vietnã

A ucrânia se tronou um novo vietnã | Imagem: reprodução/Correio Braziliense

Nas entrelinhas: A Ucrânia se tornou um novo Vietnã

Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense

A guerra da Ucrânia está sendo para a Rússia de Vladimir Putin o que o Vietnã representou para os Estados Unidos. É uma guerra por procuração, na qual o que existe de mais moderno em termos de guerra híbrida está sendo empregado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, contra as tropas russas invasoras. Se havia alguma dúvida quanto a isso, dois vazamentos de informações foram esclarecedores:

No primeiro, o Times revelou que “os EUA forneceram informações de inteligência a respeito de unidades russas que permitiram aos ucranianos localizar e matar muitos dos generais russos que morreram em ação na guerra da Ucrânia, de acordo com graduadas autoridades americanas”. No segundo, após uma reportagem da NBC News, o Times noticiou que os EUA “forneceram informações de inteligência que ajudaram as forças ucranianas a localizar e atacar” o Moskva, o principal navio de guerra da esquadra russa no Mar Negro, que, depois, naufragou.

Na época da guerra fria, o equilíbrio estratégico militar entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética permitia que direita e esquerda disputassem o poder nos seus respectivos países, sobretudo na Europa, por uma via democrática, exceto nas áreas de influência das duas potências. Na zona do agrião, como diria o comentarista de futebol João Saldanha, as duas potências entravam de sola: foi assim na Hungria e antiga Checoslováquia, invadidas pelas tropas do Pacto de Varsóvia; e na América Latina, onde as intervenções diretas e os golpes militares apoiados pelos Estados Unidos barraram a ascensão da esquerda durante quase toda a guerra fria. A “crise dos mísseis” em Cuba, a exceção, em 1962, quase levou o mundo à guerra nuclear.

A derrota americana no Vietnã foi o primeiro de uma série de eventos nos quais os Estados Unidos fracassaram, como na Revolução Iraniana e no Afeganistão. A derrota soviética nesse país pode ser considerada o sinal de que a desintegração da União Soviética estava mais próxima do que se imaginava, antes mesmo que a queda do Muro de Berlim. O colapso do chamado “socialismo real” deu aos Estados Unidos a hegemonia nesse novo mundo unipolar, no qual a globalização avançou protagonizada por políticas neoliberais e a Otan demonstrou seu poder de intervenção na Sérvia, no Iraque, na Líbia e no Afeganistão. A emergência da China como potência econômica, nas últimas duas décadas, porém, colocou essa hegemonia em xeque no plano econômico.

Derrota anunciada

A Rússia já está derrotada, moralmente e financeiramente. Ao afrontar a Organização do Tratado do Atlântico Norte, Putin pavimentou o caminho para sua expansão, inclusive para países tradicionalmente neutros, como a vizinha Finlândia e a Suécia. Os dois países participaram da reunião da Otan realizada ontem, na qual a Turquia retirou suas objeções à expansão do organismo. Com isso, a Rússia fica extremamente isolada no Mar Báltico. O problema é que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, está ficando sem opções que não sejam humilhantes. A guerra pode lhe custar o poder, a grande aposta de Biden e dos líderes europeus.

Biden mantém uma posição firme, mas também não sabe como sair da confrontação com a Rússia. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, trabalha para tornar a Ucrânia membro da Otan ou obter um pacto militar bilateral com os Estados Unidos. Ambos acreditam que a Ucrânia pode pôr os russos para correr. Putin fracassou no seu objetivo original: tomar Kiev e mudar o regime ucraniano; agora, corre o risco de fracassar na tentativa de controlar o antigo centro industrial da Ucrânia, a região do Donbass, cuja população tem origem russa em sua maioria, numa guerra mais longa e muito desgastante.

A distância entre Washington e Hanói é de 13.336 km; entre Kiev e Moscou, são apenas 775 km. A doutrina militar russa se baseia na profundidade do território e na guerra aeroespacial. Uma derrota na Ucrânia nem se compara à dos Estados Unidos no Vietnã. Putin tem duas possibilidades: jogar a toalha e bater em retirada, diante da resistência crescente do Exército ucraniano, armado e assessorado pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos, ou escalar a guerra convencional e destruir a Ucrânia, com consequências imprevisíveis, porque isso pode resultar numa intervenção direta da Otan, como aconteceu com a Sérvia. A diferença é que a Rússia tem um arsenal nuclear.

