violência

Luiz Carlos Azedo: A greve geral

“Não houve greve geral, houve paralisações de servidores e nos transportes, muita agitação e vandalismo”, disparou o Sueco

“No meu tempo, Saldanha, essa greve seria considerada um fracasso; cadê a classe operária? Greve foi a de 1953, em São Paulo. O que você acha, Chamorro?”, indagou o Sueco, como era conhecido Geraldo Rodrigues dos Santos, o Geraldão, um negro alto, de fala mansa e sorriso fácil. Santista, Geraldão era portuário e participou intensamente da greve que parou São Paulo e o Porto de Santos na década de 1950. Durante o regime militar, dirigiu o PCB na antiga Guanabara, na mais rigorosa clandestinidade, onde reencontrou os dois camaradas.

Seu amigo João Saldanha, o Souza, ficou famoso como comentarista esportivo e técnico da seleção brasileira de futebol, mas, na década de 1950, era dirigente do PCB no bairro paulista da Moóca, onde a greve começou. Fazia a ligação entre o líder comunista Carlos Marighella e o comando de greve. Durante a ditadura, deu cobertura para o velho amigo Geraldo, que andava com uma cápsula de cianureto no bolso para ingerir caso fosse preso. O Sueco havia jurado não delatar nenhum companheiro na tortura; preferiria morrer se fosse preso.

Geraldão vivia num “aparelho” na Favela da Maré, que somente alguns familiares e o motorista Dedé, que tinha um táxi, conheciam. O terceiro camarada na conversa vivia clandestino em Niterói, com o nome de Paulinho, onde organizava os trabalhadores têxteis e operários navais. Era ninguém menos do que Antônio Chamorro, um dos líderes da greve geral, ao lado da também tecelã Maria Sallas e do metalúrgico Eugênio Chemp.

“O Marighella chegou na redação do Notícias de Hoje, reuniu todo mundo e apresentou o plano de parar a capital, a ferrovia e o porto de Santos. Depois, pretendia abrir as sedes do partido na marra”, relata Saldanha, que já era jornalista. O PCB vinha de uma derrota eleitoral fragorosa para Jânio Quadros, que obtivera 285 mil votos na disputa pela Prefeitura da capital, na capital paulista, enquanto André Nunes Júnior, apoiado pelos comunistas, não chegara a 17 mil votos. A eleição havia acontecido três dias antes, em 22 de março. A tese parecia uma loucura do líder comunista, que, na década de 1970, viria a aderir à luta armada e acabou morto pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, durante a Operação Bandeirantes.

Naquele 25 de março, o PCB completava 31 anos. Chamorro e Maria Sallas lideravam uma assembleia de trabalhadores da indústria têxtil no Salão Piratininga, na rua da Moóca, na qual reivindicavam 60% de aumento salarial. Por causa da inflação, o apoio à greve foi quase unânime. No dia seguinte, encabeçados por Eugênio Chemp, os metalúrgicos aderiram à greve, lutavam por 800 cruzeiros a mais nos salários. No terceiro dia de greve, eram 70 mil operários concentrados no antigo hipódromo da Moóca. Piquetes de mil trabalhadores saíram em direção às demais fábricas de São Paulo, parando 70 empresas no dia seguinte. Houve repressão, mais de duas mil pessoas foram presas, Chemp quase levou um tiro. Uma tecelã e um metalúrgico foram feridos à bala. Mesmo assim, marceneiros, carpinteiros, padeiros, sapateiros, vidreiros, gráficos e até os trabalhadores da cervejaria Brahma pararam. Eram 300 mil operários de braços cruzados.

Chemp encerrava ali sua carreira paralela de craque do São Paulo Futebol Clube, onde até hoje figura na lista dos estrangeiros que mais brilharam no clube: 14 gols em 19 jogos, em oito vitórias, seis empates e cinco derrotas. Nasceu em Kiev, na Ucrânia, mas tinha nacionalidade uruguaia. Chamorro era brasileiro, descendente de espanhóis. O Brasil transitava do rural para o urbano com a industrialização de São Paulo, cuja capital passara a ser a maior cidade do país. No começo da década de 1950, mais de 1 milhão de trabalhadores fizeram greves, que traziam a novidade de lutar contra a carestia, ou seja, contra a inflação, e não apenas por aumentos salariais.

Paraquedas
O Pacto de Unidade Intersindical (PUI), que resultou dessas greves, foi uma reação à CLT de Vargas e ao atrelamento dos sindicatos ao Ministério do Trabalho, que hoje as centrais sindicais estão defendendo, num período de expansão da indústria e do trabalho assalariado no campo; em contrapartida, havia inflação alta e superexploração do trabalho. Com o fortalecimento dos sindicatos, o movimento desaguou na greve geral de julho de 1962, quase dez anos depois, que resultou na conquista da lei do 13º salário, sancionada pelo presidente João Goulart. Mas voltemos à conversa entre os três amigos, sentados na beira de uma nuvem bem alta, lá no céu.

“O que você achou da greve, Geraldo?”, perguntou Saldanha. “Não houve greve geral, houve paralisações de servidores e nos transportes, muita agitação e vandalismo”, disparou o Sueco. “Só espero que ninguém morra”, completou Chamorro. Foi uma alusão ao Primeiro de Maio de 1953, comemorado no antigo hipódromo da Moóca, após a conquista de 32% de aumento salarial para praticamente todas as categorias grevistas.

A história é a seguinte: Um anarquista italiano, para abrilhantar a festa, resolveu saltar de paraquedas. Acontece que o equipamento não abriu e a festa virou tragédia. Revoltada, a família não queria um enterro de herói da classe operária. Os grevistas, porém, insistiram e fizeram, na marra, um funeral de gala. Bradavam: “O cadáver é nosso!”

Luiz Carlos Azedo é jornalista

 


Luiz Carlos Azedo: A vez dos garantistas

A decisão de Celso de Mello tranquiliza Temer quanto à permanência no governo ministros citados na Lava-Jato

A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello que manteve no cargo o secretário-geral da Presidência, Moreira Franco, com direito a foro especial, sinalizou a linha de atuação da Segunda Turma da Corte nos casos dos demais ministros citados na Operação Lava-Jato. Todos serão julgados pelo STF, enquanto permanecem no cargo. A decisão revela uma hegemonia “garantista” nos julgamentos da Lava-Jato, ainda que o ministro-relator, Luiz Edson Fachin, venha a ter a mão mais pesada. Os demais integrantes da turma, Gilmar Mendes, seu presidente, e os ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli têm a mesma orientação.

