Valor: AI-5 faz 50 anos em país polarizado; general Heleno defende decreto da linha-dura

Traumas demoram a passar. Cinquenta anos depois daquela sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, ainda causam emoção e controvérsias os motivos que levaram o então presidente Arthur da Costa e Silva (1899-1969) a editar o Ato Institucional nº 5, o AI-5, marco do início dos anos de chumbo.
Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil
Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Traumas demoram a passar. Cinquenta anos depois daquela sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, ainda causam emoção e controvérsias os motivos que levaram o então presidente Arthur da Costa e Silva (1899-1969) a editar o Ato Institucional nº 5, o AI-5, marco do início dos anos de chumbo.

Por Helena Celestino, do Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Quando, numa tarde ensolarada, o marechal-presidente abriu a reunião com as 24 autoridades mais poderosas do país, em volta da mesa de jantar do Palácio das Laranjeiras no Rio, já estava tomada a decisão de armar o Estado de poderes extraordinários, libertando o regime, por tempo indeterminado, das já tênues amarras legais.

Durou dez anos, foi o período mais duro da mais longa ditadura brasileira (1964-1985) e, mais de três décadas após a redemocratização, muitas das ideias consagradas sobre a radicalização do regime foram derrubadas com a abertura de novos arquivos, profusão de livros, filmes e teses a revisitar o período. Mas a interpretação do passado ainda reflete a polarização política de ontem e de hoje.

“Assinei e, se as condições fossem as mesmas e o conhecimento fosse aquele que a gente tinha naquele instante, assinaria outra vez”, diz Delfim Netto, o único sobrevivente da histórica reunião, da qual participou aos 40 anos como ministro da Fazenda ainda apagado, mas já com passagem bem-sucedida como secretário de São Paulo e autor de tese de doutorado sobre café, na época o produto que mais mexia com a economia brasileira. (Leia entrevista na página 12)

A fidelidade ao passado não impede Delfim de ridicularizar, duas décadas depois, o solene pronunciamento feito, em cadeia nacional de televisão, pelo então ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva (1913-1979) horas depois da decretação do AI-5. Em nome do governo, ele justificava o fechamento do Congresso, a cassação de mandatos, a prerrogativa de demitir funcionários públicos, a suspensão do habeas corpus, o cancelamento da liberdade de expressão e de reunião, pela necessidade de poderes extraordinários contra a ameaça comunista.

O perigo seria representado pelas manifestações estudantis, as ações armadas da esquerda e, como cereja no bolo da insubordinação, o discurso do deputado Marcio Moreira Alves (1936-2009) na tribuna da Câmara, em que se referia ao Exército como santuário de torturadores. “Naquela época do AI-5, havia muita tensão, mas, no fundo, era tudo teatro… Era teatro para levar ao ato”, disse Delfim ao jornalista Elio Gaspari, autor de cinco livros com minuciosa reconstituição da ditadura.

Foi prosaico assim, concorda a maioria dos historiadores. “Os protestos estudantis acabaram em junho e nem havia ainda as ações armadas. O Estado brasileiro tinha todas as condições para cuidar de alguns assaltos e meia dúzia de protestos”, afirma Carlos Fico, historiador, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e reconhecido como grande pesquisador do período.

O alvo principal do ato não era a esquerda armada, mas antigos aliados de 64, afirma o historiador Rodrigo Patto. O governo temia que o Congresso votasse uma Lei de Anistia, acusava os professores de estimular a revolta dos estudantes, via na imprensa simpatia com os protestos e, nos juízes, impedimento para a “justiça revolucionária” agir livremente. O AI-5, analisa, forneceu ao Estado meios para punir segmentos do seu campo, grupos de centro ou liberais flertando com a rebeldia.

A interpretação do professor é reforçada por enquete do então embaixador dos EUA John Tuthill (1910-1996), recuperada em um arquivo americano, em que ele expressa o desconforto da diplomacia de seu país com o fim das garantias institucionais no Brasil e ouve de políticos, intelectuais e empresários brasileiros previsões de tempos difíceis pela frente.

“A sensação era de que o novo Ato Institucional liberava as feras, que saíram à caça com mais vontade do que em 64”, diz Patto, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de “As Universidades e a Ditadura” (Zahar).