Em termos globais, há outros aspectos a serem considerados: (1) As sanções econômicas adotadas contra a Rússia utilizam com êxito toda a institucionalidade da economia mundial; (2) o Reino Unido pós-Brexit, fora da União Europeia, em aliança com os Estados Unidos, reafirmou sua hegemonia político-militar na Europa; (3) a Alemanha e a França perderam o protagonismo;(4) a guerra da Ucrânia também serve de advertência à China, em relação a Taiwan; (5) o pacto militar entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália e os acordos bilaterais da Austrália com o Japão e a Índia representam a expansão da Otan para o Indo-Pacífico, principal eixo do comercio mundial hegemonizado pela China.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-ucrania-se-tornou-um-novo-vietna/

Luiz Carlos Azedo: Novos amigos de Cabul

As cenas dos afegãos despencando do avião da USAF durante a decolagem no aeroporto de Cabul são piores do que as da retirada dos funcionários da Embaixada dos Estados Unidos em Saigon

Alexander Burnes, agente da Companhia Britânica das Índias, em 1838, recebeu de Lord Auckland, o governador-geral de Calcutá, a missão de negociar com Dost Mohammed, o Emir do Afeganistão, um pacto com o Império Britânico. Ao chegar em Cabul, lá estava o Conde Vitkevitch, representante da Rússia. Era o “Grande Jogo” da Ásia, no qual a Rainha Vitória disputava com o Czar Nicolau I o controle da Eurásia. O pedregoso território afegão, entre o Cáucaso e a Índia, separando o Irã da Turcomênia, era estratégico para as duas potências. No ano seguinte, 16,5 mil ingleses, indianos e dissidentes afegãos da Army of the Hindus tomaram Cabul. Dost Mohammed rendeu-se em novembro de 1840 e foi encarcerado na Índia.

Burnes transformou sua residência oficial num harém, enquanto os demais invasores profanavam os lares afegãos. Em 1841, os humilhados afegãos se revoltaram, invadiram a casa de Burnes e o esquartejaram. Veterano das Guerras Napoleônicas, o general Elphinston negociou com Akbar, o filho de Dost Mohammed, em 2 de janeiro de 1842, a retirada das tropas britânicas, que estavam sitiadas. Ao atravessarem o passo de Khoord-Cabool, a montanha desabou: pedras em avalanches, tiros de jezails (o fuzil de cano longo afegão), flechas e lanças dizimaram as tropas britânicas. Somente restou vivo o Dr. Brydon, o médico, que escapou a cavalo dos altos do Hindu Kush.

Na Terceira Guerra Anglo-Afegã, em 1919, num acordo com os ingleses, o Afeganistão tornou-se um Estado-tampão na fronteira da Índia. A partir de 1926, uma monarquia sobreviveu até 1973, quando o rei Zair foi derrubado pelos republicanos. Em 1978, com apoio de tropas soviéticas, um golpe de Estado implantou um regime socialista, sob forte resistência dos rebeldes mujahedins, armados e financiados pelos EUA. Em 27 de setembro de 1996, as forças talibãs, constituídas de ex-estudantes fundamentalistas, derrubaram o presidente, capturaram Cabul e passaram a controlar grande parte do país, formando um governo de coalizão.

Mas houve o atentado da Al-Qaeda às Torres Gêmeas, os EUA invadiram o Afeganistão e retiraram os talibans do poder. Hamid Karzai foi escolhido presidente por George W. Bush. Nas eleições de 2004, a maioria dos 17 candidatos da oposição alegou fraude e não reconheceu o governo de Karzai, que incluía membros da Aliança do Norte, um grupo político formado pela majoritária etnia Pashtun. Em 2014, Asharaf Ghani foi eleito e empossado presidente do país no lugar do corrupto Karzai, mas seu destino já estava traçado. O governo Trump decidiria retirar as tropas norte-americanas do país. O novo presidente, Joe Biden, manteve a decisão e ordenou a saída até setembro, uma de suas promessas de campanha. Houve o desastre: o Talibã avançou rapidamente, as tropas governistas não resistiram e abandonaram Cabul. Ghani escafedeu-se.

Rota da Seda
A história se repete como tragédia. A Casa Branca nega comparações com a retirada do Vietnã, mas as cenas dos afegãos despencando do avião da USAF durante a decolagem, ontem, são piores do que as da dramática retirada dos funcionários da embaixada norte-americana em Saigon. Essa conta ficou para Biden. Entretanto, no “Grande Jogo” da Eurásia, não é a Rússia que leva vantagem. A China tem 80 quilômetros de fronteira com o Afeganistão e contratos bilionários, que já negocia com o Emirado Islâmico do Afeganistão. Com 38 milhões de pessoas, o país possui reservas de minérios avaliadas entre US$ 1 trilhão e US$ 3 trilhões, incluindo o segundo maior depósito inexplorado de cobre do mundo.