Em sua decisão, Celso de Mello afirma que a nomeação para o cargo de ministro não leva à obstrução ou paralisação de eventuais investigações: “A mera outorga da condição político-jurídica de ministro de Estado não estabelece qualquer círculo de imunidade em torno desse qualificado agente auxiliar do Presidente da República, pois, mesmo investido em mencionado cargo, o ministro de Estado, ainda que dispondo da prerrogativa de foro ‘ratione muneris’, nas infrações penais comuns, perante o Supremo Tribunal Federal, não receberá qualquer espécie de tratamento preferencial ou seletivo, uma vez que a prerrogativa de foro não confere qualquer privilégio de ordem pessoal a quem dela seja titular.”

É o ponto final de uma guerra de liminares na Justiça Federal em torno da indicação de Moreira Franco, na qual juízes e tribunais regionais faziam diferentes interpretações. A decisão de Celso de Mello tranquiliza o presidente Michel Temer quanto à permanência no governo de outros ministros importantes citados na Operação Lava-Jato, como José Serra (Relações Exteriores), Gilberto Kassab (Cidades) e o fiel escudeiro Eliseu Padilha (Casa Civil). Ou seja, o governo ganhou fôlego para lidar com as delações premiadas da Odebrecht.

Na verdade, Temer dá tempo ao tempo e toca para a frente. A sabatina do ministro da Justiça licenciado, Alexandre de Moraes, estava marcada para ontem, mas o pau quebrou entre governo e a oposição. O presidente da Comissão de Constituição de Justiça, Edison Lobão (PMDB-MA), mergulhou e tudo ficou para a próxima terça-feira. A aprovação de seu nome, porém, não subiu no telhado. Moraes peregrina pelos gabinetes dos senadores. Foi simbólico o “beija-mão” do líder do PMDB, Renan Calheiros (PMDB-RJ), que havia chamado o titular da Justiça de “chefete de polícia” ao protestar contra a operação de busca e apreensão feita pela Polícia Federal nas dependências do Senado, no ano passado. Alguém já disse que “fulanizar” a política tem esses inconvenientes.

Visitar os gabinetes dos senadores é um ritual mais importante do que a sabatina propriamente dita, desde que o indicado não atravesse a rua para escorregar nas cascas de banana da oposição nem assombre os meios jurídicos, principalmente os ministros do Supremo. Ontem, o senador Eduardo Braga (PMDB-AM) leu seu relatório na comissão, no qual enalteceu as qualificações de Moraes para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), aberta com o trágico falecimento do ministro Teori Zavascki: “Demonstra ter experiência profissional, formação técnica adequada e afinidade intelectual e moral para o exercício da atividade.”

A próxima cartada de Temer é a indicação do novo ministro da Justiça, uma construção que passa pela bancada de Minas Gerais, que se considera sub-representada na Esplanada. O sinal de insatisfação veio na eleição do vice-presidente da Câmara, Fábio Ramalho (PMDB-MG), que derrotou de lavada o candidato oficial do governo, o deputado Lúcio Vieira Lima (PMDB-BA). Temer pisa em ovos para indicar um ministro da Justiça que não seja identificado como um adversário da Operação Lava-Jato. Uma conversa com o ex-ministro do Supremo Carlos Velloso dobrou as apostas de que o jurista mineiro seria o nome certo, para o lugar certo, na hora certa. Faz sentido.

Dominó

O ministro da Defesa, Raul Jungmann, anunciou ontem que 9 mil homens do Exército e da Marinha vão atuar no policiamento ostensivo no Rio de Janeiro, na capital, Niterói e São Gonçalo, a pedido do governador Luiz Fernando Pezão, que está agindo rápido para evitar que se repita no seu estado falido o que aconteceu no Espírito Santo na segurança pública. “Não existe nenhum descontrole, nenhuma insuficiência ou indisponibilidade dos recursos dos órgãos de segurança para garantia de lei de ordem. Não há descontrole e não há desordem. O efetivo da polícia é de 95%, 97% nas ruas (…) De fato, temos protestos aqui, mas isso não tem impedido que as forças policias trabalhem. Têm sido essas as informações do nosso setor de inteligência. É muito diferente a situação do Espírito Santo”, minimiza Jungmann. O fato é que falta policiamento nas ruas por causa do bloqueio dos quartéis pelas mulheres dos policiais militares.


Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br/azedo


Luiz Carlos Azedo: Sob a pinguela

O país terá de aprender a conviver com os julgamentos da Operação Lava-Jato e suas consequências. O cenário não é dos mais confortáveis

A nomeação de Alexandre de Moraes para a vaga do ministro Teori Zavascki no Supremo Tribunal Federal (STF), o que lhe garantirá o papel de revisor da Lava-Jato no plenário da Corte, provocou uma tempestade em copo d’água. A verdadeira tormenta, porém, é a delação premiada da Odebrecht, homologada pela presidente da Corte, ministra Cármem Lúcia, cujo relator é o ministro Luiz Edson Fachin, recém-sorteado na Segunda Turma. Moraes somente será revisor dos processos nos quais forem eventualmente julgados os presidentes do Senado, Eunício de Oliveira (PMDB-CE), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ); nos demais casos, o revisor é o decano da Corte, ministro Celso de Mello.

Moraes não participará do julgamento da maioria dos políticos, pois integrará a Primeira Turma do STF. A Segunda Turma do STF é presidida pelo ministro Gilmar Mendes e formada também pelos ministros Celso de Mello, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Edson Fachin. Ontem, por unanimidade, a turma negou um pedido de liberdade apresentado pelo ex-tesoureiro do PP João Cláudio de Carvalho Genu, por recomendação de Fachin. Preso em maio do ano passado por determinação do juiz Sérgio Moro, Genu está condenado a oito anos e oito meses de prisão por corrupção passiva e associação criminosa. Segundo a denúncia, recebeu ao menos R$ 3,1 milhões de propina da Diretoria de Abastecimento da Petrobras, que era controlada pelo PP.

Gilmar Mendes votou com o relator, mas criticou as prisões da Operação Lava-Jato: “Temos um encontro marcado com as alongadas prisões que vêm de Curitiba. Temos que nos posicionar sobre esse tema, que em grande estilo discorda e conflita com a jurisprudência que desenvolvemos ao longo dos anos”, advertiu. O quer isso tem a ver com a indicação de Moraes? Nada vezes nada. Esse é um embate que já ocorria nos bastidores da Corte, na qual a Segunda Turma já tem uma maioria garantista muito bem delineada quanto à Lava-Jato e que só espera a apresentação do voto do relator nos processos para decidir se o acompanha ou não. Há dezenas de recursos dos acusados que aguardam decisão do STF. Fachin já disse que dará prioridade a eles. O caso Genu foi somente um cartão de visitas.

