Decisões do chavismo e da oposição marcam o futuro da crise após semana de “impasse” que deu oxigênio a Maduro. Pela internet, Guaidó disse que se o opositor o prender será seu último erro
Há uma semana a sensação na Venezuela é que, novamente, tudo dá voltas sobre si mesmo. Um impasse que, tudo parece indicar, irá pelos ares com o regresso de Juan Guaidó ao país nas próximas horas. O presidente da Assembleia Nacional anunciou no final do sábado sua intenção de voltar a seu país, sem esclarecer quando, mas convocou mobilizações para segunda e terça-feira, feriado pelo carnaval. A oposição acredita que a volta de Guaidó reativará o entusiasmo de seus seguidores, mas as consequências de seu retorno ainda são uma incógnita. Em uma mensagem transmitida via redes sociais, no domingo à noite, de um lugar não especificado, Guaidó disse, ao lado da mulher, que se Maduro decidir prendê-lo, seria “o último erro que cometeria”.
Guaidó se encontra fora da Venezuela há mais de uma semana. Seus movimentos, decididos durante a viagem e comunicados a conta-gotas, o levaram à Colômbia para liderar a tentativa frustrada de introduzir material médico e suplementos nutricionais através da fronteira. De lá foi para o Brasil, Paraguai, Argentina e Equador, reunindo-se com os presidentes desses países da região que são os que mais o apoiaram e procurando um contrapeso ao protagonismo da Administração de Donald Trump na crise, como se deduz das conversas com uma dezena de fontes, entre deputados próximos a Guaidó, assessores, líderes políticos da oposição e o entorno do chavismo, consultadas para essa reportagem. Uma estratégia que não está isenta de riscos, já que Guaidó saiu da Venezuela apesar de ser expressamente proibido pelo Supremo Tribunal de Justiça (TSJ), controlado pelo Governo.
Nicolás Maduro e os principais dirigentes chavistas sugeriram nos últimos dias que o líder oposicionista deve ser levado à Justiça. Ninguém pediu abertamente sua prisão e fontes do alto comando chavista afirmaram nessa semana que a intenção é “evitar cair em provocações”. Com toda a probabilidade, o sucessor de Hugo Chávez tomará a decisão final no último momento após se consultar com um pequeno grupo de colaboradores.
Entre as opções na mesa existe a possibilidade de que as autoridades de imigração impeçam sua entrada na Venezuela e, em uma tentativa de menosprezá-lo, o Governo lhe condene a uma espécie de desterro à espera de que o processo que colocou em andamento esfrie. A máquina chavista pode, também, detê-lo, uma vez que tecnicamente é um fugitivo. Essa hipótese lembra o caso de Leopoldo López, principal apoiador de Guaidó e líder de seu partido, o Vontade Popular, preso em 2014. E teria repercussões internas e externas imprevisíveis, que vão da explosão de um novo ciclo de protestos ao endurecimento do cerco diplomático e uma reação mais contundente de Washington, que nunca deixou de agitar o fantasma de uma intervenção militar.
Se por fim conseguir entrar será obrigado a retomar iniciativas, a mover peças. Ou seja, após um regresso ao qual sua equipe tentará dar contornos épicos não pode se permitir outra falha. Tampouco retornar ao setor anterior a 23 de fevereiro, quando se reunia com diversas instituições e apresentava seus planos. De alguma forma, o desafio de Guaidó passa por conseguir feitos concretos que possam chegar a uma saída da crise e manter viva a esperança dos amplos setores da sociedade que apoiam sua causa.
O desafio do presidente da Assembleia Nacional para derrubar Nicolás Maduro teve um impulso inicial que fez pensar em uma mudança iminente. Quase um mês e meio após o jovem político venezuelano se declarar presidente, entretanto, a intensidade do confronto diminuiu e as fileiras da oposição temem que esse processo acabe no enésimo falso alarme. “Impasse” é uma das palavras que mais acompanham a conversa sobre a situação da Venezuela, junto com “bloqueio”, “parada” e até “retrocesso”. Depende do otimismo dos interlocutores.
O erro de cálculo mais evidente ocorreu em 23 de fevereiro. A tentativa de levar ajuda aos venezuelanos mais vulneráveis se transformou em um instrumento político para enfraquecer o chavismo. Apesar de ter a partida quase nas mãos (alguns carregamentos já se encontravam no território venezuelano) foram geradas expectativas muito altas e o chavismo foi subestimado. A maior parte da oposição estava convencida de que o custo de um cenário violento pesaria sobre eles. Ainda mais quando Diosdado Cabello, na véspera, sugeriu que estavam dispostos a deixar entrar a ajuda. “Quem quiser comer comida desidratada é problema seu”, disse.
O chavismo, entretanto, mobilizou sua artilharia, não somente as forças de segurança, para reprimir os protestos. Coletivos armados foram à fronteira e intervieram depois, após uma fase inicial liderada pela Guarda Nacional e, posteriormente, a Polícia Nacional Bolivariana. Para garantir que as ordens de Maduro seriam respeitadas e prevenir qualquer problema, o chavismo enviou em cada ponto fronteiriço uma espécie de comissário político, como foram os casos da ministra de Prisões Iris Valera e o ex-ministro e coordenador dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP) Freddy Bernal.
