Rodrigo de Lemos: Intelectuais e ideólogos no debate público: um pensamento a partir de John Stuart Mill

O discurso estereotipado e o empenho em esconder suas incertezas são as marcas do ideólogo. O equilíbrio entre o distanciamento e o engajamento é a virtude do intelectual.
Foto: Reprodução/Google/Blog Estado da Arte
Foto: Reprodução/Google/Blog Estado da Arte

O discurso estereotipado e o empenho em esconder suas incertezas são as marcas do ideólogo. O equilíbrio entre o distanciamento e o engajamento é a virtude do intelectual.

Em On Liberty (1859), John Stuart Mill funda sua defesa da discussão pública irrestrita em três possibilidades. A primeira é a de que a opinião dominante em uma sociedade esteja errada, e a opinião minoritária, certa. Quantas posições correntes já passaram a ser tidas por falsas, quantas posições marginais se impuseram como verdadeiras? Mill dá como exemplo o próprio cristianismo, tão caro ao leitorado que ele buscava persuadir, opinião perseguida nos primeiros séculos mesmo por um imperador virtuoso como Marco Aurélio e reabilitada nos dois milênios seguintes. Não faltam na História amostras do intelecto humano em sua falibilidade.

A suposta infalibilidade de alguma opinião não seria melhor argumento contra a liberdade de pô-la em questão. Mill reconhece como natural que, com o tempo, algumas opiniões sejam reconhecidas como imunes: quem gostaria de voltar atrás na convenção de Genebra sobre o tratamento humano dispensado a prisioneiros de guerra? Ainda assim, pode acontecer de mesmo opiniões tidas universalmente como verdadeiras perderem algo se furtadas à discussão. Seu confronto com supostas falsidades serve, quando não mais, para animá-las com energias renovadas. Sem o aguilhão da disputa, seu assentimento pode ser mais automático do que racional. É possível que ela se congele em dogma, tenha seu poder persuasivo diluído, degenere em um preconceito frio e impensado. Por isso, pode haver ganho em discuti-la.

Finalmente, e esse seria o caso mais comum, posições conflitantes podem ser ambas parcialmente verdadeiras. Seria assim com opiniões populares sobre temas não palpáveis pelos sentidos: para Mill, “elas são parte da verdade; às vezes uma parte maior, às vezes menor, mas exageradas, distorcidas e separadas de verdades pelas quais devem ser acompanhadas e limitadas”. Seria assim também com a disputa política em sociedades democráticas; nelas, a vida pública se beneficia da existência de partidos “da estabilidade ou da ordem” e partidos “do progresso ou da reforma”, cada qual suplementando as lacunas na verdade do adversário. Ao mesmo tempo, por meio da resistência oferecida pelo opositor, eles podem guardar nos “limites da razão e da sanidade” pela lembrança constante das suas próprias deficiências.

Mill desejaria que grupos políticos contrários expandissem sua “apreensão mental” para se tornarem enfim partidos “igualmente da ordem e do progresso, sabendo e distinguindo o que cabe ser preservado e eliminado”. Não seria, em parte, o que ocorre com os grandes partidos de governo em democracias maduras? É comum que marxistas critiquem as agremiações de centro-esquerda inglesas, alemãs ou francesas como sendo em verdade liberais e que direitistas radicais acusem os partidos conservadores nesses mesmos países de serem na prática indistinguíveis dos socialistas.

Críticas desse tipo manifestam a dificuldade humana, apontada por Mill, de lidar com esses confrontos entre pontos-de-vista contrários, não porque apenas um é verdadeiro, mas porque ambos o são em parte e de modos distintos. “Na mente humana”, ele observa, “a unilateralidade é a regra, e a multilateralidade, a exceção”. Essa tendência à unilateralidade faz-se evidente quando de uma revolução de opinião. Raros são os casos em que, como no exemplo das democracias maduras, os opostos (ordem e progresso, livre-mercado e bem-estar social) se sintetizam em um centro cujas diferenças são feitas de mais ou menos sutis modulações. A dificuldade com a multilateralidade leva-nos a destronar uma verdade parcial por outra – que durará ela também o tempo que durar o entusiasmo ou a paciência com o que há nela de lacunar.

Para ilustrar esse movimento, Mill retorna a essa fase fundadora da Modernidade que foi o século XVIII. Os homens cultos de então se teriam perdido em uma admiração pela civilização e por si mesmos como protagonistas desse século em que as artes, as ciências e a literatura teriam superado as conquistas dos Antigos. Rousseau teria surgido para lembrá-los o valor da natureza e da frugalidade, mas sua obra não apenas corrigiu o que havia de excessivo no sentimento prevalente; antes, carregou consigo a opinião na direção contrária, à denúncia das hipocrisias intrínsecas à vida civilizada e ao elogio da vida bucólica, das emoções genuínas e simples.

Também o Brasil contemporâneo parece atravessar uma dessas revoluções de opinião em que é contestado muito do que passava por consenso entre as classes educadas desde a democratização. As redes sociais, a crise econômica, a violência urbana, os escândalos de corrupção, a onda internacional de populismo – as lufadas são muitas que fizeram girar o cata-vento da opinião pública. O arremedo de Estado social imaginado em 1988 curva-se sob as críticas que põem em questão sua sustentabilidade financeira. A retórica dos direitos humanos perde em poder de persuasão numa sociedade temerosa da violência. A ascensão de grupos religiosos desafia a laicidade e os direitos minoritários que ela assegura.

Essas perturbações incitam todos os lados a intervirem com veemência na discussão política. Daí a necessidade de discernir a qualidade dessas intervenções. Muito dessa agitação favorece aqueles desejosos de presidir, por quaisquer meios que sejam, à mutação da opinião dominante. Os que querem resistir à mudança não se mostram menos aguerridos. Em ambos os casos, a unilateralidade identificada por Mill é um recurso amplamente utilizado. Trata-se, para intelectuais que sustentam visões extremas, de reduzir debates entre posições opostas parcialmente verdadeiras a um combate entre uma opinião completamente certa (a sua) e outra completamente falsa (a alheia). É o que ocorre quando sabemos de antemão a posição de um site, de um escritor ou de um grupo de intelectuais sobre um tema polêmico antes mesmo de lê-los. O ideólogo se deixa reconhecer pela estereotipia do discurso e por seu empenho em esconder suas falhas possíveis, suas incertezas.

A abundância de personagens desse tipo na arena política não deveria fazer com que os menos comprometidos se recolham ao espaço privado, abandonando os ouvidos públicos a demagogos. A virtude primeira do intelectual em tempos conflagrados deve ser o equilíbrio – difícil – entre distanciamento e engajamento. Trata-se de apreciar o debate público como que de cima, com sensibilidade à verdade do adversário, por parcial que ela seja. Simultaneamente, é indispensável conservar a capacidade de intervir sem abandonar a consciência do que há de precário na sua própria posição. Seu desafio é transcrever o menos imperfeitamente possível para a discussão pública aquela constatação de Montaigne sobre o valor do debate entre simples particulares unidos pela “causa da verdade”: me instrui aquele que me contradiz. Remonta aos Ensaios do filósofo gascão a preferência liberal, expressa também na filosofia Mill, por aquelas verdades que nascem da colaboração entre adversários honestos e que sobrevivem às contusões e às feridas da contenda.

Rodrigo de Lemos é professor na UFCSPA (RS) e doutor em Literatura pela UFRGS.

 

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