Por mais que se critique o presidente Michel Temer, a indicação de Alexandre de Moraes é jogo jogado. Certamente enfrentará oposição na sabatina da Comissão de Constituição e Justiça, que deverá se realizar no prazo de três semanas, como anunciou ontem o presidente do Senado. Mas seu nome será aprovado na sabatina e no plenário. As restrições ao ex-ministro da Justiça são políticas e ideológicas, não são de natureza objetiva, a não ser que surja algum fato desabonador de sua probidade. Com sua indicação, a Corte estará completa para julgar a Lava-Jato. Esta, sim, é um rio caudaloso, que vai tragar os que caírem da pinguela, para usar a expressão irônica do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao se referir ao governo Michel Temer.

A missão de Fachin é espinhosa. Está balizada, porém, pela composição da Segunda Turma, na qual há ministros indicados pelos ex-presidentes Sarney, Fernando Henrique, Lula e Dilma. É bom lembrar os padrinhos para mitigar a gritaria em relação à indicação de Temer. O leito do rio é o chamado “devido processo legal”. O mais importante é o STF romper a letargia e começar os julgamentos da Lava-Jato. A morosidade da Corte aumenta o estoque de políticos enrolados, sem que seus casos sejam julgados; com isso, a desmoralização do Congresso aumenta. É preciso romper a inércia.

Turbulências

O país terá de aprender a conviver com os julgamentos da Operação Lava-Jato e suas consequências. O cenário não é dos mais confortáveis. No plano internacional, o novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seus aliados na Europa e Oriente Médio ampliam as incertezas. Na economia, os sinais de recuperação econômica não significam a elevação imediata dos níveis de emprego, até porque a modernização da economia implica mais automação e informatização, o que impacta negativamente a geração de postos de trabalho. As reformas trabalhista e da Previdência, necessárias para aumentar os níveis de emprego e de investimentos, como sempre, esbarrarão na resistência de sindicatos e das corporações e acabarão mitigadas pelos políticos.

O mais grave, entretanto, são os sinais de que o “contrato social” que regula a relação entre o Estado e a sociedade está muito esgarçado. Norberto Bobbio, ao analisar a crise italiana dos anos 1980, dizia que até o pior governo seria capaz de manter suas atribuições essenciais: arrecadar, normatizar e coagir. A crise no Espírito Santo, cujo governo era apontado como exemplo de equilíbrio fiscal e eficiência, é uma um sinal de alerta: o aparelho de segurança pública entrou em colapso e os bandidos tomaram as ruas; populares se aproveitam da situação para saquear o comércio e dezenas de mortos estão amontoados no necrotério.


Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br/azedo


Luiz Carlos Azedo: A “convulsão social”

O sujeito atende o celular: “Fora, Temer!” A mulher pergunta: “Vamos à praia?” Ele responde: “Só se for de manhã; à tarde, vou trabalhar!” Ela se despede: “Ok, Diretas já!”.

Virou mantra nos artigos e entrevistas dos viúvos do impeachment da presidente Dilma Rousseff a tese de que o país caminha para uma “convulsão social”, por culpa do governo de Michel Temer, que estaria destruindo todos os avanços econômicos e direitos sociais do país, como se a atual gestão fosse de fato responsável pela recessão e o desemprego em massa e não os desatinos petistas. A tese surgiu nas análises catastrofistas dos intelectuais, mas virou mais uma narrativa política a partir do momento em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa mensagem de ano-novo gravada em vídeo, oficializou esse discurso do quanto pior, melhor.

A crise dos estados e, agora, dos municípios — em muitos deles, os cofres foram esvaziados de vez na campanha eleitoral —, supostamente corroboraria a tese. Foi alimentada ao longo de anos de afrouxamento da responsabilidade fiscal, mas agora virou um dos fatores da tal “convulsão social”. Nos estados e municípios, mesmo com toda a roubalheira e a queda de arrecadação, a principal causa da crise fiscal são dois fatores que se retroalimentam: o aumento da folha salarial e o deficit previdenciário. Poderosas corporações, com seu poder de pressão focado nos próprios privilégios e não nas políticas públicas, agora se mobilizam contra os ajustes e pressionam prefeitos e governadores a apresentarem a conta para a União. É uma maneira de socializar o prejuízo, à custa dos contribuintes. Como a União não tem obrigação nem recursos suficientes para resolver o problema, o governo Temer é responsabilizado pela situação e chantageado pelo risco de “convulsão social”.

Sindicatos e organizações populares, como a CUT e a União Nacional dos Estudantes (UNE), controlados pelo PT e pelo PCdoB, respectivamente, e outros partidos contrários aos ajustes, financiam e organizam manifestações que quase sempre resultam em confrontos com a polícia e muitas depredações. As regras do jogo democrático não são respeitadas nos protestos. Pichações, destruição de patrimônio público e privado, invasões de repartições públicas e de casas legislativas são frequentes; a polícia acaba reagindo de forma indiscriminada, com bombas de efeito moral, lacrimogêneas, gás de pimenta e cassetetes. São situações que se repetem, nas quais as lideranças parecem querer que algo mais grave aconteça, como a morte de um manifestante nos confrontos. Assim, a tese da “convulsão social” ganharia uma bandeira nacional ensanguentada.

A recessão e o desemprego, obviamente, ampliam as tensões sociais. O crescimento da população de rua, do número de “noiados” e dos crimes contra o patrimônio e contra a vida, também. A crise fiscal agrava os problemas sociais, é verdade, por falta de recursos para as políticas compensatórias. Tudo isso entra no balaio da tese de que o Brasil caminha inexoravelmente para a ingovernabilidade. Seu ingrediente mais novo é a superlotação dos presídios, nos quais explodiu a violência. O presidente Michel Temer, fleumático como sempre, foi infeliz na primeira declaração sobre os massacres de Manaus (AM) e Rio Branco (RR). Seu ministro da Justiça, Alexandre Moraes, não ficou atrás. Há, porém, um evidente exagero ao atribuir ao atual governo a responsabilidade pela superlotação dos presídios.