A partir daí, a ditadura tornou-se mais militar, mais autoritária, reduziu o espaço para atuação de aliados civis e botou os políticos em situação ainda mais subalterna. O “milagre econômico” já começara, mas a velha máxima “é a economia, estúpido” não ajudou a melhorar o clima político. Depois de um longo ajuste fiscal promovido pelo governo de Castello Branco (1897-1967), a liberação de crédito ao consumo estimulava a economia e já em 1968 o país cresceu 10%, iniciando um ciclo de taxas recordes de aumento do PIB até 1973. Só que a sensação de melhoria na qualidade de vida ainda não chegara à elite brasileira e, muito menos, aos mais pobres, dizem alguns especialistas.

“A crise foi estritamente política. O propósito que unificava os militares era transformar o Brasil em uma grande potência por meio de uma ação autoritária. O AI-5 não foi um fato episódico, foi a vitória da tendência saneadora, que achava necessário prender subversivos, corruptos e opositores para levar o projeto adiante”, diz Fico, autor de livros importantes sobre o período.

Era a vitória da chamada linha-dura. A outra corrente, mais moderada, tinha uma dimensão pedagógica, acreditava na força da propaganda política para conquistar apoios e da censura para resguardar a moral conservadora. Ambas as tendências partiam do princípio de que a sociedade era despreparada, não sabia votar e cabia aos dirigentes o papel de “Messias”. Os dois grupos se confrontaram ao longo da ditadura, às vezes ganhava força a corrente saneadora, outras, a pedagogia autoritária. “Eram dimensões distintas que expressam um propósito unificado, que chamo de utopia autoritária: tornar o Brasil um país rico ainda que a custo de direitos individuais, liberdade”, afirma Fico.

 

O general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, próximo ministro do Gabinete da Segurança Institucional, olha o passado de uma maneira semelhante à de Jair Bolsonaro (PSL) e ao discurso oficial da época. O homem que vai assessorar o presidente eleito em assuntos militares e de segurança acha que é fácil criticar agora o AI-5, longe do que qualifica de cenário de guerra revolucionária alastrando-se pelo país.

“Não era possível seguir permitindo que as forças da ‘comunização’ seguissem ganhando espaço por falta de instrumentos legais”, diz o general, em defesa das medidas de exceção, consideradas como uma maneira de “partir para a ignorância” pelo diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI) da época, o depois presidente João Baptista Figueiredo (1918-1999).

“O AI-5 começou a censurar antes mesmo de ser editado e a prender antes de ser anunciado publicamente”, escreve o jornalista Zuenir Ventura no livro “1968: O Ano que Não Terminou”. Nos dias seguintes ao 13 de dezembro, oficiais fizeram arrastões pelas cidades levando centenas de intelectuais, estudantes, artistas e jornalistas para as celas dos Departamentos de Ordem Política e Social (Dops) e quartéis. Estavam nessa turma de Caetano Veloso e Gilberto Gil ao ex-presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), capturado enquanto descia as escadas do Teatro Municipal do Rio. Aos 75 anos, o jurista Sobral Pinto (1893-1991) foi levado de chinelos e meias para um quartel; o antigo aliado dos militares Carlos Lacerda (1914-1977) se viu na mesma cela que o seu arqui-inimigo Mário Lago (1911-2002), histórico comunista vestido de vilão, o figurino da novela que gravava ao “cair”.

“Vivemos um terrorismo cultural”, classificou Alceu de Amoroso Lima (1893-1983), pensador católico importante nos anos 60. A suspensão do habeas corpus, princípio do direito para dar proteção ao cidadão contra arbitrariedades do Estado, devastou uma geração de brasileiros e deixou uma herança trágica: em documento entregue à então presidente Dilma Rousseff (PT) em 2014, a Comissão Nacional da Verdade contabilizou 434 mortos ou desaparecidos, 7 mil exilados e 20 mil torturados.

“A partir do AI-5 monta-se a repressão política, organizada nacionalmente por setores de espionagem, setores da polícia política, setores de censura”, diz Fico. O general Heleno contesta: “Apenas os excessos das forças do Estado são invariavelmente maximizados, enquanto as forças que desejavam transformar o Brasil em uma ditadura comunista são romantizadas”.

