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Paulo Fábio Dantas Neto: Ciência e política, amantes do possível

O possível não é um dado. É um tesouro a ser encontrado. Quem acusa de inação os buscadores do possível engana-se, ou tenta despistar. O possível está num futuro que depende das circunstâncias do presente. Ele não tem compromisso prévio com a correção de erros do passado nem com a realização de intenções das mentes dos atores sociais. O possível não é conservador nem progressista, ele apenas será o resultado, sempre incerto, de um encontro, ou desencontro, entre a razão e a experiência. Dessa alternativa depende boa parte do que será felicidade ou tragédia, nesse futuro possível. 

A busca do possível requer um passo prévio: reconhecer o impossível para fazer dele uma baliza, em vez de objetivo da busca. Substituir um prévio intento pela aposta em nova possibilidade que reanima e contenta é dar um passo além, não só da impotência que nos incute culpa, como da resignação, que frustra e deprime. Falando assim pode parecer um convite a um passeio, mas a decisão por essa busca é processo dilacerante quando se dá em meio a uma situação crítica, que pode se tornar agonística.

O Brasil vive intensamente nada menos que duas dessas situações críticas. Parafraseando Jobim, não é para amadores lidar com Bolsonaro e Covid ao mesmo tempo. Os dois infortúnios se retroalimentam e isso pode nos fazer crer que um é causa do outro. Mas não é assim. Com ou sem Bolsonaro teríamos que recorrer à ciência para lidar com a pandemia. Com ou sem ela, teríamos que recorrer à política para lidar com Bolsonaro. Política não é vacina contra o vírus. E a ciência não derrotará Bolsonaro. A saída de cena de um não nos livra, necessariamente, do outro. Ciência e política, cada qual deve fazer sua parte. Para isso não precisam, nem devem brigar. E podem atuar de modo complementar.

A ciência, nesse caso, obteve um assombroso sucesso quando ofereceu ao mundo vacinas seguras em tempo recorde contra um vírus desconhecido. A humanidade vê aumentar sua dívida para com ela. O sentido de urgência da ação mais complexa foi atendido porque, desde logo, a comunidade da ciência compreendeu que não havia a solução simples de medicamentos que atalhassem o tratamento. A busca do possível não foi adiada porque se detectou e afastou o impossível do horizonte. A má notícia, acolhida com realismo, em vez de desespero ou depressão, produziu ação. No mundo todo, incluído o Brasil, que, graças à ciência que aqui também habita, está, sob forte tempestade, produzindo vacina.

Os resultados da ação política no mundo são mais controversos (se não o fossem estaríamos falando de outra coisa, não de política) e seus êxitos, menos universais. Para serem avaliados exigem lupas sobre múltiplas realidades nacionais, para o que não há espaço na coluna nem informação em meu poder. É visível, no entanto, a atitude da grande maioria dos dirigentes dos países de alta e média relevância (deixo de me referir aos de baixa relevância não por desprezo, mas por desinformação) de não querer matar a mensageira da má noticia, no caso, a ciência. Aqui é redundante, até enfadonho, assinalar o governo federal brasileiro como uma desonrosa exceção. Sem malhar em ferro já quente, pode-se dizer que, através de suas ações e inações, matou-se e ainda se mata muito mais que apenas a mensageira. 

Mas um inventário da ação da política brasileira em relação à pandemia não pode se resumir aos desmandos e crimes do Executivo Federal e muito particularmente daquele que é seu chefe nominal. Além de equívoco, seria injustiça ocultar serviços prestados pela política nessa quadra difícil. Governadores e prefeitos têm agido, com forte apoio do Judiciário, dando respostas, de um modo geral (quem quiser encontrar flagrantes do oposto, claro que achará), em patamar acima do potencial que a elite política subnacional parecia deter. Expertise em atuar na adversidade é um capital institucional inesperado que ela está a acumular, efeito colateral do treinamento político e social a que esse desafio a está submetendo. Do Congresso Nacional não se pode falar diferente, sendo digno de nota que os conflitos políticos recentes, especialmente na Câmara, não fizeram as duas casas se afastarem do centro da cena do combate à pandemia. Seguem construindo consensos amplos para votarem medidas cruciais de apoio a estados e municípios e de combate a efeitos sociais da pandemia e da crise econômica.