A guerra nas prisões decorre da luta travada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), dos traficantes paulistas, pelo controle das rotas de transporte de cocaína na fronteira do Paraguai, tomadas do Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e no Rio Solimões, controladas pela Família do Norte, do Amazonas. Talvez o acordo de paz entre o governo da Colômbia e os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) tenha mais a ver com o confronto do que a superlotação dos presídios, que cria um ambiente favorável ao ajuste de contas, mas não é sua causa. Os presídios brasileiros sempre foram uma vergonha nacional.

Virou piada

A tese de que o governo Temer é a causa de iminente “convulsão social” é falsa. Decorre, na melhor das hipóteses, de uma visão voluntarista, que aposta numa mudança brusca da correlação de forças a favor das forças afastadas do poder pelo impeachment da ex-presidente Dilma, embora as eleições municipais tenham apontado exatamente o contrário. Na pior, é apenas um discurso oportunista de quem foge da autocrítica em relação aos próprios erros. Na verdade, uma narrativa que mira a sobrevivência nas eleições de 2018.

A tese da “convulsão social” é complementada pela palavra de ordem “Diretas já!”, que qualquer político com mandato sabe que é inconstitucional, porque implicaria na cassação de mandatos de senadores, deputados federais, governadores e deputados estaduais. Seria como convidar o peru para uma ceia depois do Natal. A eleição direta para presidente da República é prevista apenas em caso de cassação da chapa eleita, antes de completados dois anos da eleição. Depois disso, a eleição é indireta, pelo Congresso. A palavra de ordem, porém, virou uma espécie de saudação carioca. O sujeito atende o celular: “Fora, Temer!” A mulher pergunta: “Vamos à praia?” Ele responde: “Só se for de manhã; à tarde, vou trabalhar!” Ela se despede: “Ok, Diretas já!”. Com o calor da lascar, ninguém quer saber de passeata.


Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br


Alberto Aggio

Alberto Aggio: Não haverá saída fácil

Quem argumenta que a crise que assola o País tem no governo Temer sua principal causa parece ter vivido fora do Brasil por, pelo menos, uns dez anos

Quem argumenta que a crise que assola o País tem no governo Temer sua principal causa parece ter vivido fora do Brasil por, pelo menos, uns dez anos. Por alguma razão, ideológica ou incógnita, desconhece o que se passou aqui. A profundidade da crise econômica – com o desemprego beirando a casa de duas dezenas de milhões, as finanças dos Estados em calamidade pública e a insegurança generalizada – tem nos levado, perigosamente, muito próximos à situação de insolvência vivida pela Grécia em passado recente. Este desastre, considerado o maior da nossa História, não foi obra de um governo que, fora a interinidade, alcança pouco mais de quatro meses.

A crise deriva diretamente das medidas adotadas pelos governos do PT, especialmente o de Dilma Rousseff. Quando o mundo já prognosticava que o modelo nacional-desenvolvimentista, com o Estado centralizando o investimento e promovendo os “campeões nacionais”, era um projeto ultrapassado ante os ditames da globalização e nefasto a um desenvolvimento mais equilibrado e competitivo, a então presidente Dilma adotou precisamente essa opção, provocando desequilíbrio financeiro, recessão e desemprego, com toda a sua carga de desorganização da economia.

Os efeitos da crise econômica e as revelações de um sistema mafioso de poder que promoveu no Estado e nas empresas públicas um nível de corrupção inaudito encheram de indignação uma sociedade cada vez mais informada. E ela desceu às ruas. O projeto de Dilma e do PT tornou-se, então, insustentável e seu principal aliado, o PMDB de Michel Temer – que havia ajudado (e muito) a reeleger Dilma –, foi se distanciando do núcleo de poder (que, na verdade, pouco frequentou) e resolveu abandonar o governo. Não é verdade que Temer não tenha a legitimidade do voto. Ele foi eleito com Dilma e com o voto dos petistas. Talvez se possa dizer, ao contrário, que foi o PMDB que reelegeu Dilma.

Após o impeachment e a assunção definitiva de Michel Temer, o País pôde começar a se reorganizar. Mas os déficits e as disfunções acumuladas revelaram-se de tal monta que se tornou evidente que a travessia até bom porto, com a recuperação do crescimento e o estabelecimento de um clima de diálogo entre as forças políticas, seria cheia de obstáculos e necessitaria de paciência e sobriedade.

Declaradamente, o de Temer é um governo de transição cujo objetivo central é rearranjar o País para chegar de maneira mais equilibrada a 2018. É a tal travessia, pinguela, corda bamba, seja lá o nome que se queira dar. Para isso o apoio de uma base parlamentar é essencial e configura seu principal ativo político.
Mas a dimensão política não gira em torno de si, sem substância e projetos para superar a crise. É imperativo realizar reformas e algumas delas estão sendo aprovadas pelo Congresso, com mudanças maiores ou menores. Contudo esse andamento não é pacífico nem portador de estabilidade absoluta. Os mais afoitos diagnosticarão crises terminais a cada turbulência e não faltará quem faça uma exumação da “Nova República” com o intuito de defender o que não defendeu na ultrapassagem do regime civil-militar para uma nova ordem política democrática, lá pelos idos de 1986/88.

É notório, todavia, que o governo Temer não conseguiu extirpar a crise ética. A composição do pessoal governante do Executivo vem apresentando diversos problemas em razão da trajetória anterior do seu “núcleo duro”, quase todo ele comprometido com problemas de corrupção herdados do período petista. Ministros foram substituídos, evidenciando, em alguns casos, que o problema é mais grave e profundo: trata-se da resiliência do velho patrimonialismo, que teima em solapar a res publica, razão pela qual multidões saíram às ruas desde 2013.

Não à toa, em 2016 as manifestações massivas de rua elegeram esse como seu alvo preferencial. As que visaram a atacar aspectos das reformas que o governo está pondo em marcha foram pouco massivas e, regra geral, descambaram para a violência. O que é negativo para o debate político em torno das reformas, que não têm consenso assegurado nem dentro da base governista.

Mas há uma mudança que merece atenção. Embora a Lava Jato permaneça como fator ineliminável da conjuntura política e ação exemplar de intransigência republicana que deve ser saudada, a imperiosidade das reformas tornou mais evidente para a opinião pública a necessidade de se repensar um projeto para o País. Em suma, que o País se encontra numa encruzilhada histórica e há necessidade de um aggiornamento democrático do capitalismo brasileiro, alterando os fundamentos da relação entre Estado e sociedade. Nesse cenário desafiador, só a política poderá ajudar-nos a suplantar dificuldades, preconceitos e vazios diante de um País em ruínas e que vive sob ameaça de crispação, com uma esquerda “desarmada” e perdida entre a inércia do corporativismo e um maximalismo retórico e anacrônico.

