Revista online | Lilia Lustosa: Geraldo e Jabor brilham em outros firmamentos 

No mês passado, os dois jovens que naquele fim de 1962 se iniciavam no mundo do cinema, partiram para brilhar em outros firmamentos
Foto: Divulgação
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Lilia Lustosa / Revista Política Democrática online

No final de 1962, o jovem Arnaldo Jabor participava como intérprete do curso ministrado no Rio de Janeiro pelo já consagrado documentarista sueco Arne Sucksdorff, em uma ação conjunta da Unesco e do Itamaraty. Naquele mesmo ano, o recém-formado em Direito Geraldo Sarno chegava a Cuba, indicado pela UNE, para ver de perto o trabalho do famoso ICAIC – Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos. Ganha uma bolsa e decide ficar por lá mais um ano, desvendando os poderes da sétima arte para mudar assim o rumo de sua história. E também da nossa.  

No mês passado, em um espaço de uma semana, os dois jovens que naquele fim de 1962 se iniciavam no mundo do cinema resolveram partir para brilhar em outros firmamentos. Primeiro foi Jabor, no dia 15, notícia que deixou o país em choque, órfão de um cineasta-analista político-cultural de tamanha grandeza. Em seguida, dia 22, foi a vez de Geraldo Sarno, vítima da maior praga dos últimos anos, a Covid-19.  

Geraldo percorreu a trilha do documentário e participou, junto com Maurice Capovilla, Sérgio Muniz, Paulo Gil Soares e mais um bando de argentinos vindos de Santa Fe, do que mais tarde ficaria conhecido como Caravana Farkas. Os primeiros quatro filmes desse “movimento”, que de certo modo estava inserido no Cinema Novo, inauguravam no Brasil o então badalado cinema-direto, fazendo uso do primeiro gravador portátil Nagra a pisar no Brasil, trazido justamente por Sucksdorff.

Geraldo assinou Viramundo (1965), curta-metragem sobre a diáspora nordestina, que mostrava de maneira nua e crua a chegada dos sertanejos a São Paulo, com suas barrigas vazias e suas trouxas cheias de esperança. Um tema hoje bastante batido, mas que naquele então era novidade. Principalmente, porque não se esquivava de mostrar pobreza e a discriminação sofrida pelos nordestinos que chegavam ao sudeste do país. Com música de Gilberto Gil, o filme foi um sucesso entre os críticos, mas, como todo documentário crítico à realidade brasileira, nunca encontrou seu lugar no circuito das salas de cinema. Nem mesmo quando em 1968, foi reunido aos outros três curtas, compondo assim o longa Brasil Verdade.  

Jabor, por sua vez, rumou para a ficção, embora sua opera prima tenha sido também um documentário realizado dentro dos mesmos moldes do cinema-direto. A Opinião Pública (1967) era uma espécie de enquete feita com brasileiros comuns, membros da classe média do país, que discutiam sem pudor política, misticismo, burguesia etc. Era uma tentativa de traçar um retrato do nosso povo feito por ele mesmo, sem filtros, revelando suas incongruências, idiossincrasias e sonhos manipulados. Uma classe maleável, sem domínio sobre si própria. Na ficção, um dos seus maiores sucessos foi Toda Nudez Será Castigada (1973), longa adaptado da peça homônima de Nelson Rodrigues. Como era costume em sua obra, o filme criticava a hipocrisia da burguesia com seus “rígidos” códigos de moral e costumes.

O longa rendeu para a atriz Darlene Glória o Urso de Prata no Festival de Berlim, da mesma maneira que Eu Sei Que Vou Te Amar (1986), outro de seus grandes hits, consagrou Fernanda Torres como Melhor Atriz em Cannes. Na década de 90, porém, com o fim do fomento estatal para a produção cinematográfica no governo Collor, Jabor enveredou pelo jornalismo. Primeiro como colunista de O Globo, depois de vários telejornais da mesma emissora: Jornal Nacional, Bom Dia Brasil, Jornal da Globo, Fantástico, Jornal Hoje e ainda da Rádio CBN, onde era voz frequente. Tornou-se figura conhecida e respeitada em todo o país. Em 2010, fez mais uma (e última) incursão no cinema com A Suprema Felicidade, estrelado por Marco Nanini, filme bonito e terno, mas que não agradou tanto à crítica especializada.  

Geraldo Sarno lançou em 2020 lançou Sertânia, ganhador de vários prêmios. Foto: Divulgação

Já seu companheiro Geraldo Sarno não arredou jamais o pé do cinema e ainda em 2020 lançou Sertânia, ganhador de vários prêmios, provando que, do alto de seus mais de 80 anos, continuava com todo o gás para apresentar novos olhares da realidade. Com uma fotografia impecável, nele o cineasta retorna ao sertão, desta vez, ambientando sua história em um só dia do período pós-cangaço, quando o protagonista Antão (Vertim Moura) delira em seu leito de morte. Entre sonho e realidade, o homem viaja por sua memória, enquanto nos leva a repensar fantasmas do passado e do presente, como a fome, a miséria e a violência. Uma bela maneira de encerrar sua obra aqui na terra.  

Tenho pra mim que agora Geraldo e Jabor estão sentados com Capovilla, Eduardo Coutinho, Nelson Pereira dos Santos e tantos outros grandes cineastas que nos deixaram nos últimos anos, discutindo argumentos, revendo roteiros e sonhando com novas histórias que pintem com cores verdadeiras nosso Brasil tão despedaçado 

Saiba mais sobre a autora
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL)Suíca.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de março/2022 (41ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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