Aeroporto de Cabul é espelho da hipocrisia das grandes potências

Foto: Reprodução/Reuters
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Ao ver as imagens de desespero em Cabul, não há como não pensar em refugiados que compartilham sentimentos muito parecidos, independente de qual seja sua origem ou destino

Jamil Chade / El País

Quando alguém se agarra num trem de pouso de um avião, tentando voar, ou quando entra em um barco furado para cruzar o Mediterrâneo, mesmo sem saber nadar, há apenas uma constatação que pode ser feita: para aquelas pessoas, ficar em terra firme é sinônimo de morte.

Em quase duas décadas cobrindo fluxos de refugiados, êxodos e crises humanitárias, uma pergunta me atormentou: existe alguma fronteira para o desespero? Haverá algum muro que irá frear alguém fugindo da fome, miséria e violência?

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Um refugiado sírio, certa vez numa ilha grega, me resumiu esse sentimento quando eu perguntei se ele não tinha medo. “Qual o tamanho do pesadelo que você acha que existia na minha vida para eu decidir colocar meus filhos num barco, atravessar o mar sem saber nadar, gastar todo meu dinheiro naquela viagem e ainda não saber se alguém sobreviveria?”

Ao ver as imagens de desespero do aeroporto de Cabul, não havia como não pensar nesses refugiados que compartilham sentimentos muito parecidos, independente de qual seja sua origem ou destino.

As cenas de corpos que despencam do céu marcarão o ano de 2021 e certamente entrarão para os livros de história. Talvez num capítulo anterior, a foto da retirada dos americanos de Saigon em 1975 garantirá uma coerência interessante para o eventual manual sobre a realidade do mundo sem filtros.

Mas se essas fotos entram nos programas escolares como o símbolo da derrota de uma superpotência, elas precisam passar a ser reflexos de uma outra história: a da traição e hipocrisia dos grandes centros de poder no mundo.

No atual debate sobre o destino do Afeganistão, soldados britânicos se queixam que arriscaram suas vidas em vão por anos e, agora, o Talibã voltou ao poder. Contribuintes americanos se questionam por qual motivo mais de 2 trilhões de dólares foram destinados para a reconstrução do país cujo final foi melancólico. Debates similares ocorrem na Alemanha França.

Mas a verdadeira história de indignação é de quem fica. Não por opção. Mas por traição.

Ao longo dos últimos 20 anos, liderado por um ousado programa da ONU, milhões de refugiados afegãos que viviam de forma precária no Irã e no Paquistão retornaram para suas cidades. A promessa era de que a história não seria desleal com eles, e muito menos as potências ali presentes.

Alguns avanços ocorreram. Não há como negar. Mas o projeto de “reconstrução” do Afeganistão provou ser uma ficção. Mais de 40% da população continua a viver abaixo da linha da pobreza, o analfabetismo é um dos maiores do mundo, doenças que atingiram a Europa há séculos continuam a fazer vítimas e a corrupção era, segundo a ONU, “endêmica”.

Nesta terça-feira, o aeroporto da capital afegã anunciou que voltará a funcionar. Mas apenas para estrangeiros. A população local, pelo menos por enquanto, será proibida de embarcar.

De forma inesperada, a pista de decolagem de Cabul se transformou na metáfora empoeirada e ensanguentada do caos de uma ocupação que jamais traduziu em realidade suas promessas.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/internacional/2021-08-17/traidos-afegaos-transformam-aeroporto-em-espelho-da-hipocrisia-das-grandes-potencias.html

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