As saídas não serão fáceis e não estarão exclusivamente nas ações da Lava Jato. O imperativo das reformas atualizou a conjuntura e não se poderá fugir dele, sob pena de adiarmos a resolução dos problemas do País e reproduzirmos um sistema político sabidamente em colapso. Pode ser que as reformas não sigam nem a velocidade nem a organicidade desejada, mas parece não haver outro caminho.

2017 não se anuncia como um ano com turbulências mais débeis do que foi 2016. Por ora não se divisa nem sarneyzação nem dilmização de Temer. A consigna “diretas já” não é mais que uma retórica preguiçosa e inútil, que não enfrenta os desafios que o País tem diante de si. A partir de uma posição de intransigência democrática e republicana, a Nação precisa se unir e realizar essa travessia, procurando construir, ao mesmo tempo, novos horizontes para os brasileiros.

Alberto Aggio é historiador e professor titular da UNESP


fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,nao-havera-saida-facil,10000097018


Perdas e danos

Em dez anos, Lei de Drogas superlotou presídios e foi incapaz de reduzir as redes de tráfico

Há dez anos o Brasil aprovava um novo marco legal para o combate às drogas. A Lei 11.343/2006 nascia com a perspectiva de intensificar penas para o crime de tráfico e reduzir a criminalização dos usuários. Seu efeito, porém, mostrou-se desastroso: cadeias superlotadas, mais mulheres nas prisões e criminalização da população negra e pobre. Por outro lado, não há nenhum indicador de que as redes de tráfico tenham sido coibidas.

De 2005 até dezembro de 2014, segundo dados do Ministério da Justiça, a população carcerária teve um salto vertiginoso de 111,4%, ultrapassando a marca de 620 mil presos. Isso colocou o Brasil na vergonhosa posição de quarto país com a maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA, China e Rússia.

Em 2005, o porcentual de pessoas incriminadas por tráfico de drogas correspondia a 11% da população carcerária. Em 2014, segundo dados do Infopen, esse número alcançou 27%. Se considerarmos apenas as mulheres, o impacto foi ainda mais cruel: 64% das presas no Brasil respondiam por tráfico de drogas.

O grande responsável por essa desastrosa situação foi o aumento da pena mínima de três para cinco anos, mesmo para pequenos traficantes. Soma-se a isso a relutância dos juízes em aplicar a diminuição de pena para réus primários e a insistência no encarceramento, muito embora o Supremo Tribunal Federal já tenha decidido que a equiparação a crime hediondo não impede a aplicação de penas alternativas, como ocorre para outros crimes não violentos como o furto.

O resultado é uma distorção racista e classista, já enraizada na cultura brasileira, mas bastante escancarada no sistema prisional: embora não existam dados sociodemográficos específicos dos presos por tráfico de drogas, o perfil geral da população prisional brasileira é composto majoritariamente por negros (61,6%) e de baixa escolaridade (oito em cada dez estudaram, no máximo, até o ensino fundamental). O foco da atuação policial no combate à venda de drogas no varejo e ao transporte feito por "mulas" faz com que um contínuo fluxo de jovens desempregados sejam levados ao sistema prisional mesmo sem praticar qualquer ato violento, enquanto as grandes organizações têm seu complexo sistema de comércio e corrupção inalterado.

Política antidrogas vem promovendo um violento massacre às populações mais vulneráveis.

A lógica militar de combate às drogas faz com que 90% das prisões por tráfico sejam em flagrante e por pequenas quantidades. Esta pessoa provavelmente passará todo o processo no regime fechado de prisão por suposto "perigo à ordem pública" - pautado não na violência da pessoa, mas na ideia abstrata do "inimigo traficante" produzida pela mídia. A guerra às drogas é a grande responsável por manter em prisão provisória, ou seja, sem julgamento definitivo, 40% dos atuais presos do Brasil.

Em uma década, o Brasil acumulou conhecimento e dados suficientes para deixar claro que sua política antidrogas vem promovendo um violento massacre às populações mais vulneráveis e tornado cada vez mais insustentável o sistema prisional. Existe uma demanda crescente dentro e fora do país para a revisão da abordagem proibicionista e tratamento da questão dentro de seu devido lugar, que é a saúde pública.

Nesse sentido, o STF (Supremo Tribunal Federal) tem em suas mãos uma oportunidade histórica. Ainda nesse semestre deve ser retomado o julgamento sobre o Recurso Extraordinário nº 635.659, da Defensoria Pública de São Paulo, que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal.

Esperamos que os ministros do Supremo assumam para a si a responsabilidade de corrigir essa distorção, deixando de punir usuários e abrindo caminho para uma política de drogas menos violadora, menos encarceradora e menos seletiva.

Jessica Carvalho Morris e Henrique Apolinário, respectivamente diretora-executiva e assessor do programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos.


Fonte: El País


Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa

O dia 15 de junho marca o Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa. A data foi instituída em 2006, pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Rede Internacional de Prevenção à Violência à Pessoa Idosa.

O objetivo da data é criar uma consciência mundial, social e política da existência da violência contra a pessoa idosa, e, simultaneamente, disseminar a idéia de não aceitá-la como normal. Vale rever o #ProgramaDiferente especial sobre o idoso, que apresenta uma entrevista exclusiva com o teólogo, filósofo, escritor e professor universitário Leonardo Boff.

O programa também exibe com exclusividade a palestra ministrada por Boff no Sesc Pinheiros, encerrando a"Campanha de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa", com o tema "Em 2050 seremos muitos: o cuidado começa agora" e a conferência "Cuidado: maneira amorosa de se relacionar com os outros".

O #ProgramaDiferente é exibido na TVAberta da cidade de São Paulo (NET canal 9, Vivo canal 186 e Vivo Fibra canal 8) todos os domingos, às 21h30, e terças-feiras, à 1h30 da madrugada. Se preferir, veja aqui a íntegra da entrevista de Leonardo Boff e também a íntegra da palestra sobre o cuidado com os idosos. Na internet, as duas temporadas do programa estão disponíveis na TVFAP.net e em programadiferente.com na íntegra.