As denúncias de abusos contra os direitos humanos afetaram as relações externas do Brasil com as grandes democracias ocidentais, mas não só da maneira esperada pela rede de solidariedade aos exilados, organizadas por ativistas e parlamentares na Europa e nos EUA. Documentos revelam que interesses comerciais falaram mais alto do que as palavras de ordem dos manifestantes nas ruas e, secretamente, Reino Unido e França colaboraram com os oficiais brasileiros em ação nos porões.

“Os brasileiros foram cobaias das técnicas de tortura usadas depois pelo Exército britânico contra o IRA [Exército Republicano da Irlanda]”, diz o historiador João Roberto Martins Filho.

Professor da Universidade Federal de São Carlos, ele teve acesso a uma carta confidencial, de 1972, enviada pelo então embaixador britânico em Brasília, Sir David Hunt (1913-1998), ao Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido, na qual comenta que os “métodos mais sofisticados de interrogatórios no Brasil foram influenciados por sugestões e recomendações do Exército inglês”. Pelo texto, presume-se que os britânicos estariam sendo procurados de novo por brasileiros, e o diplomata escreve que, como seu interlocutor deve saber, a “colaboração com o Brasil já acabara há um ano e meio, ou seja, em agosto de 1971”.

“Os britânicos construíram três salas de tortura no DOI-Codi na Barão de Mesquita, antes de fazer isso na Irlanda, perto de Belfast”, diz Martins Filho, autor do livro “Segredos de Estado – O Governo Britânico e a Tortura no Brasil”. Eram cubículos pintados de preto ou completamente brancos, hermeticamente fechados, mantidos sob frio intenso ou calor escaldante, bombardeados com sons em alta frequência, variações de luz e ameaças gritadas em alto-falantes.

Uma réplica dessa sala escondia-se numa prisão na Irlanda, onde os membros do IRA também conheceram a arquitetura e os métodos de interrogatórios do Exército britânico, exportados depois para a prisão de Abu Ghraib, onde os EUA torturavam prisioneiros no Iraque. “O prisioneiro ficava no escuro muitas horas, perdia a noção do dia e da noite, começava a ouvir vozes e não sabia mais se eram deles ou não”, afirma o professor.

Para a rua Barão de Mesquita eram levados os ativistas nos anos 70. O jornalista Álvaro Caldas esteve lá duas vezes e constatou a modernização da tortura entre a primeira e a segunda prisão. Na primeira, era pau de arara e choque elétrico, juntos ou separados. Na segunda, foi deixado numa das salas especiais e viu que era tudo novinho, notou que os fios elétricos eram importados e achou tudo parecido com consultório de dentista. “Fiquei sozinho, ouvindo o barulho, até que entrou um cara e, de um púlpito, dizia: ‘Agora não torturamos mais’, como se não estivesse me torturando”, relembra Caldas. A história abre o livro “Tirando o Capuz”.

O “Times” de Londres foi o primeiro a denunciar o uso das “técnicas do Ulster [Norte da Irlanda]” e, por exigência do arcebispo ao primeiro-ministro britânico, a tortura foi proibida logo depois. Em relatório secreto consultado pelo pesquisador, um general citava enviados de muitos países, a Alemanha Ocidental entre eles, para aprender as técnicas britânicas de interrogatório. O Brasil não estava na lista, mas há registros de militares brasileiros em Londres e vice-versa.

“O documento comprova a participação direta do Reino Unido na construção da tortura no Brasil”, diz Martins Filho. Contatada, a embaixada do Reino Unido em Brasília não respondeu ao pedido de informações sobre o assunto.

 

Após o AI-5, ficaram mais complexas as relações diplomáticas do Brasil. Os EUA, aliados ativos no golpe de 64, agora estavam reticentes e divididos. O Conselho Nacional de Segurança propunha o esfriamento das relações com o Brasil e senadores defendiam o corte da ajuda externa aos brasileiros. Documento do Departamento de Estado mostrava a preocupação do então secretário Dean Rusk (1909-1994) com o rumo da política, mas, na Casa Branca, prevalecia o pragmatismo. Só que o Congresso, em conflito com governo de Richard Nixon (1913-1994) desde 1965, impusera ao Executivo a apresentação de um relatório anual sobre a situação dos direitos humanos nos países compradores de armas, restrições que dificultavam negócios com os militares brasileiros interessados em reequipar as Forças Armadas.

