Valor: Governo fará ‘desmanche’ do Estado, diz Mourão

Prestes a assumir a vice-presidência do país, o general Hamilton Mourão defende que o governo de Jair Bolsonaro envie ao Congresso uma proposta de emenda constitucional para desvincular o Orçamento da União. "A Constituição engessa o país", disse, em entrevista ao Valor. Mourão afirmou que governo não começará "na base de impactos e pacotes", mas que todos os ministros deverão no dia 14 de janeiro, data marcada para acontecer a primeira reunião ministerial, apresentar metas e objetivos para "desregulamentar" e "desburocratizar" suas áreas."
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Por Claudia Safatle, Carla Araújo e Andrea Jubé, do Valor Econômico

Prestes a assumir a vice-presidência do país, o general Hamilton Mourão defende que o governo de Jair Bolsonaro envie ao Congresso uma proposta de emenda constitucional para desvincular o Orçamento da União. “A Constituição engessa o país”, disse, em entrevista ao Valor. Mourão afirmou que governo não começará “na base de impactos e pacotes”, mas que todos os ministros deverão no dia 14 de janeiro, data marcada para acontecer a primeira reunião ministerial, apresentar metas e objetivos para “desregulamentar” e “desburocratizar” suas áreas.

O general defende que o texto da reforma da Previdência enviado pelo governo Michel Temer seja aproveitado e diz que os militares também estão dispostos a dar a sua contribuição com mudanças. O vice-presidente sugeriu ainda que Bolsonaro dê explicações da situação das contas públicas aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que, a aprovarem um aumento de 16,38% nos vencimentos, mostram” desconhecer a realidade”.

Mourão defende ainda que, com as reformas aprovadas, será possível conversar com os investidores sobre o alongamento do prazo dívida mobiliária interna. O vice-presidente eleito se negou a comentar a situação do ex-motorista de Flavio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, que se apresentou como comerciante de carros para justificar a movimentação milionária em sua conta corrente: “Isso é um assunto do Ministério Público do Rio de Janeiro”, resumiu. A seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: Como estão distribuindo as missões no início do governo? A economia dará respostas nos primeiros dias.

Hamilton Mourão: A economia é o carro-chefe para arrumar essa situação que o país está enfrentando. Nós tivemos uma reunião preliminar na semana passada e foi dada a orientação que no dia 14 de janeiro, que vai ser a primeira reunião ministerial para valer, todos os ministros terão que apresentar o seu planejamento e as suas metas para os primeiros 100 dias, para serem aprovadas pelo presidente. Nessa reunião preliminar, alguns ministros que já dispunham de algum conhecimento anterior apresentaram alguma visão mais objetiva do que eles têm pela frente, outros ainda estão tomando pé da situação.

Valor: O ministério da Economia está entre esses que estão mais avançados?

Mourão: Na economia nós temos uma noção muito clara, isso é uma visão do conjunto, que as reformas são muito importantes. Se a gente não conseguir levar adiante tanto a reforma da previdência como a tributária nós vamos ter muita dificuldade.

Valor: Os senhores irão aproveitar o texto atual da reforma da previdência que já está na Câmara?

Mourão: Eu acho que vai ter que ser aproveitada, até pelo problema de prazo. Se a gente for voltar para a estaca zero não vamos conseguir produzir nada no ano que vem. Poderia ser feito um adendo aqui outro ali dentro da visão que se tem. Mas o que está sendo trabalhado, eu não tenho dado concreto disso, vai ser colocado só nessa reunião de janeiro. Mas temos que usar o que está lá e colocar uma coisa a mais, que isso é permitido pelo regulamento [sic] interno do Congresso, para que a gente consiga no primeiro semestre tentar passar isso aí.

Valor: Antes dessa reunião de 14 de janeiro tem alguma coisa que já pode ser anunciada?

Mourão: Nós não vamos começar na base de impactos e pacotes. Eu acho que gente tem que ser mais objetivo e não fazer coisas espalhafatosas que vão resultar em muito pouco resultado depois.

Valor: Mas tem coisas também que podem dar uma sequência, por exemplo, abertura comercial, não?