Brasil: a cada 6 horas uma mulher é assassinada por um agressor conhecido, alerta ONU Mulheres

"Instamos as autoridades a empenhar todo o peso da lei contra os agressores e proteger a dignidade das vítimas”, disse a diretora regional da ONU Mulheres para Américas e Caribe, Luiza Carvalho, que assina nota da agência sobre estupros coletivos ocorridos no Brasil.

A diretora regional da ONU Mulheres para Américas e Caribe, Luiza Carvalho, assinou uma nota da agência comentando os casos recentes de estupros coletivos ocorridos no Brasil.

“Nenhuma forma de violência contra as mulheres e meninas pode ser aceita: pelo fim da cultura de tolerância com a violência contra as mulheres. Pelo fim da impunidade”, destacou ela no comunicado divulgado neste domingo (29).

“Proteger a vida de mulheres e meninas é uma responsabilidade de toda a sociedade”, acrescenta a nota.

O escritório regional da ONU Mulheres ressaltou que a tolerância social da violência contra as mulheres e meninas é “sistemática” e inclui violência física, psicológica e econômica, ocorrendo tanto nos espaços públicos como nos privados.

Confira a nota na íntegra:

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Luiza Carvalho, diretora regional da ONU Mulheres para Américas e Caribe. Foto: Bruno Spada/ONU Mulheres

“A Oficina Regional da ONU Mulheres para Américas e Caribe se une ao repúdio do atroz caso de estupro perpetrado por 30 homens contra uma adolescente no Rio de Janeiro, Brasil. Além da brutalidade com que o crime foi cometido, a degradação contra a vítima foi acentuada por imagens e gravações publicadas na internet sobre este ato condenável.

Preocupa, ainda, outro estupro coletivo registrado em Bom Jesus, estado do Piauí, onde outra adolescente foi vítima de violação por parte de cinco homens, cujo crime segue em investigação.

Esses acontecimentos têm causado a mais forte rejeição e comoção na comunidade internacional. Diversas entidades públicas, organizações da sociedade civil, agências do Sistema das Nações Unidas, meios de comunicação social, assim como personalidades dos âmbitos artístico e cultural se pronunciaram com contundência.

Deste Escritório Regional, somamos a nossa voz para a enérgica condenação e instamos as autoridades competentes a empenhar todo o peso da lei contra os agressores e a proteger a intimidade e a dignidade das vítimas.

A tolerância social da violência contra as mulheres e meninas é sistemática e vai desde a violência física, psicológica, econômica e acontece tanto nos espaços públicos como nos privados. A violência se mantém durante desastres naturais e conflitos armados e permanece para sempre na vida de homens e mulheres e com consequências nefastas para toda a sociedade. Dados da OPAS [Organização Pan-Americana da Saúde] relevam que:

A iniciação sexual forçada e não desejada acontece desde cedo na vida de muitas meninas na América Latina e Caribe:

Proporções expressivas de mulheres jovens, em todas as pesquisas, informaram que a sua primeira relação sexual havia sido forçada. Os esposos, companheiros, namorados e outros parceiros eram os agressores informados com maior frequência nas pesquisas com tais indicadores.

A exposição à violência na infância aumenta o risco de outras formas de violência em etapas posteriores da vida e tem importantes efeitos intergeracionais negativos:

A exposição à violência na infância pode ter efeitos de longo prazo e intergeracionais. A prevalência da violência por parte do esposo/companheiro era significativamente maior (em geral umas duas vezes maior) entre as mulheres que informaram ter sido maltratadas fisicamente na infância na comparação com aquelas que não tinham passado por tais violências na infância.

A proporção de mulheres que informaram que seu pai (ou padrasto) agredia a sua mãe (ou madrasta) variava amplamente segundo o país, entre a oitava parte (12,6 %) no Haiti, em 2005/6, e quase a metade (48,3 %) na Bolívia, em 2003. Em sete de 13 países, a quarta parte ou mais das mulheres informaram exposição a algum tipo de violência doméstica.

A impunidade frente aos crimes cometidos contra as mulheres e as meninas e a alta tolerância social com a violência contra elas posicionaram a América Latina e Caribe como a região com mais assassinatos de mulheres. De acordo com a Convenção de Genebra, no seu relatório de 2011, dos 2,5 países com mais altas taxas de feminicídio, 14, mais de 50%, estão na América Latina e Caribe. Calcula-se que, no Brasil, a cada 6 horas uma mulher é assassinada por um agressor conhecido.

Na Colômbia, a cada 6 dias, uma mulher é assassinada pelas mãos de seu companheiro ou ex-companheiro. No México, um recente estudo sobre as tendências dos últimos 25 anos do Instituto Nacional das Mulheres e ONU Mulheres demonstra que, mesmo com reduções das taxas de assassinatos de mulheres, segue, de maneira preponderante, os crimes cometidos por companheiro e ex-companheiro.

Para muitas pessoas, as reivindicações das mulheres, nos últimos anos, significam que estas violações sistemáticas dos direitos humanos são coisa do passado. Mas lembremos que, em âmbito mundial, 35% dos assassinatos de mulheres são cometidos por parceiro, comparado com 5% para os homens de acordo com estudos preliminares da Organização Mundial da Saúde. Esses cálculos devem ser vistos como modestos porque não há informação comparável entre os países, o que alimenta a cultura da impunidade.

Como explicou a relatora especial das Nações Unidas para Eliminação da Violência contra as Mulheres, suas causas e consequências, os assassinatos de mulheres relacionados com gênero, mais do que uma nova forma de violência, constituem a manifestação extrema das formas de violência que existem contra a mulher. Não se trata de incidentes isolados que ocorram de maneira repentina e imprevisto. São os últimos atos de violência que acontecem numa violência contínua.

Ao ver de maneira sistemática a violência que acontece no Brasil e no resto da América Latina, não podemos deixar de ver as correlações entre os crimes cometidos contra as mulheres pelo fato de serem mulheres, incluindo o estupro, com altas taxas de feminicídio em âmbito nacional e regional.

Portanto, fazemos um chamado para garantir o devido acesso aos serviços de atenção e proteção às vítimas, assegurando que incorporem a devida perspectiva de gênero e preservem a segurança, a dignidade e a privacidade das vítimas, evitando expô-las novamente a situações de risco e revitimização.

Assim, convidamos para uma reflexão profunda e urgente sobre a cultura da impunidade e tolerância a essas agressões, dos valores culturais e modelos negativos de masculinidade que estão por trás desses atos, que reproduzem e garantem condutas de agressão, dominação e violência contra mulheres e meninas.