Em julho, o ministro de relações internacionais da China, Wan Yi, recebeu a comissão de assuntos externos do Talibã, liderada por Abdul Ghani Baradar, na cidade chinesa de Tianjim. O resultado parece ter sido positivo para a China. Além de cobre, o Afeganistão tem reservas de ferro estimadas em US$ 420 bilhões e US$ 81 bilhões de nióbio, cruciais para a indústria chinesa. Em troca, Pequim oferece a infraestrutura necessária para o Afeganistão entrar na Nova Rota da Seda, megaprojeto mundial de construção de portos, estradas e ferrovias ligando três continentes: Ásia, África e Europa, bancado pelo governo chinês. O problema será estabilizar o país e moderar o fundamentalismo islâmico talibã.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-novos-amigos-de-cabul

El País: 50 anos depois, agente laranja continua contaminando o solo do Vietnã

Herbicida usado pelos EUA na guerra ainda chega aos humanos a partir de sedimentos de rios e lagos

No Vietnã, o Exército dos EUA travou duas guerras: uma contra o Viet Cong e outra contra a natureza. Nesta, os militares americanos usaram milhões de litros de herbicidas contra a selva onde se escondiam os comunistas e as plantações de arroz que os alimentavam. O herbicida mais usado foi o agente laranja. Uma revisão de diversos estudos mostra que, 50 anos depois que as forças dos EUA pararam de pulverizá-lo, ainda há restos altamente tóxicos desse desfolhante no solo e em sedimentos, de onde entram na cadeia alimentar.

Foi o presidente John Kennedy que, como parte de uma nova estratégia para impedir que o Vietnã do Sul entrasse em colapso sob a pressão dos nacionalistas e comunistas do norte, abriu as portas para a maior guerra química da história. Os primeiros herbicidas chegaram ao Sudeste Asiático em janeiro de 1962, em uma operação que acabaria sendo chamada de projeto Ranch Hand. Usaram diversos compostos químicos, muitos deles desenvolvidos durante a Segunda Guerra Mundial para destruir as colheitas de alemães e japoneses.

Vários relatórios das Academias Nacionais de Ciência dos EUA (NAS) e agências governamentais como a Usaid calculam que na Guerra do Vietnã foram usados mais de 80 bilhões de litros de herbicidas. O mais usado foi o agente laranja, um desfolhante. Os militares não quebraram muito a cabeça para dar um nome a esse composto: ele ia em barris com uma faixa dessa cor para diferenciá-lo do agente branco, do agente púrpura, do agente rosa, do agente verde (contra vegetação de folhas grandes) e do agente azul (usado contra os arrozais).

Cerca de 20% das selvas do país e 10 milhões de hectares de arrozais foram pulverizados pelo menos uma vez com doses 20 vezes maiores que as recomendadas

A lógica militar era a seguinte: já que os comunistas usavam a selva como uma arma a mais contra os EUA, era preciso neutralizá-la. O trabalho publicado recentemente em uma revista especializada em solos mostra que 20% das selvas do Vietnã foram pulverizadas pelo menos uma vez. Mas o arroz e outros produtos agrícolas também foram alvo. Até 40% dos herbicidas foram usados contra as plantações. Embora os militares tentassem diferenciar entre arrozais de amigos e inimigos, 10 milhões de hectares foram pulverizados com agente azul, que acabava com a colheita em horas. O terceiro principal uso dos herbicidas foi acabar com todo o verde que houvesse nos arredores das bases militares americanas, criando assim um perímetro de segurança.

Os efeitos de todos os herbicidas eram temporários e era preciso voltar a aplicá-los depois de algum tempo. Para isso, eram usadas desde mochilas às costas até lanchas para pulverizar as margens. Mas foi uma pequena frota de aviões C-123 Provider e helicópteros adaptados para levantar tanques de 3.800 litros que protagonizou o projeto Ranch Hand, com mais de 19.000 voos entre 1962 e 1971.

