William Waack: Um duro recado

Para multinacionais como a Ford, o Brasil é visto como incapaz de sair do marasmo.
Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO
Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Para multinacionais como a Ford, o Brasil é visto como incapaz de sair do marasmo

saída da Ford do Brasil não é um veredicto contra o governo de Jair Bolsonaro. É um pouco pior. É um veredicto desagradável sobre o Brasil na comparação internacional – não importa quais tenham sido os erros (alguns óbvios, como produtos equivocados) da montadora em suas estratégias de mercado.

Em primeiro lugar, o que a postura da montadora indica é que afastados das principais inovações somos uma grandeza negligenciável em termos de tamanho de mercado. Ela está desmentindo a frase muito surrada, segundo a qual o Brasil tem um tamanho (em termos de mercado) que nenhuma multinacional pode se dar ao luxo de ignorar.

Em segundo lugar, a saída dela apenas confirma o que o setor industrial brasileiro vem “denunciando” há pelo menos uma década: o ambiente de negócios geral no País está piorando ao longo dessa linha do tempo – os últimos dez anos, durante os quais os benefícios tributários concedidos especialmente ao setor automotivo triplicaram em relação ao PIB, sem que viessem os esperados resultados.

Esse último aspecto é relevante para se entender qual é o “recado geral” que a saída da Ford está dando à sociedade brasileira. Na expressão consagrada pelo economista Marcos Lisboa, somos reféns da nossa postura da “meia-entrada”. Ela explica como o conjunto acaba pagando por aquilo que alguns não precisam pagar.

“Meia-entrada” – o subsídio, o incentivo, a renúncia fiscal – é entendida como um direito adquirido inalienável. Às vezes garantido pela Justiça (o que gera insegurança jurídica), às vezes negociado por lobbies bem-sucedidos (num Legislativo de baixa representatividade) ou reiterados por governadores e prefeitos engalfinhados em guerra fiscal. O resultado geral é o agravamento do estado no qual vegetamos há mais de uma década: economia semiestagnada, atrasada em produtividade, fechada, com baixa capacidade de competição especialmente no setor industrial.

Esse diagnóstico é de razoável consenso não só entre economistas, mas foi adotado também por várias correntes políticas. É a partir dele que o governo Jair Bolsonaro montou algumas de suas principais promessas eleitorais, traduzidas na intenção, manifestada pelo ministro Paulo Guedes, de “salvar a indústria contra os próprios industriais”. Ainda no começo de dezembro do ano passado Guedes afirmava que aproveitaria o momento de reorganizar a saída da dupla crise (econômica e sanitária) para “cortar subsídios” (ocorreu em parte quanto aos creditícios, mas não aos tributários).

No caso específico da Ford, informações de bastidores dão conta de que a decisão de sair do Brasil já tinha sido tomada em 2018, e foi adiada por razões exclusivamente políticas por parte da empresa: não queria dar a impressão de que o fazia (abandonar nosso país) por desaprovar o vencedor das eleições daquele ano. Se, de alguma maneira, a montadora antecipava que o ambiente de negócios brasileiros se alteraria de maneira positiva, perdeu até aqui a aposta e optou pelo “stop loss”.

Aqui voltamos ao “recado geral” deixado pela saída da Ford. É a constatação de que nossa política, não importa o partido no poder, não foi capaz de construir o grande consenso em torno da pauta da produtividade, da competitividade, das reformas estruturantes do Estado, do efetivo combate à desigualdade, miséria, injustiça social. E agora, distraída por reeleição, pandemia e sufoco fiscal, parece tão distante como sempre de criar a convergência necessária.

Evidentemente que a Ford ou qualquer outra grande corporação não é “juiz” dos nossos destinos nem ocupa qualquer posição “moral” para determinar o que somos ou deixamos de ser. Ou que jamais erre nas decisões de investir ou desinvestir. Mas o que ela acabou de fazer é um alerta gritante: lá fora estamos sendo vistos como capazes apenas de produzir mais do mesmo – e esse mesmo não é satisfatório.

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