O Reino Unido percebeu a oportunidade de bons negócios. A moeda de troca para passar tecnologia a ser usada contra opositores da ditadura foi a compra de seis fragatas da Marinha inglesa, um negócio de 100 milhões de libras financiado por um consórcio de oito bancos britânicos, diz Martins Filho. As relações comerciais entre os dois países eram públicas e provocavam protestos na cidade-sede da Anistia Internacional. O apoio aos porões, naturalmente, era secreto lá e aqui. “Provavelmente, os primeiros-ministros não sabiam”, diz o pesquisador.

Padrão semelhante tiveram as relações entre França e Brasil. Paris honrava a fama de pátria dos exilados políticos do mundo: recebeu bem os brasileiros expulsos pela ditadura, mas foi igualmente acolhedora com as autoridades que os perseguiam. Negociava-se com a Força Aérea Brasileira 16 caças Mirages, um negócio com cacife para evitar as críticas oficiais do país dos direitos humanos às torturas nas prisões brasileiras. “Generoso no asilo, o governo francês era severo na vigilância dos exilados e cordial nas relações com a embaixada”, resume Elio Gaspari, em “A Ditadura Escancarada”.

As denúncias ecoavam em jornais, nas universidades e materializavam-se em protestos no Parlamento e nas ruas, com apoio de sindicatos e da esquerda francesa. Só dom Helder Câmara (1909-1999), arcebispo do Recife, numa passagem por Paris, reuniu no Palácio dos Esportes 10 ml pessoas para ouvi-lo pedir que denunciassem ao mundo que no Brasil se torturava.

O governo brasileiro rotulava esse movimento de “campanha de difamação do Brasil no exterior” e chegou a contratar um escritório para publicar textos elogiosos ao país num obscuro jornal, “East Ouest”. O historiador Paulo César Gomes encontrou documentos da embaixada brasileira relatando artifícios arquitetados para fazer o arcebispo perder o passaporte e, no Ministére des Affaires Étrangeres, teve acesso a dossiês completos sobre a vida em Paris do crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981), do escritor Josué de Castro (1908-1973) e do jornalista Samuel Wainer (1910-1980).

“O governador Miguel Arraes [1916-2005], na época morando na Argélia, só recebia visto de entrada na França se o cunhado francês, Pierre Gervaiseau, assinasse termo de responsabilidade por ele”, diz o pesquisador, autor de livro sobre o tema que será lançado em 2019.

Quase oficial foi a exportação para a América Latina da doutrina militar francesa, batizada de guerra antissubversiva. O método, cuja arma principal era a tortura, foi sistematizado após a derrota do Exército francês contra a Frente de Libertação Nacional da Argélia e, nos anos 60, foi ensinado a brasileiros, argentinos, chilenos e uruguaios. Em 1972, quando o Brasil enfrentou a guerrilha do Araguaia, um ex-general da batalha de Argel, Paul Aussaresses (1918-2013), veio servir como adido militar em Brasília e deu aulas no Centro de Instrução de Guerra na Selva, com sede em Manaus.

“Antes de morrer, ele me contou que ensinou tortura aos militares brasileiros”, diz Marie-Monique Robin, autora de “Escadrons de la Mort: L’École Française” [Esquadrões da Morte: A Escola Francesa], livro e filme sobre o tema.

 

 

“Essa estrutura de repressão política trouxe um prejuízo generalizado à sociedade brasileira”, diz Fico. Ele dá o exemplo da rede de espionagem criada para monitorar autarquias, estatais e universidades, fazendo com que todas as ações da esfera pública passassem a ser pautadas pela comunidade de informações, a essa altura o grupo mais poderoso do aparelho de Estado. “Muita gente foi vítima dessa comunidade de informação”, afirma o historiador.

O general Heleno rechaça as críticas. “A história do Brasil, durante o que chamam de regime militar, jamais foi contada com imparcialidade, a começar pela falsa afirmativa de que a tortura, os sequestros e os assassinatos foram institucionalizados”, diz.

Essa tragédia política brasileira, desenrolada com mais intensidade durante os dez anos de AI-5, poderia ter sido abreviada se não fosse mais um desses acidentes que pontuam a história do país. Arquivos revelam a intenção de Costa e Silva de outorgar uma nova Constituição, em que o presidente teria poder de revogar “qualquer ou todos os artigos do AI-5”. O vice, Pedro Aleixo (1901-1975), e juristas trabalharam no projeto. O marechal participou de reuniões e fez anotações. Marcou para 1º de setembro a reabertura do Congresso (fechado desde o AI-5), ocasião em que promulgaria a emenda constitucional para revogar o AI-5.