Esse o papel positivo que a política vem podendo exercer, no combate à pandemia, em condições extremamente adversas, maximizadas pela conduta do presidente e pela influência que ele exerce sobre agências do governo e sobre parcelas da população. Papel reforçado depois da detecção do impossível e do seu devido afastamento do horizonte de objetivos da ação. Assim como a consciência de que não havia remédio pronto para tratar a covid incitou a ciência a descobrir vacinas, a consciência de que é impossível, neste momento, afastar Bolsonaro, incitou o sistema político e judiciário a protegerem a democracia dos seus ataques frontais e a fornecer um mínimo de governabilidade ao País. Penso que os moderados resultados alcançados com essa atitude prudente resultam da ambiguidade própria da situação e não podem ser confundidos com intenções de conivência. Essa a imputação feita, a granel, a partidos e a dirigentes de instituições, cavalgando, por ingenuidade ou demagogia, na baixa simpatia popular de que gozam. Não houve até aqui sinais de ambivalência desses dois poderes da República nem quanto à crise sanitária, nem quanto à defesa das instituições democráticas.

Quanto ao enfrentamento político de Bolsonaro, é obvio que a ambivalência predomina. Mas quem quer acabar com ela, cobrando que o sistema político se oponha ao presidente, está em busca do possível? Ou ainda não afastou o impossível do rol de seus objetivos? Percebo que cobram da política que ela não apenas aja, como tem agido, em acordo com a ciência, mas que adote, em sua conduta prática, a ética da ciência e aí não só das ciências médicas e biológicas, mas a das ciências humanas e sociais, quando elas, por algumas de suas vertentes teóricas, se impõem a missão de compreender e também transformar o mundo. Para quem assim se posta palavras políticas chave são movimento e vanguarda. É complicado querer que sejam palavras-chave da ação de quem atua institucionalmente como elite especializada, em arenas racionalizadas de competição política ou de estabilidade judiciária. Num momento crítico de alta tensão e angústia sociais, em que pretensões de protagonismo de movimentos estão limitadas por inclinações conservadoras do eleitorado e atrofiadas pelo rigor da pandemia, esses apelos e cobranças de que instituições funcionem como movimentos chega aos limites da exasperação. Peço licença para fazer uma digressão um pouco longa, em torno da própria ciência social, no intuito de argumentar pela insensatez dessa pretensão. Quem estiver convencido nem precisa se deter nesse ponto da leitura.

“A ciência como vocação” e “A política como vocação” são dois dos mais contundentes textos de Max Weber sobre os paradoxos da modernidade. Em ambos, ele trata de vocação como dedicação a uma profissão. E da tensão entre a aceitação realista de um condicionamento social e a aposta na possibilidade de ação para o sujeito individual. A condição social inescapável é o desencantado mundo moderno, onde impera a racionalização de meios e fins; a possibilidade do sujeito é a escolha de um agir que conecte meio e fim a determinada “causa”. 

Como Raymond Aron chama a atenção, aqui temos, também, um problema existencial: delimitar em que espaços da sociedade a racionalização para objetivos ainda permite algum lugar a outros tipos de ação. A ciência e a política, mobilizáveis, também, por valores, são (ainda podem ser) espaços desse tipo. Desde que o exercício dessas vocações não se insurja contra o que há de inexorável na racionalização que, afinal, também alcança as duas áreas, como todas as demais.

