RPD || Ensaio – João Cezar de Castro Rocha: A desqualificação nulificadora

Ensaio de João Cezar de Castro Rocha analisa a retórica do ódio presente nas pregações do guru do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho. Falso silogismo olavista pode - e tem - de ser desmascarado, avalia.
Foto: Facebook
Foto: Facebook

Ensaio de João Cezar de Castro Rocha analisa a retórica do ódio presente nas pregações do guru do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho. Falso silogismo olavista pode – e tem – de ser desmascarado, avalia

Tal como ensinada na pregação de Olavo de Carvalho, a retórica do ódio é uma técnica discursiva que pretende reduzir o outro ao papel de inimigo a ser eliminado.  

Trata-se de uma técnica — e esse aspecto deve ser sublinhado. Por isso, pode ser ensinada e transmitida. E como uma técnica, possui elementos próprios. No caso do discurso de Olavo, destacam-se dois procedimentos: a desqualificação nulificadora e a hipérbole descaracterizadora. 

A retórica do ódio tem um alvo expresso — a “esquerda”, compreendida como um bloco monolítico, representante da “mentalidade revolucionária” — e um conjunto determinado de recursos — sempre com a finalidade de eliminar o adversário.  

Marco zero da retórica do ódio, gênesis e apocalipse da técnica olavista, a desqualificação nulificadora reduz o adversário ideológico num outro tão absoluto que ele passa a se confundir com um puro nada, um ninguém de alguém nenhum. O efeito é assustador porque autoriza a completa desumanização de todo aquele que não seja espelho. E como se trata de uma técnica, a desqualificação nulificadora foi apreendida e multiplicada pela miríade de youtubers de direita, empregada à exaustão nas redes sociais, por meio da orquestração muito bem coordenada de likes deslikes, e, por fim, traduzida e ampliada nos círculos políticos do fenômeno bolsonarista, por meio do linchamento permanente do inimigo de plantão.  

O primeiro nível da técnica da desqualificação nulificadora não passa de um truque infantil. Olavo de Carvalho principiou o joguete: por que não desqualificar um adversário pela corrupção paródica de seu nome próprio? Não vou me estender muito mais nesse primeiro (des)nível. O historiador Marco Antônio Villa, torna-se Marco Antônio Vil; o pensador Mário Sérgio Cortella, Mário Sérgio Costela. Sem comentários… 

Venho, pois, ao segundo nível da desqualificação nulificadora. Trata-se da estigmatização que converte o outro numa mera caricatura, estimulando o seu sacrifício simbólico — pelo menos numa fase inicial.  

A estigmatização tem um alvo preciso, aliás, ponto de interseção entre olavismo e bolsonarismo: 

       Cada vez mais me convenço de que o movimento comunista tem sido a ÚNICA força agente no cenário mundial. O resto é apenas “reação”, termo com que os próprios comunistas o descrevem   com notável exatidão. (Facebook, 25 de setembro de 2016, grifos meus).  

A sequência da postagem é uma peça inadvertidamente dadaísta: 

       (…) Desde a II Guerra o “establishment” americano, incluindo um exército inteiro         de conservadores, tem como uma de suas principais ocupações acobertar — e             portanto ajudar — a penetração comunista nos altos círculos do governo,         tornando-a tanto mais poderoso e devastadora quanto mais invisível e imencionável. (grifos meus). 

um exército inteiro, não de democratas radicais, porém de conservadores, unidos na improvável missão de propiciar o triunfo do movimento comunista internacional, muito embora a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas tenha sido dissolvida sem honra alguma em dezembro de 1991. Pois é… 

Chegamos assim ao terceiro nível da desqualificação nulificadora: eliminação do outro, pois no âmbito da retórica do ódio, o adversário é um inimigo a ser eliminado. 

Não exagero: leia esta postagem de 2018: 

       Quebrada a hegemonia intelectuala guerra cultural começa com a desocupação de espaços. Botar         para fora, da maneira mais humilhante possível, os farsantes e usurpadores. Isso exige militância organizada e PRESENÇA FÍSICA. (Facebook, 20 de março de 2018, grifos meus).  