Mas Costa e Silva teve uma trombose em agosto de 1969. Fico relata seus últimos movimentos no poder: “Estava muito pressionado pela linha-dura, aconselhavam-no a não abrir mão de parte dos poderes do AI-5. Na última reunião, o homem autoritário e tido como burro, faz um desabafo dizendo que nunca quis impor a tirania ao Brasil. Já era doente, mas provavelmente o estado dele se agravou pela pressão política”.

A sequência dessa história é arquiconhecida: na sequência, os três ministros militares dão um golpe e impedem Pedro Aleixo de assumir a Presidência. “Aí, sim, acontece o golpe dentro do golpe. A junta promulga a Constituição sem o artigo 182”, diz Fico.

O general Heleno vê o periodo como a consolidação da vitória do Brasil contra o comunismo: “Concordo com o general Leônidas [Pires Gonçalves], quando afirma que o Brasil se transformaria em um verdadeiro continente sócio-marxista, se não fosse o regime militar. O AI-5 aconteceu dentro desse contexto”. Tudo indica que as profundas cicatrizes e divisões da sociedade deixadas por esses anos ainda atravessarão novas gerações. (Colaborou Monica Gugliano)

Nota da Redação: Esta reportagem foi publicada na edição impressa com o título Uma utopia autoritária.

A relação entre arte, democracia e utopia

Todos estão em torno dos 70 anos, os cabelos são grisalhos, os corpos têm as marcas do tempo. São 12 ao redor de uma mesa, as vozes às vezes se quebram num choro contido. A plateia, uma maioria de companheiros de geração salpicada por muitos jovens, enxuga as lágrimas, em meio a sorrisos ternos provocados pelas lembranças. É uma leitura dramática, mas não como as outras que marcam o início de ensaios. “O Mutirão”, nome provisório desse espetáculo, está sendo construído há dois anos em um trabalho de criação coletiva. É uma arqueologia sentimental do Tuca, grupo de teatro universitário da década de 60, entremeada com a memória dos 50 anos de vida dos então jovens atores amadores, trazendo junto meio século da história do Brasil.

As apresentações aos sábados de manhã, na UFRJ, e as sessões especiais para estudantes universitários comovem. Remexem num passado doloroso, revisitado também em documentários como “Torre das Donzelas”, em que Susanna Lira retrata as presas políticas durante a ditadura militar no presídio Tiradentes, ou na transposição para o cinema de “Rasga Coração”, peça-símbolo da luta contra a censura escrita por Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) e filmada agora por Jorge Furtado. O Teatro Oficina de José Celso Martinez Correa estreou nesta semana a remontagem de “Roda Viva” e mostras no Instituto Tomie Ohtake de São Paulo (encerrada no mês passado) ou no Museu de Arte do Rio (MAR) discutem, respectivamente, os custos da retirada dos direitos no imaginário cultural do país e a relação entre arte, democracia e utopia.

Lembrar para não repetir está no espírito de todas essas manifestações culturais. Talvez a mais despretenciosa, mas não menos poderosa, seja a memória do engajamento cultural contra a ditadura e a reflexão sobre o tempo político vivido, encenada pelos agora envelhecidos atores amadores, para comemorar os 50 anos do Tuca. “Ficamos atrevidos, achamos que nossa geração tem algo a dizer”, reforça um deles para o público. “Estamos criando algo novo, tudo tem uma ressignificação”, diz Amir Haddad, o diretor do passado e do presente, em mais um ensaio na semana passada.

Esse tempo revivido começa com a formação do grupo em 1966, tem o momento de glória com a montagem de “Coronel de Macambira” em 67 e a fase feliz acaba em dezembro de 68 com o AI-5. Foram dois anos que deixaram marcas na trajetória de cada um e na história do teatro. “Pouco mais do que um adolescente, fiquei encantado com a encenação. Ali, em plena ditadura, o Brasil era o boi, que afinal ressuscitava, e dele se ouvia o rumor dos passos”, disse o deputado Chico Alencar (PSol), num depoimento ao “Globo” em 2016.

