Vinícius Müller: A História em chamas é o fracasso do futuro

Como devemos encarar as narrativas históricas que antecipam o fim, no futuro, de algo conquistado no passado? De Francis Fukuyama a Steven Levitsky, não são poucos os exemplos contemporâneos. Vinícius Müller vai mais fundo na questão.
Foto: I. H. Laking
Foto: I. H. Laking

Como devemos encarar as narrativas históricas que antecipam o fim, no futuro, de algo conquistado no passado? De Francis Fukuyama a Steven Levitsky, não são poucos os exemplos contemporâneos. Vinícius Müller vai mais fundo na questão.

Há um jogo entre o passado e o presente que de tempos em tempos reaparece. Com certa frequência, em épocas de alguma angústia sobre o presente. Neste jogo, ora definido pelo entusiasmo que as partes envolvidas apresentam em relação ao conflito que imaginam participar, ora pela aceitação dos envolvidos de que uma nova era surgirá, passado e presente se entrelaçam para criarem, juntos, algum sentido em meio ao aparente caos.

Este jogo muitas vezes estimula que tenhamos como objetivo algumas definições que se pretendem sólidas sobre como as coisas funcionam. Proliferam, com qualidade variável, teses e ideias acerca do fim disso e do início daquilo; dos motivos que nos levam ao caos e dos caminhos que devemos trilhar ao paraíso: O Fim da História e o ultimo homem (Fukuyama, 1992) e Como as democracias morrem (Levitsky, 2018) são exemplos contemporâneos destas teses ‘definitivas’, que se arvoram como aquelas que iluminam os rumos da história e que identificam as passagens entre tempos diversos.

Mas, isso não é uma característica contemporânea. Foi assim, por exemplo, no século V, quando, ao experimentar a ampla crise do Império Romano, Agostinho, um estrangeiro, criou o pensamento que serviu de fundamento aos séculos seguintes. O santo de Hipona estabeleceu uma nova relação entre um presente crítico, marcado pela crise moral e política da estrutura imperial romana, e um passado exotérico que, indiferente às agruras dos homens, se projetava em um futuro perfeito e perene. A Cidade dos Homens, que então se pensava como eterna, caía ante a violência que substituía as regras de sucessão do poder político imperial e se revelava frágil ante a perfeição da Cidade de Deus.

Alguns séculos depois, o italiano Joaquim de Fiore, monge da ordem beneditina e membro do mosteiro de Cister, também construíu seu modo de entender o tempo histórico a partir de uma amálgama entre um passado que ressurgiria após um período – o presente – de imperfeições. Em meio às crises medievais que envolviam as reais e imaginárias ameaças que vinham do leste islâmico, as Cruzadas, as disputas entre poderes terrenos e místicos e certa desagregação de uma ordem social e econômica que, por muito tempo, foi entendida como a manifestação daquela perfeição apontada por Agostinho, Fiore identificava uma ordem perfeita, a Era do Pai, que havia sido substituída por uma outra, a do Filho. Esta, imperfeita e que vivia no século XII seu ocaso, esperava, como uma ruptura e uma retomada, a ascensão da terceira ordem, a Era do Espírito Santo, que não só confirmava uma trajetória linear da História (ordens e eras que se sucedem) como também circular (a retomada da perfeição de um passado divino ou mítico). O milenarismo do monge italiano serviu de influência a inúmeros movimentos fatalistas que esperam o fim dos tempos e anseiam pelo ressurgimento dos tempos pretéritos marcados pela justaposição e harmonia.

Esta aparente contradição entre a eternidade perfeita da Cidade de Deus de Agostinho e o milenarismo salvacionista de Fiore, revela mais do que um debate medieval sobre o tempo histórico e seu envolvimento com o tempo divino, mas também os modos como entendemos a relação entre os três tempos que identificamos como sendo humanos: o passado, o presente e o futuro. O passar do tempo e a contemporaneidade não abandonaram tais premissas e, mesmo parcialmente relegando ao limbo um passado mítico revelador da perfeição ou aguardado para a salvação, ainda oscila entre a linearidade de uma história que, acima das imperfeições do presente, revela a perenidade do que é certo e justo. E também, a circularidade de um tempo que, após a crise vivida, renasce em nome da superação e da salvação. Em suma, o futuro será melhor do que o presente porque o passado se impõe: porque o presente é um hiato entre nosso passado e nosso futuro; e/ou porque nosso presente será superado por um futuro que nos liga ao passado.

Isto explica a ideia, corrente entre alguns indianos, que a presença portuguesa no século XVI e a britânica no século XIX foram apenas um pequeno acidente entre um passado milenar e um futuro autônomo e autêntico. Ou o modo como os descendentes dos povos nativos do México entendiam a presença dos espanhóis em seu território por trezentos anos. Conforme nos conta Octavio Paz em sua obra Soror Juana Ines da La Cruz (1982), a independência mexicana da primeira metade do século XIX seria, para muitos, uma retomada do Império Asteca, àquela altura da Historia já distante e mítico para o povo mexicano.

Desta forma, mesmo as obras contemporâneas, ao identificarem o risco que o presente representa a algo estabelecido no passado (Como as democracias morrem) ou a superação de certo ‘acidente histórico’ (O Fim da História e o último Homem), repetem, de certo modo, o debate historiográfico milenar. Além disso, revelam de modo privilegiado a relação que estabelecemos com o passado e como só identificamos o futuro a partir de como entendemos o que já passou.

Neste caso, uma cena do filme Amistad (Steven Spielberg, 1997) é reveladora. Nela, John Quincy Adams, que fora senador e presidente dos EUA, apresenta sua posição acerca do debate que norteia todo o filme: escravos africanos devem ser considerados seres humanos e, por isso, detentores de direitos naturais, como a propriedade sobre o próprio corpo e, consequentemente, livres? Ou devem ser considerados inanimados e, por isso, propriedades de outrem? Na cena, Adams, interpretado magistralmente por Anthony Hopkins, anda, enquanto discursa em favor da liberdade dos escravos, em meio aos bustos de antigos presidentes e lideranças do país, entre eles George Washington. E justifica seu entendimento sobre o tema que debate a partir da insinuação de que segue aquilo que os que vieram antes dele diriam. Ou seja, quando no presente passamos por uma crise de ordem moral, não é para o futuro que olhamos, e sim para o passado.

Por isso quando escrevemos sobre aquilo que compromete ou de como imaginamos o que virá, não é para o futuro que estamos olhando. É para o passado. E o modo como entendemos o passado passa a ser, portanto, fundamental para nossa projeção sobre o futuro. Por isso também que sociedades maduras aprendem com sua história e preservam não só aquilo que as engrandece, mas também aquilo que no presente as envergonha. E é por isso, infelizmente, que sociedades que não entendem, censuram, não reconhecem e, no pior dos casos, incendeiam sua História, são aquelas que comprometem o seu futuro. A História em chamas é o fracasso do futuro.

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.

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