PRESENÇA FÍSICA? Ameaçadoras letras maiúsculas, associadas à ideia belicosa de uma militância organizada? Compreende-se que a noção de guerra cultural pouco tem de metafórica, sendo antes a expressão de um desejo nada obscuro, explicitada por verbos como quebrarvarrereliminarapagar. Mais uma vez, o fantasma da hegemonia intelectual da esquerda é um falso passaporte que pretende legitimar toda forma de violência simbólica, que, agora sabemos, é o prelúdio cinzento da PRESENÇA FÍSICA — violenta, por óbvio.  

A desqualificação nulificadora é o meio através do qual a retórica do ódio e a Doutrina de Segurança Nacional vivem em permanente lua de mel, inventando inimigos em série. Esse é o passo mais importante na caracterização da retórica do ódio. Contudo, precisamos ainda descrever um segundo procedimento padrão da mentalidade revolucionária olavista, a hipérbole descaracterizadora. Se entendermos seu alcance, o castelo de cartas marcadas do sistema de crenças Olavo de Carvalho terá os dias contados.  

Hipérbole descaracterizadora  

A marca d’água da mentalidade olavista é o cacoete da redundância, que pretende, por assim dizer, manipular a consciência do leitor, já que a reiteração sistemática do que se acabou de dizer almeja, conscientemente ou não, paralisar o receptor, que assediado pelo mesmo sentido, confundindo a reflexão filosófica com a experiência iniciática.  

Comecemos a descrever a hipérbole descaracterizadora com o vídeo O Olavo tem razão 1: quem sou eu. O próprio fala de si. Um artigo que Ruy Fausto dedicou a sua obra serviu de pretexto.[1] Olavo então esclareceu a razão do impacto que produziu na cena brasileira.  

Escutemos: 

       E o que eu escrevi tem mais efeito do que o que ele escreveu, porque eu escrevo mil vezes melhor           do que esses caras, pô! É a coisa mais óbvia do mundo.  Eles             não sabem nem português, são uns             coitados, porra! Então… agora o que eu escrevo é vivo, é engraçado, tem humor, tem sentido, tem           conteúdo; então, é claro que acaba tendo muito mais repercussão. É obvio.[2] (grifos meus) 

A autoproclamação hiperbólica — eu escrevo mil vezes melhor —econfirmatória— o que eu escrevo é vivo, é engraçado, etc. —tornou-se a máscara sem medo usada por Olavo de Carvalho em sua persona nas redes sociais. O efeito é devastador: seus discípulos adotam o truque, embora em geral não disponham de formação sólida em área alguma do conhecimento. Rapidamente, e com invejável ousadia, ministram cursos online com base em dois ou três livros consultados dogmaticamente acerca de um tema aleatório. O resultado é o caos cognitivo que domina o cenário brasileiro contemporâneo.  

Nos textos de Olavo sempre estamos às voltas com o mais vasto empreendimento, envolvendo centenas de militantes-delatores infiltrados nas mais diversas instâncias do estado e na sociedade civil, e, claro, jamais houve na história do Ocidente uma tal empresa; naturalmente, não há nenhum precedente histórico para esse fenômeno, capaz de criar um império universal da impostura, pois, ao fim e ao cabo, um cérebro marxista nunca é normal.  

Ora, tomei frases soltas da trilogia de Olavo de Carvalho, e simplesmente alinhavei uma longa frase, tendo como ponto de fuga a “ameaça vermelha”, pânico que, no campo da direita e sobretudo da extrema-direita, confere verossimilhança às associações mais desconexas e às conclusões mais disparatadas. Inventei assim um aplicativo: o gerador automático de frases do sistema de crenças Olavo de Carvalho. É uma espécie de silogismo aristotélico de Napoleão de hospício. Isto é, no silogismo, digamos, com juízo, duas proposições verdadeiras possibilitam a inferência de uma terceira proposição igualmente válida. A primeira premissa é de caráter mais geral, a segunda, mais restrita, e a conclusão é derivada da relação entre as duas proposições anteriores. No exemplo sempre citado: 

       Todo homem é mortal. 