A vida brasileira desfilava na grande praça montada no palco, nesta adaptação de “Bumba Meu Boi”, criada pelo poeta Joaquim Cardozo (1897-1978), o também famoso engenheiro dos projetos de Oscar Niemeyer (1907-2012). As músicas, compostas por Sérgio Ricardo, eram todas originais e jamais foram gravadas. Haddad, um homem de teatro já confirmado, largou tudo para, encantado, trabalhar com aquele bando de jovens: eles eram 36 no palco, revezando-se em 45 papéis, mas eram muito mais atrás das cortinas, ajudando, aplaudindo e discutindo, registrou Arthur Poerner, no “Correio da Manhã”, em 1966: “O Tuca é fundamentalmente o movimento estudantil”.

O trabalho teatral era parte da luta pela democracia. O projeto do grupo era levar o teatro à periferia, aos sindicatos, às cidades pequenas. Eram apenas estudantes contra a ditadura, mas, após o AI-5, muitos deles foram presos, torturados, exilados e demitidos dos empregos.

E se a gente lesse de novo o “Macambira”? A ideia foi lançada no primeiro reencontro do grupo há três anos e resultou no espetáculo de agora. Nesse “Mutirão”, trechos do texto e das músicas originais são intercalados com o relato do processo de criação e depoimentos dos atores sobre como eram no passado, por onde andaram e como são agora. “Tudo que é dito aqui foi intensamente vivido ou testemunhado por nós. Nada é ficção”, diz Amir Haddad, narrador do espetáculo.

Ninguém conta para o público a sua história, mas todos reconhecem como seus os sentimentos vividos por cada um dos outros. Por exemplo, a dor e o medo na cadeia. “Não dá para esquecer. O barulho das chaves na Ilha das Flores, cada vez que o guarda ia buscar alguém para o interrogatório. Esse barulho a gente carrega pela vida toda”, diz uma delas.

Ou a solidão do exílio para os que foram e o clima opressivo criado pela desconfiança e a repressão para os que ficaram. “Essa atmosfera que asfixia a liberdade dificulta a respiração”, diz um deles.

O humor e a ironia permeiam os relatos. “Chegamos [as três exiladas] a Santiago do Chile, e, talvez por ver uma de nós carregando um violão, um jornalista perguntou: ‘Ustedes no son el trio Bangu?’.” Na volta ao Brasil, com a Anistia, a alegria se mistura ao estranhamento. “Reencontrar os amigos traz um sentimento ambíguo. Eles estão diferentes, mudaram. Descubro que eu também”, reconhece.

Com o fim da ditadura, a vida retomou uma certa normalidade, e a maioria seguiu as profissões para as quais se preparavam. Haddad criou o Tá na Rua e continua dando aulas. Três deles se tornaram atores profissionais: Márcia Fiani, Renata Sorrah e Roberto Bonfim, outros são economistas, químicos, engenheiros, professores. Para todos, é importante contar os sonhos, as derrotas e as vitórias. A emoção do público parece demonstrar que é importante ouvir. No ano que vem o espetáculo volta ao mesmo lugar, no mesmo horário.

Produção artística era vista como uma grande ameaça

“Fecha esta exposição.” Era 1969, a Petite Galerie expunha as obras de Carlos Vergara, já naquela época um nome importante nas artes visuais brasileiras. Em exibição estava “Berço Esplêndido”, instalação de caixotes com um manequim como um corpo morto enrolado na bandeira dos Estados Unidos e do Brasil. Pelo chão da sala, uma palavra repetida muitas vezes: penso, penso, penso.

Um general morava perto da galeria, em Ipanema. Passou por ali, ficou irritado com o que viu e deu a ordem. “O general não disse nem o nome. Mandou fechar, simples assim, simples como um bom-dia”, afirma Vergara, 50 anos depois. Franco Terranova (1923-2013), dono da Petite Galerie, ligou para o artista, contou a história, e os dois desmontaram a exposição.

“Nasci em 1941, vivi toda a época libertária juscelinista. Para quem teve um início assim, foi muito violento. Pensei em ir para a clandestinidade, mas achei que minha arte poderia ser mais útil. Com trabalhos que não fossem das musas, fossem mais perigosos, que contivessem dados do real, como os músicos faziam, o teatro fazia, todos tentando manifestar uma visão libertária do mundo”, diz o artista.