Luiza Carvalho
Diretora regional da ONU Mulheres para Américas e Caribe


Brasil: Violência, pobreza e criminalização ‘ainda têm cor’, diz relatora da ONU sobre minorias

Em relatório publicado nesta semana, a especialista independente da ONU sobre minorias, Rita Izsák, alertou: cerca de 23 mil jovens negros morrem por ano, muitos dos quais são vítimas de violência pelo Estado. Cenário evidencia ‘dimensão racial da violência’, que movimentos sociais descrevem como ‘genocídio da juventude negra’.

Para a especialista, polícia militar deveria ser ‘abolida’, bem como a categoria do ‘auto de resistência’, considerada um ‘escudo de impunidade’. A relatora destacou que, no Brasil, os negros respondem por 75% da população carcerária e por 70,8% dos 16,2 milhões de brasileiros vivendo na extrema pobreza.

No Brasil, a violência, a criminalização e a pobreza “continuam a ter uma cor”, afetando de forma desproporcional a população negra do país. Esta foi a constatação da relatora especial das Nações Unidas sobre questões de minorias, Rita Izsák, que apresentou nesta terça-feira (15) suasavaliações sobre a conjuntura brasileira ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Mesmo após 20 anos de políticas públicas e ações específicas voltadas para os afrodescendentes, o Brasil ainda “fracassa” em combater a discriminação, a exclusão e a miséria historicamente enraizadas – que acometem, particularmente, os moradores de favelas, periferias e em comunidades quilombolas.

Segundo a especialista, o “mito da democracia racial” permeou por muito tempo o imaginário brasileiro, colocando obstáculos à abordagem explícita de questões como racismo e preconceito e levando a suposições de que a situação marginalizada dos negros seria causada apenas por fatores de classe, e não por aspectos raciais também.

Os resultados mostrados pela especialista foram fruto de uma visita oficial ao Brasil no ano passado. Durante sua passagem pelo país, a relatora visitou a comunidade Santa Marta no Rio de Janeiro, a região da periferia de São Paulo conhecida como Brasilândia e quilombos e comunidades praticantes de religiões de origem africana tanto no estado de São Paulo como na Bahia.

Violência tem ‘clara dimensão racial’ no Brasil

Izsák destacou que, dos 56 mil homicídios registrados a cada ano, cerca de 23 mil têm, como vítimas, negros de 15 a 29 anos de idade. “O que é desconcertante é que um número significativo é perpetrado pelo Estado, frequentemente através do aparato da polícia militar”, afirmou a especialista.

Segundo informações coletadas pela relatora, no estado de São Paulo, as mortes de afrodescendentes em decorrência de ações policiais são três vezes mais numerosas do que as registradas para a população branca. No Rio de Janeiro, quase 80% das vítimas de homicídios associados a intervenções da polícia são negros. Desse contingente de afrodescendentes mortos, 75% eram jovens entre 15 e 29 anos.

A relatora ressaltou que um dos elementos integrantes dessa violência é a impunidade de que gozam os oficiais envolvidos nos crimes.

“Policiais são raramente levados à justiça e a ampla maioria das vítimas não obtém qualquer tipo de reparação. Por exemplo, uma recente revisão de 220 investigações de mortes pela polícia, aberta em 2011 na cidade do Rio de Janeiro, descobriu que, após quatro anos, apenas um oficial de polícia havia sido acusado”, explicou a especialista.

Como resultado da alta mortalidade, somada à impunidade “generalizada” e ao medo de retaliação que desestimula testemunhas dos crimes de policiais a se pronunciarem, movimentos sociais descrevem o cenário como “um genocídio da juventude negra”, em alerta à “clara dimensão racial” da violência no Brasil.

De acordo com Izsák, um dos principais mecanismos que abre brechas para os homicídios e a impunidade são os chamados autos de resistência, “um resquício da ditadura militar” responsável por legitimar mortes, justificadas pelo princípio da autodefesa. Além de abolir essa categorização, o Estado deveria implementar outras medidas, como a reestruturação das forças policiais, incluindo o fim da polícia militar.

No Rio de Janeiro, uma resolução da Polícia Civil do estado determinou a suspensão do uso do mecanismo do “auto de resistência”, o que teria gerado impactos positivos para a redução do número de homicídios policiais.

O projeto de lei 4471/2012, ainda pendente para votação no Congresso, também poderia aprimorar a forma como são conduzidas as investigações de crimes envolvendo oficiais, uma vez que estabelece procedimentos para preservar as cenas do crime e assegurar sua averiguação em nível federal.

Durante visita à comunidade Santa Marta, Izsák observou o impacto da presença de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Apesar de contribuir para a redução de certos crimes, a relatora criticou o fato de o organismo ser a única iniciativa do governo na favela.

Oficiais permanecem pesadamente armados e desempenham funções policiais ao mesmo tempo em que administram serviços sociais e programas de educação, sem possuir treinamento adequado para tanto, ressaltou a relatora.

Criminalização, pobreza e vulnerabilidades de gênero afetam população negra de forma desigual

A relatora expressou preocupação quanto ao fato de 75% da população carcerária do Brasil ser composta por negros. Parte desta disparidade estaria associada à abordagem discriminatória da polícia. Pesquisas também indicam que, quando acusados, afrodescendentes são mais propensos a serem mantidos na cadeia e a serem condenados à privação da liberdade do que a receberem penas alternativas.

Para Izsák, a política de “guerra às drogas” do Estado brasileiro é marcada por “ambiguidades”, que permitem a policiais criminalizar indivíduos com determinado perfil étnico e social. Enquanto os negros encontrados portando drogas são acusados com o crime mais sério de tráfico, brancos talvez sejam acusados de posse de drogas ou simplesmente receberão uma advertência.

Desde 2005, um ano antes da aprovação de lei de drogas 11.343/2006, o número de pessoas encarceradas por violações associadas a drogas aumentou 344,8%. Estima-se que, atualmente, 25% dos homens e 63% das mulheres na prisão foram acusados e condenados por infrações vinculadas a drogas.

A relatora especial se disse ainda “alarmada” pela proposta de emenda constitucional que reduziria a idade penal para 16 anos. Caso seja aprovada, a nova lei não apenas irá contra as recomendações do Comitê sobre os Direitos da Criança, como também contribuirá para perpetuar a criminalização da comunidade negra brasileira. A redução da maioridade penal é uma violação à Convenção sobre os Direitos da Criança, tratado internacional assinado e ratificado pelo Brasil.

