Vinicius Miguel: Coronavírus, desarmonia federativa e estratégias democráticas para a pandemia

A redação de ponderações sobre eventos inconclusos é sempre delicada. Mais cautela ainda é necessária quando se trata de fenômenos que não podem ser inadvertidamente comparados.
Foto: Paula Fróes/GOVBA
Foto: Paula Fróes/GOVBA

A redação de ponderações sobre eventos inconclusos é sempre delicada. Mais cautela ainda é necessária quando se trata de fenômenos que não podem ser inadvertidamente comparados 

A pandemia da doença do corona vírus é um desses momentos históricos, sem equivalentes na história recente.

Tantas circunstâncias da conexão do tempo-espaço da sociedade industrial-global ainda conferem mais complexidade ao intrincado problema: migração internacional e fluxos acelerados de pessoas; celeridade de desinformação com potencial de letalidade sem precedentes e escassez de instituições multilaterais capazes, de pronto, a ofertar respostas efetivas para a pandemia. 

Esses aspectos realçam a prévia fragilidade dos sistemas de saúde – sobretudo de Estados periféricos – apontando para a vulnerabilidade de nossas sociedades. 

A incapacidade societal e estatal de coordenar a melhoria da saúde pública e coletiva conduz à reflexão sobre temas indispensáveis, mas usualmente negligenciados, como o saneamento básico, a vigilância epidemiológica e sanitária, a ampliação de imunização e demais mecanismos de rompimento da cadeia de transmissão de doenças, de melhora da qualidade de vida de uma população e do exercício democrático da administração de políticas de saúde.

Merece alguma ponderação a dimensão da paradiplomacia subnacional no combate à doença do corona vírus (Covid-19). 

É bem sabido pelos estudos em Saúde Pública e Coletiva que as doenças não conhecem fronteiras e invalidam a clássica noção de soberania política: as bactérias e os vírus trespassam limites de nacionalidades sem para isso precisarem de passaporte.

A participação de entidades subnacionais (Estados e municípios) sempre foi um aspecto observado com peculiar curiosidade pelo Direito Constitucional e pela Política Internacional. Dito de outro modo, a persistência de Estados e municípios como atores e sujeitos de direitos (e obrigações) no esquema federativo e de relações internacionais é um tema de considerável importância. 

A disputa interfederativa já se instalou no Estado brasileiro. Além disso, governadores e prefeitos tem recorrido a uma “paradiplomacia”, ao acessarem diretamente o governos da República Popular da China, em busca de produtos hospitalares, que seriam transportados para o Brasil por aviões da FAB.

Na atual pandemia, o comando constitucional de solidariedade nas responsabilidades para assegurar a saúde ganhou contornos graves.

Em tempos de indisponibilidade de equipamentos médico-hospitalares (como o clássico respirador), o acirramento de conflitos entre os entes federativos vem ocasionando intensas batalhas político-judiciais. Não menos, a escassez no mercado internacional dos mesmos itens, vem gerando disputas entre Governos Estaduais com fornecedores internacionais.

Na tentativa de coibir a remessa para o exterior de respiradores, o Ministério da Saúde proibiu exportação. Não bastando, proibiu igualmente a venda para qualquer município ou Estado, requisitando de forma compulsória os aparelhos. 

Essa medida vem gerando evidente turbulência nas esferas locais.

Exemplo dessa disputa interfederativa, foi o caso do município de Recife (PE), que se socorreu na Justiça Federal para obter a liberação de 200 respiradores requisitados pela União

Outro exemplo foi o município de Cotia (SP), que usou do mesmo expediente judicial para vencer o bloqueio da União e ter acesso aos respiradores. A ansiedade foi tamanha, que em cena pitoresca, o vice-prefeito foi buscar os aparelhos na fábrica, sem que tivessem certificados de adequação para o uso.

Outro ponto de conflito entre Estados e União (ou, ao menos, à figura da Presidência da República) tem sido as medidas a serem adotadas.

As medidas de isolamento social, de fechamento de comércios e até mesmo de regulação do transporte aéreo e fluvial foram pontos de acirramento das tensas relações entre a Presidência e Governos Estaduais. 

Nesse aspecto, duas Medidas Provisórias foram editadas pela Presidência da República, tentando subverter Decretos estaduais (as MP Nº 924, de 18 de março de 2020 e a MP Nº 926, de 20 de março de 2020).

Parte de tais conflitos escoou no STF, na Medida Cautelar na ADI 6.341 (DF). Na ação, o PDT demandou o Presidente da República e o Rel. Min. Marco Aurélio determinou que os Municípios e Governos podem/poderão, de forma concorrente, restringir a locomoção e o transporte aéreo/fluvial/terrestre. Marque-se que o STF suspendeu o dispositivo da MP 926 em apenas 04 dias após sua edição. 

A escalada de ataques da Presidência da República contra poderes locais e autoridades regionais vem se dando igualmente na dimensão discursiva.

Em 23/03, Bolsonaro fez pronunciamentos lançando ataques aos Governos Estaduais:

“Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia na questão do corona vírus”

“Não exterminar empregos, senhores governadores. Sejam responsáveis. Espero que não queiram me culpar lá na frente pela quantidade de milhões e milhões de desempregados”

Tentando jogar a responsabilidade política e econômica aos Governadores pelo fechamento do comércio, em 27/03, o Presidente lançou:

“Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante, etc, que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas, quem paga é o governador e o prefeito, tá ok?”

A retórica provocativa contra os governadores avançou, em 02/04, com o Presidente dizendo que os mesmos estariam “com medinho” do vírus e por isso não saiam às ruas. 

Dessa forma, se evidencia o recurso de mobilização ao “povo”, atribuindo responsabilidades aos Governadores, seja pelas medidas de restrição de tráfego, seja pelo fechamento de comércios ou por possíveis prejuízos imediatos (salários) ou futuros (“extermínio” de empregos).

Na ausência de ordenamento de demandas, se vê a formatação de um quadro de desarmonia federativa.

A incerteza jurídica e a instabilidade econômica tendem a agir de forma conjugada em uma deterioração da sociedade brasileira, podendo aprofundar radicalismos ideológicos.

Há, também, o risco do acirramento de enfrentamentos partidários em decorrência da proximidade do calendário eleitoral. Com isso, podem-se antecipar impactos ainda mais negativos na busca de soluções colaborativas.

As experiências internacionais, como no caso das conhecidas epidemias de HIV/Aids, Ebola ou de Zika, demonstram que os esforços interinstitucionais e a solidariedade multilateral são os únicos remédios disponíveis para a mitigação do sofrimento humano.

Nessa configuração, na escala nacional, em diálogo com a sociedade civil, as Defensorias, os Tribunais de Contas e os órgãos do Ministério Público ganham um importante protagonismo não apenas de controle democrático, como de mediação e de proposição de afinamentos institucionais indispensáveis para se vencer a crise federativa e epidêmica em curso.

No escopo das relações internacionais, reconhecer a interdependência de Estados nacionais e a essencialidade de organismos multilaterais para uma estratégia de governança colaborativa agora é, mais do que nunca, um projeto para salvar vidas.

Que da necropolítica possa emergir um potencial colaborativo e democrático para a efetivação do direito social fundamental à saúde.

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