuar a homenagear Dom Pedro I que, repito, é o neto da Rainha Dona Maria I, que assinou a sentença de enforcamento e esquartejamento daquele que lançou a semente de nossa independência.
Temos que homenagear quem derramou seu sangue, quem entregou sua vida pela nossa liberdade. Pouco importa neste momento assinaturas e carimbos, realeza e burocracias, denominações e datas oficiosas. Esta atitude nos ajudará a dar mais substância à democracia.
Pela primeira vez na História, nosso país vive um ciclo democrático com partidos políticos legalizados e eleições livres. Ao longo de 100 anos da República, isto nunca aconteceu. Desde a proclamação da República, em 1889 até 1989, nunca vivemos um ciclo democrático de 30 anos.
Está dito.
(Ouro Preto, MG, 06 de setembro de 2022).
Artigo publicado no portal Socialismo Criativo