O fato social e o ato individual são - para usar um lugar comum - facas de dois gumes. A racionalização (uma esquina onde se encontram a vontade de emancipação e práticas de instrumentalização) exacerba-se a ponto de reduzir e amesquinhar a razão. A decisão do ator (esquina da aspiração de autonomia com tentações de despotismo) devolve à razão sua amplitude e grandeza, mas ao risco de transpor as fronteiras do irracional. Diante do imprevisível, na ciência e na política persiste, ao menos, o dilema valorativo entre conservar uma estabilidade medíocre, depressiva, ou promover mudança, ao custo de uma insegurança ansiosa. Em outras áreas esse dilema sequer aparece. Foi resolvido em favor da razão instrumental. Ciência e política sobrevivem como domínios onde é possível o agir criativo.

Eis o relevante ponto weberiano que ambos os textos exprimem: o sujeito que adota a política ou a ciência como vocação é, em certo sentido, um sobrevivente no exercício de uma autonomia, mas por ter escolhido uma das duas, nem por isso escapa da condição de mover-se num fio de navalha. 

Mas quanto às distinções entre ciência e política? Elas cabem na distinção, feita pelo próprio Weber, entre a “ética da convicção” e a “ética da responsabilidade”? Quem pensa nessa dicotomia – apresentada na parte final de “A política como vocação” - como uma chave para compreender as distintas vocações da ciência e da política, surpreende-se ao não encontrar em “A ciência como vocação” um contraponto à ética da responsabilidade. Esta orienta, claramente, o político por vocação, mas não se constata clareza equivalente na correspondência entre o profissional da ciência e a ética da convicção. A ambiguidade ética da vida política infiltra-se no agir científico, impondo também ao cientista uma negociação com demônios. Sua ética vai além das convicções. Sem isso não nasce a pesquisa científica. Assim como faz a ética da política – e de modo diferente dela – a ética da ciência também contrasta a fé religiosa, certamente valiosa, para outros fins humanos e conforme outros valores. Mas nos dois textos de Weber lemos que ambas (ciência e política) estão expostas a visitas do irracional. São visitas insólitas, que trazem ideais de perfeição. A ideologia, quando fé, faz ciência e política perderem suas razões de ser. Entre as respectivas razões há convergências que balizam a exploração de diferenças e até contrastes entre as vocações da ciência e da política, sem criar um abismo ético entre elas.  Numa palavra, compreender as razões e a experiência da política institucional como distintas das razões e da experiência do movimento social e ver essa distinção com simpatia não coloca ninguém na contramão da ciência. Apenas arma a consciência para não ver a “classe política”, nem mesmo o que se apelidou de centrão, como inapelável aliada de Bolsonaro e do que ele representa. É interlocutora, não adversária.  

A política tem sua ética, ainda que no mundo real predominem simulacros, no centrão e nas “melhores” famílias ideológicas.  Weber fala em política como causa que sustenta uma vocação (profissão) e avisa sobre a impossibilidade de estender à política uma ética única, de fora dela. Essa pretensão é tão irrealista quanto afirmar que a ética da politica não possui nexos com qualquer outra ética (supor políticos santos é tão irrealista quanto supor que todo político é aético). Sim, a ética da responsabilidade (o norte da política) põe em risco a salvação da alma e a ética dos últimos fins põe em risco as metas, por ausência de responsabilidade pelas consequências. As duas éticas orientam diferentes condutas diante de noções de bem e de mal e da irracionalidade do mundo: “O mundo é estúpido e mesquinho, eu não” (ética dos últimos fins); “Eis-me aqui. Não posso fazer de outro modo” (ética da responsabilidade). E arremata: “A política é como a perfuração lenta de tábuas duras (...) somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido e mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “apesar de tudo!” tem a vocação para a política”.  A reflexão vale como metáfora institucional, por mais que no caso do político beltrano seja descrição veraz e no de sicrano, doce ilusão.

