É revelador que o jogo democrático tenha colocado um limite no debate público
O último debate entre Donald Trump e Joe Biden, na noite de quinta-feira, será lembrado pela civilidade, em contraste com o caos do primeiro, dia 29 de setembro. Não é só questão de forma. O esforço de Trump em se conter e se mostrar “presidenciável” para a audiência mais ampla revela algo sobre a democracia.
A agressividade é um componente de todo debate, e esteve presente nesse último também. Mas Trump foi muito além disso no primeiro debate. Como costuma fazer em seus comícios, entrevistas e tuítes, Trump agiu sem limites, tanto na forma quanto no conteúdo. Na forma, ele interrompeu Biden e o moderador Chris Wallace 128 vezes ao longo de 90 minutos. No conteúdo, procurou humilhar o oponente, afirmando que seu filho, Hunter Biden, foi “dispensado com desonra” por uso de cocaína.
Dessa vez, Trump atacou Biden e seu filho usando reportagens do tabloide sensacionalista New York Post, segundo as quais Hunter teria feito negociações na China, Rússia, Ucrânia e Iraque usando o nome de seu pai, para quem seria destinada parte da propina. A base das reportagens é frágil. Mas é uma linha de ataque dentro dos padrões do jogo pesado da política.
O primeiro ataque, relacionado com o uso da cocaína, é aceitável para os seguidores de Trump, nos comícios, no Twitter e nas entrevistas a emissoras que o apoiam. Mas não para o público em geral. O debate é uma oportunidade de engajar a própria base, num país em que o voto é facultativo, mas também de ampliar o apoio, sobretudo para um candidato que está atrás em todas as pesquisas sérias.
O desempenho de Trump no primeiro debate foi aprovado por porcentagens mais baixas do que a intenção de voto para ele nas sondagens anteriores. Como consequência, essa intenção caiu nas pesquisas subsequentes. Em seguida, o presidente foi hospitalizado com covid-19, o que para muitos americanos reforçou a noção do fracasso de sua resposta à pandemia: ele protege seu país tão mal quanto a si mesmo.
É parte dos objetivos de todo candidato demonstrar que o oponente não tem credenciais para o cargo em disputa. Mas há limites para isso. No primeiro debate, Trump disparou: “Você usou a palavra ‘inteligente’? Você se formou entre os piores da sua turma. Não use essa palavra comigo”. Na quinta-feira, o presidente se mostrou mais respeitoso com Biden.
Em 2016, Trump manteve a descompostura nos debates com Hillary Clinton. Quando ela disse: “Ainda bem que você não é o presidente”, ele respondeu: “Porque você estaria presa”, ecoando os gritos que ele incentivava em seus comícios: “Prendam-na”. Em seus comícios de agora, ele garante que Biden e Barack Obama “são criminosos”. Mas não fez isso no debate.
Em 2016, funcionou porque Trump era uma novidade não testada. E nunca é demais lembrar que Hillary teve quase 3 milhões de votos a mais que ele. Trump se elegeu no colégio eleitoral com 77 mil votos a mais em três Estados: Pensilvânia, Michigan e Wisconsin.
Agora, aos olhos dos americanos, Trump não passou no teste da gestão. Muitos se sentem abandonados à própria sorte para lidar com a ameaça do vírus. Essa sensação de vulnerabilidade cria um ambiente mais favorável para o maior intervencionismo estatal representado pelos democratas.
Em temas de substância, como a resposta à covid-19 e à recuperação da economia, podem-se identificar fragilidades nas posições de ambos. Não acho que esteja claro, por exemplo, para o americano médio, como Biden pretende gerar 18,5 milhões de empregos com a conversão para fontes renováveis de energia, como ele afirma ter sido reconhecido por “Wall Street”.
Trump mudou de tom, ao dizer que aprendeu com a covid-19 e até assumir “total responsabilidade”, para depois emendar: “A culpa é da China”. Não seria Trump sem essa ressalva. Mas me parece revelador que o jogo democrático tenha colocado um limite no debate público.
*É colunista do Estadão e analista de assuntos internacionais