Com um público mais reservado, as artes plásticas foram menos afetadas pelo Ato Institucional nº 5, o AI-5, do que a música, o cinema e o teatro, mas algumas manifestações criaram enormes polêmicas no país, como as trouxas ensanguentadas espalhadas pela cidade por Arthur Barrio, numa referência à violência da repressão. Ou a performance de Antonio Manuel nu, apresentando-se como obra de arte no Salão Nacional de Artes Plásticas, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio. Estava conectado com a “body art”, um dos caminhos da arte no mundo. Mas aqui foi proibido, estávamos em 1970.

“Depois ele construiu um belo trabalho com a foto dele nu numa caixa”, diz Paulo Sérgio Duarte, crítico de arte, curador e professor. Duarte mostra como o desdobramento da política na produção artística nessa época se dá por uma obra mais reflexiva, uma tendência internacional que faz uma crítica forte da arte como mercadoria. “São trabalhos muito importantes, mas que não se entregam sem o pensamento, você é obrigado a pensar”, diz.

No Brasil ocorre com Waltercio Caldas, Antonio Dias (1944-2018) e, um pouco mais tarde, Tunga (1952-2016), um grupo de artistas com trabalhos de muita potência que repercutem hoje em todo o mundo. “O interesse em não produzir uma obra comercial é político”, afirma.

Fazer pensar ficou perigoso nos anos de chumbo. O poder público foi usado como polícia pedagógica, destinada a perseguir desviantes, rotulados de comunistas e acusados de pregarem ideias para destruir os pilares da civilização ocidental: a família, a moral sexual e as bases do direito penal e civil. Só depois da Lei da Anistia (1979), foram reintegrados à universidade os 66 professores expulsos com o AI-5, entre eles Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), a historiadora Maria Yeda Linhares (1921-2011). Para combater o pensamento marxista que teria se infiltrado nas instituições culturais, o Estado abriu inquéritos policiais e militares contra “think tanks” (Iseb, por exemplo) e centros de cultura, como o CPC da UNE. Interveio nas escolas e universidades, com uma legislação repressiva forte, aulas de moral e cívica do ensino fundamental às faculdades e incentivos à espionagem. E usou a censura sem moderação.

“Criou-se um clima de medo e revolta. Uma situação muito violenta contra as atividades intelectuais e culturais. A censura, instituída por lei em 1970, vai ser muito pesada contra artes e espetáculos regidos por essa lei”, diz Marcelo Ridenti, professor do Instituto de Filosofia da Unicamp e autor de livros sobre cultura e ditadura.

As histórias são conhecidas, mas os números impressionam. Em dez anos, os censores examinaram em torno de 22 mil peças de teatro, das quais 700 foram proibidas na íntegra e outras centenas tiveram trechos cortados, contabiliza a pesquisadora Miliandre Garcia.

Cerca de 500 filmes (muitos estrangeiros) foram banidos das telas brasileiras, a maioria por questões morais ou religiosas – um exemplo foi “Último Tango em Paris” (1972), clássico do cinema de Bernardo Bertolucci (1941-2018). A literatura foi um pouco menos afetada, mas 430 livros não puderam chegar às livrarias, dos quais 92 escritos por brasileiros. Centenas de letras de canções foram vetadas pela censura, levando Chico Buarque a recorrer a pseudônimos e sair do país, mesmo caminho seguido por Caetano Veloso e Gilberto Gil. A imprensa foi controlada de modo severo entre 1969 e 78, sujeita a arbitrariedades de censores, já que não havia regulamentação específica para jornais e noticiários em televisões e rádios.

Em muitos jornais, sob mordaça, estampava-se o ufanismo do Brasil Grande e a família tradicional, imagens só contestadas mais tarde com a criação da imprensa alternativa iniciada com “O Pasquim” e depois o “Opinião” – este teve 5 mil páginas publicadas e 5 mil vetadas.

“A cultura é muito flexível e sobrevive. Quem falou muito depois do AI-5 foi a poesia marginal”, diz Heloisa Buarque de Hollanda, a primeira a chamar atenção para os poetas do mimeógrafo.

Lentamente um reflorescimento cultural se inicia, com o surgimento da contracultura, não diretamente política, mas muito crítica à situação do país. Os movimentos de vanguarda reaparecem, os exilados culturais começam a voltar. “É uma reação ainda à meia voz, foi se criando uma cultura alternativa muito viva que só fez crescer”, diz Ridenti. Era o início da distensão, lenta e gradual.

Privacy Preference Center