Mourão: Abertura comercial vamos ter que fazer um trabalho que tem que estar em fases, porque a nossa indústria não suporta um choque de abertura da noite para o dia. Nós vamos ter que fazer um faseamento. Numa reunião que eu tive com o pessoal da indústria eu usei um termo que era do presidente (Ernesto) Geisel (1974-1979) que dizia que era “lenta, gradual e segura” e acho que a abertura comercial tem que ser dessa forma, porque nós não vamos resistir a um choque.

Valor: E sobre a intromissão do estado na vida do cidadão?

Mourão: Todos receberam orientações sobre desregulação. Todos os ministros receberam orientação e têm que apresentar trabalhos e metas neste sentido, de você soltar um pouco, liberar as pessoas para que possam empreender com mais segurança.

Valor: Antigamente, se dizia que era impossível empreender com os juros altos, hoje os juros não são tão pesados, mas a carga tributária…

Mourão: A nossas carga tributária está aí na faixa de 35% a 37% do PIB. O Estado leva 45% do PIB e não devolve. Se devolvesse, se tivéssemos hospitais de primeira qualidade, escolas maravilhosas, estradas fantásticas, estava todo mundo bem, mas não temos. É só para sustentar uma máquina pesada em termos de pessoal e pesada em termos de estrutura.

“O acúmulo de recursos nas mãos do governo cria espaço para a política do toma-lá-dá-cá, para a corrupção”

Valor: Além da reforma da previdência e tributária, tem a reforma do estado, dá para ser feita?

Mourão: É um troço difícil, por que qual é a margem de manobra que existe? São os cargos em comissão, que dentro do governo federal tem um número cabalístico ai que serão em torno de 23 mil, mas se somar em toda a estrutura da federação chegaria a 120 mil. Incluindo função gratificada, cargo em comissão, estatal, isso aí você tirando os concursados. De todos os entes somados, os três níveis. É um exército.

Valor: Dá pra reduzir para quanto?

Mourão: Não para chegar e dizer: ‘vou reduzir em 50%’. Cada um vai ter que avaliar dentro da sua estrutura qual é quantidade que ele pode manter, tem que ser um processo de estrangulamento e nós temos o problema do próprio funcionalismo público que a gente não consegue reduzir, porque isso mexe com as igrejinhas. Lá em São Paulo foi aprovado o novo regime de previdência do funcionalismo e já está colocada greve.

Valor: Como convencer os parlamentares sobre a necessidade da reforma da Previdência?

Mourão: Temos que fazer uma campanha de esclarecimento, tanto no Congresso como da população. O homem comum, o cidadão que não estuda muito, tem ideias preconcebidas do papel do estado na vida futura dele. A gente tem que explicar isso, porque se não ocorrer (a reforma) ninguém vai ter futuro. Mas se ela for aprovada vai trazer mais confiança para o país dos investidores.

Valor: Vocês querem romper com o fisiologismo, o Congresso vai corresponder?

Mourão: Vai ser um governo de persuasão. A gente tem que mostrar pra eles a responsabilidade que eles têm. Não querendo jogar a população contra, mas é tentar ser mais coerente. Tem muito parlamentar ali que não entende. Você tem ali – como em qualquer grupo social – tem 30% que são realmente esclarecidos, tem 40% que é a ‘meiuca’ que vai pra onde sopra o vento, e mais 30% que não sabe nem onde é a “curva do A”.

Valor: Isso é atribuição do presidente?

Mourão: Acho que do presidente, do coordenador político, o general Santos Cruz (Secretaria de Governo). Se o presidente me delegar essa tarefa eu vou lá conversar. Vamos expor didaticamente.

Valor: E os filhos dos presidente, dois deles são parlamentares, qual vai ser o papel deles?

Mourão: Os filhos devidamente orientados pelo presidente podem auxiliar e muito. Compete ao presidente conversar e orientar eles. É a primeira vez que temos na história da República presidente com filhos parlamentares. Eles têm uma interação muito grande, são muitos amigos. Estamos num momento de acomodação. Quando começar a nova legislatura em fevereiro eles estarão com as tarefas bem definidas.