A que serve tanta digressão? Para dizer que, sim, a situação extremamente crítica que vivemos no Brasil com a associação entre Bolsonaro e Covid pode ser enfrentada pelas gramáticas da ciência e da política. Culpa, vergonha, covardia são repertório léxico funcional ao universo bolsonarista, incapaz de explicar o buraco, menos capaz ainda de nos tirar dele, embora essas palavras brotem do desespero de pessoas de várias condições sociais. São autoexplicáveis cobranças de ação contundente e resultados imediatos por parte de quem se vê direta ou potencialmente implicado nas ameaças e delitos diários.  A parte da sociedade que tem consciência das dimensões da tragédia desconfia da fina camada de proteção que as instituições construíram contra as investidas autocráticas, ainda mais se a compara com a jaula em que está trancada, por medo da doença e falta de horizonte. Mas será mesmo uma jaboticaba brasileira?

Essa interpretação sempre se apresenta quando se alega os quatro séculos de escravidão. A lembrança atiça o açoite masoquista. Ajoelharemos no milho por outros quatro séculos e ainda não será bastante para apagar a vergonha que somos como país. Temos tão cronicamente vergonhosas elites civis que cumpre duvidar de tentativas não governamentais concretas de fazer, em hora critica, algo socialmente justo, apesar do governo. São inconfiáveis como parte desse legado espúrio, tanto quanto as iniciativas políticas que tentam levar o governo a assumir seus deveres por caminhos diversos ao da contestação. Quanto ao povo, coitado, se foi capaz de votar em Bolsonaro e de continuar em boa parte crendo nele a caminho do extermínio, dele não se pode esperar nada a não ser que se arrependa da condição de bicho solto e passe a ser guiado por uma vanguarda onisciente que o redimirá para a civilização do dever.

Pois bem, como se sentia e movia metade dos norte-americanos durante os quatro anos de Trump, o ultimo deles passado em interação com a pandemia? E a outra quase metade que seguiu fiel ao mito até as urnas desse ano? Até a invasão do Capitólio não se viu, da parte das instituições da ciência e da política daquele país outras atitudes que não a marcação cotidiana para conter a fera, a esgrima de bastidores e escaramuças públicas pontuais, enquanto movimentos de cidadãos preparavam o acerto de contas eleitoral do qual ascendeu um político convencional e moderado. A opção por pacificação revelou-se rota não só virtuosa, como eficaz. Se devemos fazer de outro modo é preciso dizer o porquê.

Penso que a política brasileira precisa saltar sobre a tardança, não a carregar, como fardo expiatório. Sem sentar sobre ela, nem a ruminar, seguir buscando as vacinas que a ciência produziu, tentando encurtar o tempo, protegendo como possível as pessoas mais vulneráveis durante a inevitável espera e marcando em cima, fungando no cangote do governo, para que não ceda a novas sabotagens do presidente e do seu grupo palaciano, militares incluídos. Se algum plano cabe além desse é o de chegarmos de pé a 2022 para o acerto de contas entre Bolsonaro e a democracia.

A sociedade, partidos de oposição, movimentos políticos e sociais podem buscar formas de expressão contundentes de indignação e contestação. Ao mesmo tempo é importante que cúpulas das instituições continuem a jogar o xadrez político discreto de cada dia, para que a corda não se parta e, com ela, liames que, ainda em pé, ligam o estado e a sociedade emersa ao mundo bruto em que vive o cidadão comum.

Para isso precisaremos vencer a tentação da ética da não aceitação do impossível como tal. Evitar chamar de impotência (uma disfunção) a busca de soluções possíveis, que é o sentido mais próprio da política. Antes que alguém se engane: o que estou dizendo nada tem a ver com resignação, aceitação meramente racional do impossível como tal. Falo é da consciência do impossível ser chave de buscas individuais e coletiva pelo possível. Porque ele, o possível, é o único terreno em que se pode VIVER.

* Cientista político e professor da UFBA