A violência desativou a operação, apesar da oposição aventar a possibilidade de introduzir ajudas através de passagens fronteiriças informais, ao longo das trilhas, como acontece diariamente. Ocorreram também as desordens produzidas por militantes violentos, os chamados guarimberos, cuja presença foi reconhecida pelos próprios opositores. E alguns episódios que afetaram a imagem de Guaidó, como a detenção do ex-preso político Lorent Saleh.
Após um dia marcado pelos confrontos na fronteira, Guaidó, no Twitter, afirmou que pediria à comunidade internacional que deixasse abertas “todas as opções para conseguir a libertação da Venezuela”, o que foi interpretado como um pedido de intervenção militar e ceder aos setores mais radicais da oposição e à ala dura dos Estados Unidos, os chamados falcões de Trump, liderados pelo chefe de Segurança Nacional, John Bolton. A confusão causada por suas palavras obrigou Guaidó a abrandar sua mensagem. Em seu entorno defendem que ele não queria atiçar o fogo e que fez até referência à possibilidade de se sentar para negociar com o chavismo. Mas já era tarde. Pouco depois, um dos líderes da oposição no exílio, Julio Borges, representante de Guaidó no Grupo de Lima, afirmou que durante o encontro previsto para um dia depois exigiriam do órgão “um aumento na pressão diplomática e no uso da força contra a ditadura de Nicolás Maduro”. Nem mesmo o Governo da Colômbia, que junto com Washington é o principal apoiador da oposição no tabuleiro internacional, aceitou o desafio. O Grupo de Lima descartou essa possibilidade e somente a Administração de Donald Trump deixou todas as portas abertas.
A ideia de uma intervenção militar está em cada conversa sobre o futuro da Venezuela. No chavismo estão convencidos de que é algo mais do que uma ameaça retórica. Sentem que não pode ser descartada com Trump na Casa Branca e o que consideram uma traição golpista de uma parte da oposição. Conscientes de que não poderiam enfrentar um ataque durante muito tempo, não hesitam no momento de afirmar que tentarão resistir a um assédio até o último momento, com todas as consequências.
Diante desse contexto, a oposição caminha sobre uma linha muito fina. A maior parte dos próximos a Guaidó, deputados com capacidade de tomar decisões e assessores, refuta o uso da força para conseguir uma saída à crise. Sabem, entretanto, que deixar o chavismo sem essa ameaça diminuiria a pressão psicológica e poderia significar um retrocesso nesse processo. Mais um. De modo que a fórmula de que todas as opções estão sobre a mesa seja a mais recorrente. O risco, admitem as fontes consultadas, é que a estratégia estremeça com o sentimento de grande parte da população, do qual o setor externo pretende amealhar frutos. O cansaço e o desespero com o chavismo são tais que ela não se importaria com a forma com que pudesse ser tirado do caminho. Os setores mais radicais, com María Corina Machado na liderança e apoiados por muitos venezuelanos no exílio de Miami e Washington, deram força a essa opção.
“A intervenção já chegou”, comenta este colaborador. A intervenção, entretanto, não é, por enquanto, de caráter humanitário e militar. Como é feito, então, o cerco dos Estados Unidos? Com sanções diretas e individuais à cúpula do chavismo e alto comando militar e a oferta de incentivos (vistos, desbloqueios das contas) em troca do abandono a Maduro. Por enquanto, esse caminho se mostrou ineficaz ou, pelo menos, ineficiente. Por volta de 700 oficiais e soldados desertaram desde 23 de fevereiro. Um número que pode parecer significativo e que, entretanto, é risível diante dos números das forças armadas venezuelanas, que possuem aproximadamente 250.000 membros.
Um dos objetivos da viagem de Guaidó dessa semana era pedir aos mandatários com os quais se encontrou que adotem sanções concretas contra Maduro e seu entorno para apertar o cerco. No começo também foi avaliada a possibilidade de que Guaidó viajasse à Europa, para realizar uma minireunião na qual estivessem presentes, pelo menos, a Alemanha, França e Espanha.
A União Europeia é vista pelos dois lados como um caminho para se chegar a uma saída pacífica e diplomática à crise. A oposição quer que o Grupo de Contato criado pela chefa da diplomacia europeia, Federica Mogherini, dê passos mais rápidos e concretos diante de uma eventual negociação com o chavismo. Isso permitiria ao chavismo não ceder aos Estados Unidos, mesmo que deem como certo que qualquer acordo com a oposição deve ter o sinal verde da Casa Branca.
Vários diplomatas destacam que, nesse ano, Maduro, que não costumava se reunir com os embaixadores europeus, se encontrou com eles duas vezes e os canais continuaram abertos com as embaixadas mais importantes apesar da maioria dos países da UE ter reconhecido Guaidó como presidente interino da Venezuela. A sensação dentro da diplomacia europeia é que o chavismo continua sendo uma caixa preta difícil de decifrar, em que não se sabe se há divisões e até debates internos que possam produzir uma ruptura. Vários participantes desses encontros lembram uma das falas de Maduro: “Eu não sou Gadafi e Saddam, mas se me matarem surgirá outro e será mais radical”.