Valor: E a previdência dos militares, ela também será feita?

Mourão: O que tem que ficar muito esclarecido é que o militar não tem uma previdência, eles têm um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão. Mas já estão colocadas as questões que entrariam, como o aumento de permanência do serviço ativo. Hoje precisa de 30 anos de serviço e a ideia é passar para 35 no primeiro momento. E também as pensionistas passariam a descontar, seria uma forma a mais de contribuição. A questão dos militares é infraconstitucional.

Valor: O senhor tem recebido investidores estrangeiros?

Mourão: Alguns. Recebi o Bank of America, JP Morgan. O dado que eu tenho é que existem US$ 9 trilhões no mundo sendo negativados porque não estão sendo investidos em atividade de risco, então temos que absorver alguma coisa disso.

Valor: Há anos se fala em fazer reforma tributária, como ela seria?

Mourão: A reforma tributária tem de estar atrelada à reforma do Estado, e essa reforma é a do pacto federativo. Temos que colocar o recurso o mais cedo possível nas mãos do Estado e do município, e não ficar distribuindo migalhas. Caberá ao Governo Central ficar com menos recursos na mão dele. O governador do Estado e o prefeito são aqueles que têm a melhor noção das carências e necessidades.

Valor: Mas para fazer isso tem que ter uma desvinculação geral.

Mourão: Essa é a outra ideia que nós temos que eu considero extremamente pertinente, e isso daria um papel relevante para o Congresso. O Congresso hoje discute – sem querer desmerecer o papel dos congressistas -, assuntos periféricos. Se eles tivessem todo o Orçamento para realmente dizer o que vai para cada um eles teriam uma responsabilidade maior e o Executivo ficaria com a função de executar o Orçamento. O Executivo tem 8%, 9% para mexer.

Valor: Como isso será feito?

Mourão: Essa desvinculação teria que ser feita por emenda constitucional, porque a Constituição diz que tanto vai pra saúde, outro tanto para a educação. A Constituição foi feita na saída do que foi o período militar, quando várias corporações estavam batalhando um naco. Então se colocou coisa demais na Constituição. A Constituição da forma como está engessa o país.

“O militar não tem uma previdência; eles têm um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão”

Valor: O presidente Jair Bolsonaro vai sancionar ou vetar a prorrogação dos incentivos fiscais para empresas que investirem nas áreas da Sudam, Sudene e Sudeco, diante de possível rombo?

Mourão: Não conversei esse assunto com o presidente. Ali no dia 2 a gente vai ter bastante trabalho. Há os outros prejuízos lançados, como o aumento do Judiciário e dos funcionários públicos.

Valor: O STF está fora da realidade?

Mourão: Há um certo ativismo lá dentro, ora político, as simpatias políticas que alguns dos ministros têm, e às vezes uma coisa pessoal. A gente tem que conversar. Sentar um dia com os 11 ministros e expor para eles a situação do país. Acho que eles não conhecem. Sou favorável a que o presidente vá lá um dia e explique que se os senhores aprovam medidas dessa natureza, vamos cada vez mais nos encalacrar. Levaria o ministro da economia a tiracolo.

Valor: O Brasil está quebrado…

Mourão: Eu sei disso, pagamos R$ 400 bilhões por ano de juros, temos um déficit de R$ 139 bilhões, isso na conta de padeiro. Por isso precisamos aprovar essas reformas, porque com a melhoria do nosso rating nós poderemos até emitir títulos pagando juros menores. Podemos fazer uma repactuação dessa dívida, podemos alongar o prazo, diminuir o pagamento anual dos juros para R$ 350 bilhões; R$ 50 bilhões a mais é muito pra gente investir em coisas que a iniciativa privada talvez não queira.

Valor: Esse é um tema muito delicado: a repactuação não pode ser interpretada como um calote?

Mourão: O PPI vai ficar com o general Santos Cruz na Secretaria de Governo. O que ele precisar, a gente apoia. Eu montei uma equipe multidisciplinar capaz de oferecer soluções caso seja necessário.