       Sócrates é homem. 

       Sócrates é mortal.  

Cristalino, não é mesmo? 

Agora, por efeito de contraste, o falso silogismo olavista pode ser desmascarado. Olavo parte sempre da conclusão — “o perigo vermelho” iminente, e, desse modo, pouco importa o conteúdo das proposições, que, logicamente, deveriam anteceder à conclusão. Como ela se encontra determinada à priori e jamais se altera, Olavo inaugurou uma nova modalidade de lógica: trata-se da lógica do valetudo. Em 2019, a conclusão pau-para-toda-obra conheceu uma formulação impecável: 

       Nada no mundo se compara à intensidade do ódio no coração de um esquerdista.            É implacável, incessantesem fim. (Twitter, 4 de novembro de 2019, grifos meus).  

A redundância e suas reiterações infinitas: se o ódio é incessante, já se sabe que é sem fim. Se essa é a ilação-matriz, então, literalmente qualquer conteúdo se torna inaceitável; mesmo as afirmações mais absurdas parecem razoáveis.  

Acredite! 

Vejamos alguns exemplos.  

       A tal quarentena é A MAIOR FRAUDE DA HISTÓRIA HUMANA. (Twitter, 20 de abril de 2020,            grifos meus). 

       Para o futuro do Brasil,  a luta contra os comunistas é prioritária. O resto é TUDO desconversa,          oba-oba e carreirismo. TUDO. (Facebook, 15 de setembro de 2020, grifos meus) 

A mentalidade do Messias Bolsonaro ecoa essa lógica do vale-tudo. Recentemente, diante do fracasso óbvio da política econômica de seu governo, o presidente levantou a suspeita da presença de “infiltrados do PT” na equipe econômica.[3]Os ineptos ministros da Educação justificam a inação de suas gestões recorrendo à noção olavista das centenas de militantes infiltrados. O predomínio do silogismo de Napoleão de hospício nas altas esferas da administração pública somente torna ainda mais agudo, quase dramático, o paradoxo: o êxito do bolsonarismo implica o fracasso do governo Bolsonaro. 

hipérbole olavista é descaracterizadora porque ela suprime deliberadamente as mediações entre os pontos tratados num argumento qualquer. Transita-se do alfa ao ômega sem pausa alguma, numa vertigem que impede a reflexão e despreza o conceito. O uso constante de letras maiúsculas apenas dá forma visual ao efeito pretendido, qual seja, a adesão absoluta ao exposto pelo mestre-sabe-TUDO. 

O inquietante é a homologia entre o recurso estilístico olavista e a natureza autoritária do projeto político bolsonarista. Em ambos os casos, o propósito último é o de abolir toda forma de mediação, a fim de estabelecer seja o controle da consciência dos discípulos, seja o estabelecimento de uma “democracia” direta por meio da abolição das mediações institucionais entre poder e cidadania.  

Caracterizada a retórica do ódio, descritos os seus procedimentos textuais, damos o primeiro passo para sua superação. Isto é, precisamos abraçar a ética do diálogo, na qual o outro é sempre um outro eu, cuja diferença enriquece minha perspectiva porque amplia meus horizontes. 


[1] Ruy Fausto. “Única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões”. Folha de SPaulo, 30 de novembro, 2018: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/11/unica-coisa-rigorosa-no-discurso-de-olavo-sao-os-palavroes-diz-ruy-fausto.shtml

[2] O Olavo tem razão 1: quem sou eu: https://www.youtube.com/watch?v=5q1FhFgjBhY

[3] Thiago Bronzatto. “Bolsonaro desconfia de ‘infiltrados do PT’ na equipe econômica”. Revista Veja, 27 de setembro de 2020: https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro-desconfia-de-infiltrados-do-pt-na-equipe-economica/

Privacy Preference Center