O agente laranja era, na verdade, um composto em partes iguais de dois herbicidas, o ácido 2,4-Diclorofenoxiacético (2,4-D) e o ácido 2,4,5- Triclorofenoxiacético (2,4,5-T). São reguladores hormonais do crescimento e em poucos dias, semanas no máximo, param de agir. Mas o que não se sabia na época era que o agente laranja continha uma dioxina altamente tóxica, a TCDD. Para acelerar a produção, a temperatura foi elevada em cerca de cinco graus, e a altas temperaturas o cloro presente no composto gerava entre 6.000 e 10.000 partes por milhão (ppm) de TCDD a mais do que em condições normais. Essa substância cancerígena é hidrofóbica, ou seja, não se dissolve na água. Também não é absorvida, e sim adsorvida. Ficava colada às folhas e estas, ao cair, levavam a dioxina até o solo, e a natureza se encarregava de espalhá-la.

“A dioxina contaminante adere ao carbono orgânico e a partículas argilosas do solo, e processos de erosão movem os sedimentos contaminados até os cursos d’água, rios, lagoas e lagos, onde as condições anaeróbicas protegem a dioxina da degradação microbiana, estendendo sua vida média”, comenta em um e-mail o especialista em solos e coautor do estudo Ken Olson, professor da Universidade de Illinois (EUA).

Exposta à ação do Sol, a TCDD se degrada em menos de três anos. Mas, em solos protegidos pela vegetação, demora até 50 anos para se decompor — e, se estiver em sedimentos fluviais ou marinhos, mais de 100 anos. “Os peixes e camarões que se alimentam no fundo pegam os sedimentos contaminados, e a dioxina se acumula em seus tecidos. Peixes maiores comem esses peixes e depois são comidos pelos vietnamitas”, assinala Olson.

Em um dos relatórios mais recentes analisados por Olson e sua colega, a socióloga rural Lois Wright Morton, da Universidade do Estado de Iowa, os pesquisadores oficiais estudaram o solo da base aérea de Bien Hoa e seus arredores. Era uma das principais bases de onde partiam as missões de lançamento de herbicidas. Nela se acumularam as latas que sobraram quando foi suspenso o projeto Ranch Hand. “Os pesquisadores coletaram 1.300 amostras de solo de 76 pontos diferentes da base, terras próximas e lagos. Dessas, 550 tinham níveis de dioxina acima do regulamento do Ministério de Defesa Nacional do Vietnã para uso da terra", comenta o professor americano.

Trinta anos depois que foram usados no Vietnã, vários aviões ainda tinham a dioxina aderida a eles

O solo de outras 16 bases áreas americanas tanto no Vietnã como na Tailândia está contaminado, e muitos dos vietnamitas e americanos expostos na época desenvolveram doenças. Mas pouco se sabe sobre o impacto do agente laranja fora das bases. Ao lado da de Bien Hoa fica a cidade homônima onde vivem 900.000 pessoas. Até hoje é proibida a pesca em rios e lagos da área.

A persistência da TCDD é tanta que vários dos aviões usados para pulverizar o agente laranja tiveram de ser retirados de um leilão e incinerados porque, 30 anos depois de voltar do Vietnã, ainda tinham a dioxina aderida a eles. O último relatório da NAS sobre os efeitos do agente laranja nos veteranos de guerra, publicado em novembro, acrescentou novas patologias relacionadas com a exposição ao herbicida. Esses relatórios são publicados a cada dois anos por determinação do Congresso dos EUA.

Embora se calcule que ainda existam três milhões de vietnamitas que sofrem os efeitos dos desfolhantes, não há um acompanhamento semelhante ao dos veteranos americanos. Dos poucos estudos internacionais sobre a persistência da TCDD no ambiente, destaca-se um publicado há 10 anos por pesquisadores japoneses e vietnamitas. Nele, o nível de contaminação do solo de uma aldeia pulverizada com agente laranja é comparado com o de aldeias que foram poupadas. No primeiro caso, a presença da dioxina era cinco vezes maior que no segundo caso, embora sua concentração fosse mais baixa do que a registrada na base aérea de Bien Hoa. O estudo também detectou níveis mais altos de dioxina no leite materno, mas não se pode descartar a possibilidade de que isso se deva à exposição mais recente a pesticidas agrícolas.

Olson acredita que seria exagerado e sem base científica considerar que todos os solos pulverizados há 50 anos continuem contaminados hoje. De qualquer forma, só em Bien Hoa há pelo menos 414.000 metros cúbicos de solo que deveriam ser tratados. Para Olson, o método definitivo para acabar com a dioxina seria incinerá-los, queimar a terra.