Zeina Latif: Dicotomia

O aumento do consumo não é para todos. São 17 milhões de desocupados e desalentados.
Foto: Agência Brasil
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O aumento do consumo não é para todos. São 17 milhões de desocupados e desalentados

O mercado financeiro é só alegria. A bolsa bate recordes, impulsionada por juros baixos e a boa perspectiva de crescimento para 2020. O mercado de capitais registra expressivo aumento na emissão de dívida das empresas por conta do (necessário) encolhimento do BNDES – iniciado por Joaquim Levy quando ministro da Fazenda de Dilma – e das condições favoráveis para a captação de recursos internamente. Foi um ano muito positivo para indústria de fundos, que se beneficiou do corte dos juros pelo Banco Central. Os investidores celebram os ganhos obtidos no ano.

A euforia, no entanto, não é integralmente compartilhada pelo setor produtivo, até porque o mercado de capitais reflete as perspectivas do “grupo de elite”, e não da totalidade das empresas. Apesar da melhora nos indicadores, a confiança dos empresários continua abaixo da linha d’água de 100 pontos, indicando pessimismo de uns tantos. Muitas empresas enfrentam dificuldades financeiras e de acesso ao crédito.

No varejo, as vendas estão próximas dos patamares pré-crise, enquanto a produção da indústria está 15% abaixo. O primeiro se beneficia da volta do crédito ao consumidor, enquanto o segundo sofre com a baixa competitividade em relação aos importados.

O sensível aumento do consumo não é para todos. Os desocupados e desalentados, que totalizam mais de 17 milhões de pessoas, não foram chamados à festa e alimentam a desigualdade, que sobe desde 2015.

A inflação seguiu baixa, a exemplo dos últimos anos, mas o custo da cesta básica (entre R$ 325 e R$ 474 em outubro) é elevado, empurrando muitos para baixo da linha de pobreza. Em 2018, eram 13,5 milhões vivendo na miséria (renda mensal per capita abaixo de R$ 145 ou US$ 1,90 por dia no critério de paridade do poder de compra), o que significa 6,5% da população; um salto em relação aos 4,5% de 2014.

Esse quadro explica a divisão do País quando o assunto é a aprovação do governo. Bolsonaro tem apoio das classes mais privilegiadas, enquanto as mais populares desaprovam sua gestão.

O crescimento econômico mais robusto contratado para 2020 talvez ajude a reduzir essas dicotomias presentes entre setores e entre indivíduos. A conferir. E o ritmo poderá ser muito lento tendo em vista o retrocesso nos indicadores sociais nos últimos anos.

Segmentos da economia pouco produtivos não irão se beneficiar satisfatoriamente do melhor momento econômico, reforçando o quadro de lenta recuperação do mercado de trabalho. Além disso, a crise prolongada causou deterioração da qualidade da mão de obra, reduzindo a empregabilidade de muitos.

É preciso trabalho para que 2020 não seja uma brisa, mas sim o início de um futuro mais próspero e justo.

O ano de 2019 foi de importantes avanços, mas também de oportunidades perdidas. Em que pese a aprovação de uma potente reforma da Previdência e a gestão responsável das contas públicas, confirmou-se o temido cenário de uma fraca agenda de reformas no segundo semestre.

O governo encaminhou tardiamente ao Congresso novas medidas de ajuste fiscal. Há várias matérias tramitando, mas falta estratégia política, definindo prioridades e fazendo a lição de casa na articulação. Governar não é só enviar matérias ao Legislativo.

Assistimos à venda de ativos pelas estatais, mas não à privatização das empresas. A capitalização da Eletrobras, que deveria ser prioridade do governo, patina.

O marco legal de telecomunicações foi aprovado, mas ainda se aguarda o do saneamento, que ficou para 2020. Faltou empenho do governo.

Na infraestrutura, foram realizados 27 leilões de concessão, mas a lei das concessões e parcerias público-privadas sofreu ataques de segmentos do próprio governo e ficou para 2020.

Enquanto isso, nada se avançou na reforma tributária, apesar da grande disposição de lideranças na Câmara. Foi também um ano praticamente perdido na abertura da economia e na educação.

Que em 2020 sejamos mais ambiciosos e consigamos diminuir a dicotomia. Estamos todos no mesmo barco.

*Economista-Chefe da XP Investimentos

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