Esta comunidade é a mesma que responde por 70,8% dos 16,2 milhões de brasileiros vivendo em extrema pobreza e por 80% dos analfabetos do país. Os salários médios dos negros no Brasil chegam a ser 2,4 vezes menores do que os recebidos por cidadãos brancos e de origem asiática. Estudos mostram que 64% dos afrodescendentes não completaram a educação básica.

A situação das mulheres brasileiras negras também preocupou Izsák. Pesquisas revelam que essa parcela do público feminino está mais sujeita a violência: em 2013, mulheres negras foram mortas numa proporção 66,7% maior do que as brancas.

Em comunidades marginalizadas, como favelas e periferias, meninas e mulheres afrodescendentes permanecem particularmente mais suscetíveis a diferentes formas de abuso, incluindo violência sexual e doméstica.

Na Brasilândia, crianças de dez e 11 anos informaram à relatora que elas eram proibidas de sair de casa após chegar da escola por medo de serem estupradas, uma agressão descrita como recorrente na vizinhança.

Religiões de origem africana também foram destaque de relatório

Em sua avaliação, a relatora especial também chamou atenção para o preconceito que praticantes de religiões de origem africana, como o Candomblé e a Umbanda, dizem enfrentar.

Izsák afirmou ter ficado “seriamente perturbada” ao receber relatos crescentes de episódios de assédio, intimidação, discurso de ódio e, mesmo, de atos de violência, voltados contra os fiéis dessas práticas religiosas. Apenas durante sua visita de duas semanas ao Brasil, dois templos de Candomblé foram queimados no Distrito Federal.

Informações do Centro Nelson Mandela, na Bahia, apontam que um terço de todas as queixas recebidas pela instituição diz respeito à intolerância contra religiões africanas. Membros desses cultos são vítimas de discriminação por conta de suas vestimentas e adereços tradicionais, frequentemente proibidos em locais de trabalho.

Segundo Izsák, entre os praticantes de religiões africanas, há a percepção de que a expansão das doutrinas evangélicas teria tido consequências para as liberdades religiosas. Frequentadores de terreiros relataram ter sido assediados por evangélicos, que empreendem esforços de conversão agressivos, como a distribuição e colagem de panfletos em seus locais de culto.

Outras preocupações comuns entre os praticantes que a relatora conheceu envolvem a disseminação de estereótipos negativos sobre as religiões africanas em veículos de mídia controlados por evangélicos e desigualdades na proteção dessas religiões pelas autoridades, em comparação a outras.

Quilombos enfrentam mais riscos e discriminação

Comunidades tradicionais de afrodescendentes, os quilombos enfrentam discriminação e racismo adicionais, enquanto agrupamentos pobres, rurais e de zonas periféricas que nem sempre conseguem fazer valer seus direitos a terra e recursos naturais.

Até o momento, apenas 189 escrituras foram emitidas para grupos quilombolas, oficializando a posse da terra. Estima-se que haja, atualmente, 1.516 processos abertos envolvendo a demarcação dessas comunidades. Segundo informações recebidas pela relatora da ONU, existem mais de 3 mil quilombos no Brasil.

Apesar de reconhecidos constitucionalmente, quilombos permanecem vulneráveis a pressões do Estado e do setor privado, cujas obras e iniciativas têm desrespeitado os limites das comunidades.

É o caso do Quilombo baiano Ilha da Maré, onde projetos de desenvolvimento provocaram a contaminação do solo e da água da região com metais pesados. As consequências ambientais levaram ao aumento do número de casos de câncer na comunidade e causaram muitas mortes entre jovens que foram envenenados pelas substâncias tóxicas. Devido ao fluxo de trabalhadores que chegaram ao local, mulheres quilombolas também ficaram particularmente mais vulneráveis à violência sexual e de gênero.

A “grave” situação do Quilombo dos Macacos, na região metropolitana de Salvador, também foi citada no relatório, sendo descrita por Izsák como motivo de “preocupação ainda maior”. A instalação de uma base da Marinha dividiu as terras da comunidade. Além de terem familiares monitorados, quilombolas informaram à relatora que sofrem abusos e violência perpetrados por militares, incluindo tortura e agressões sexuais envolvendo mulheres do Quilombo.

Governo brasileiro respondeu às avaliações feitas pela relatora

No que diz respeito aos esforços para prevenir e punir qualquer tipo de violência e abuso alegadamente cometidos pela polícia, o Estado brasileiro destacou que, em janeiro desse ano, o Conselho Superior de Polícia, vinculado à Polícia Federal, e o Conselho Nacional de Chefes da Polícia Civil adotaram uma resolução conjunta que aboliu, em todo o território nacional, o uso dos termos “autos de resistência” e “resistência seguida de morte”.

O objetivo da medida é garantir que os homicídios cometidos por agentes de segurança sejam devidamente investigados. A resolução instituiu que tais incidentes passassem a ser registrados como “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à ação policial”. Os casos devem ser encaminhados ao Ministério Público, mesmo que procedimentos internos de inquérito tenham sido iniciados pela polícia.

Quanto aos quilombos, o governo do Brasil “rejeita a noção de que o país prioriza as políticas econômicas e de desenvolvimento em detrimento dos direitos das comunidades tradicionais”. “Tais alegações não refletem, adequadamente, a realidade brasileira”, afirmou o governo brasileiro.

As autoridades ressaltaram que projetos de desenvolvimento precisam de licenças ambientais para ser executados e ter suas atividades monitoradas, quando houver risco de poluição e degradação da natureza.

Sobre o Quilombo dos Macacos, o Estado afirmou que a comunidade reivindica uma área que se tornou propriedade da Marinha em 1954, após uma doação de terra feita pela cidade de Salvador. Até o momento, todas as decisões judiciais envolvendo o local favoreceram a Marinha, que conseguiu provar a legalidade e a legitimidade da sua presença na região.

Desde 2010, tribunais expediram mandados de despejo para a comunidade que, no entendimento do Judiciário, poderia causar degradação ambiental e poluição das águas.

O despejo forçado dos quilombolas foi deliberadamente adiado pelo governo brasileiro a fim de assegurar uma solução pacífica, que inclua a realocação das famílias e garanta sua dignidade e o respeito aos seus direitos humanos. Desde 2012, autoridades ofereceram cinco acordos de reassentamento pacífico.

Acesse o relatório (A/HRC/31/56/Add.1) nos seis idiomas oficiais da ONU clicando aqui ou clicando aqui para acessar diretamente a versão em inglês.

Fonte: Nações Unidas