Valor: Mas é como um suporte, um conselho?

Mourão: Não é um conselho, é uma equipe capacitada a trabalhar em qualquer assunto temático. Por exemplo: precisamos discutir o Acordo de Paris, tem gente para dar esse subsídio. É o meu dream team: são oito analistas.

Valor: O presidente se encontra com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu nesta sexta-feira. O governo vai ter uma relação especial com Israel?

Mourão: Não sei ainda. O que eu vejo é que hoje Israel tem uma aproximação muito grande com o presidente, já de algum tempo. Vamos ver até que ponto isso vai acontecer. Até porque temos que olhar, dentro do sistema internacional, pragmaticamente, o que se pode auferir nesse processo. Não podemos ficar só com o ônus, a gente tem que ter bônus também.

Valor: Pode haver alguma retaliação dos países árabes com essa aproximação de Israel?

Mourão: Depende do grau da aproximação, né? Isso aí tem que ser estudado até porque o presidente não tomou nenhuma decisão a respeito, e quando chegar a hora, a gente vai apresentar uma visão pra ele, e ele poderá decidir em melhores condições.

Valor: E essa relação com os Estados Unidos, será de adesão automática?

Mourão: Não, o que existe, e que acho inegável, é que nós temos hoje um governo pró-Trump que tem uma visão pró-valores da democracia americana, que admira esses valores. Mas não é um concorde imediato com qualquer coisa que for produzida por lá. É uma relação de governo, que não pode ultrapassar esses limites.

Valor: Logo no início, o governo vai ter que decidir sobre o subsídio do diesel aos caminhoneiros.

Mourão: Sim, o general Heleno fez uma reunião a esse respeito. Acho que a tendência é manter o subsídio até que se consiga uma solução melhor. Tem a questão da tabela de frete, que o [ministro da Infraestrutura] Tarcísio Freitas está trabalhando em cima também. Nós não temos condição de, de hoje para amanhã, solucionar esse problema.

Valor: Quando haverá uma solução?

Mourão: Na minha visão, onde está a raiz desse problema todo? No sistema tributário. Então, se a gente consegue dar uma acertada na questão da tributação, e os combustíveis, qual o índice maior da tributação? É o ICMS, que é de onde os Estados tiram o dinheiro. Onde eu moro, no Rio de Janeiro, é absurdo. É a gasolina mais cara do Brasil, custa R$ 5, é 35% o ICMS lá sobre o combustível.

Valor: Tudo virou uma indústria pra arrecadar…

Mourão: Mas arrecadar por que? Porque você tem que alimentar o dragão. É isso tudo que tem que ser explicado pra um conjunto de parlamentares e população, porque nós temos que domar o dragão. Domamos o dragão da inflação, mas esse outro dragão do Estado ainda não está domado. Está solto aí. Temos muito para fazer, na realidade, pra desfazer. Um desmanche, se fizer um desmanche. Eu já fiz essa comparação, eu gosto de cavalo, gosto de montar, já disse que Brasil é um cavalo olímpico capaz de saltar 1m80, mas tá todo amarrado, só salta 0,70 cm. O Paulo Guedes falou, tem que tirar as bolas de ferro do pé industriais.

Valor: Como chegamos a esse ponto?

Mourão: Porque aqui existe a associação do patrimonialismo com essa visão de que o Estado é o grande protetor. E depois pronto. E aí você junta o populismo, que tivemos tanto de direita como de esquerda.

Valor: Talvez a principal tarefa seja esse desmanche

Mourão: É, no Exército a gente tem um ditado: chefe bonzinho morre coitadinho. Não pode ser bonzinho, porque depois as próximas gerações serão beneficiadas. Hoje as próximas gerações não têm futuro, do jeito que tá.

Valor: O que o senhor achou das explicações do ex-assessor e motorista de Flavio Bolsonaro, que disse que as movimentações atípicas identificadas pelo Coaf eram resultado de compra e venda de carros?

Mourão: Sem comentários. Hoje isso é um problema do Ministério Público do Rio de Janeiro, não tenho nada a ver com isso.

 

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