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RPD || Paulo Baía: O Brasil não respeita o sagrado ventre de um sorriso

Imagem de Marielle Franco vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre o crime, escreve Paulo Baia em seu artigo. “Um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro”

Eu, Marielle Franco, mulher, preta, favelada, eleita vereadora pela cidade do Rio de Janeiro, levei quatro tiros no dia 14 de março de 2018. 

Era a expressão de alegria. Nosso país não suporta uma mulher com um sorriso largo e sincero. Aberto e franco. O Brasil é o país da misoginia. Marielle subverteu não só pelas origens pobre e negra, mas também por seu currículo, seu brilhantismo profissional e acadêmico. Sua subversão maior era o sorriso escancarado. Brasil que estupra mulheres indígenas e pretas. Sou filho e neto de tais mulheres. Desejo suas vozes ouvidas. O Brasil não respeita o ventre de um sorriso. 

Eu, Marielle Franco, fui assassinada no dia 14 de março de 2018, levei três tiros na cabeça e um no pescoço por um carro que me encurralou no Estácio. Como a música de Luiz Melodia: Se alguém que matar-me de amor, que me mate no Estácio, Bem no compasso, bem junto ao passo, Do passista da escola de samba, Do Largo do Estácio, O Estácio acalma o sentido dos erros que faço, Trago, não traço, faço, não caço, O amor da morena maldita domingo no espaço, Fico manso, amanso a dor, Holiday é um dia de paz... Os assassinos dispararam com uma submetralhadora. Queriam me executar para calar as minhas vozes: mulher, preta e favelada. 

Eu já quero ser a segunda voz dela. Quero ser aquele que escuta. Como um velho, menos analista e mais antropólogo. 

Peço permissão à ancestralidade feminina escravizada e violada nesse nosso torrão, a terra como Gaya, para ouvir Marielle. Desejo falar do lugar do feminino. Embora não possa incorporar o lugar de fala exclusivo dela. Desejo reunir forças para poder realizar esta homenagem. Somos seres simbólicos. É deles que marcamos o nosso compasso neste chão árido, seco, desértico e que machuca feito pelas dores de muitas mulheres. A terra é a simbologia mais antiga do feminino. Ela gira em torno do sol. E Marielle foi apagada antes de terminar a sua própria gira carregada de brilho e cheia de potência em defesa das mulheres faveladas. Das pretas. Ela lutava contra a perpetuação de um movimento de opressão cometido há séculos contra os pretos desde a colonização - a eterna escravidão que nos assombra cotidianamente.

 Marielle era a terra fértil que ria e celebrava. Poderia uma mulher rir e celebrar? Sacralizar o riso, o corpo e a força do feminino é o meu desejo neste artigo. Tanto já foi dito a respeito de sua morte, sobre os assassinos, quem mandou matar que até hoje, no dia 02 de abril de 2021 (data que o autor escreveu o artigo), ainda não sabemos quem mandou executá-la. Os dias passam. O tempo corre. E a imagem vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre este crime político. 

Eu, Marielle Franco, fui assassinada, os tiros vieram de repente com força e não restou tempo para reação, caí morta, perdi a minha vida em meio à barbárie. 

Permaneço preso ao ensaio antropológico e mágico. Feito um ritual de despedida e com o desejo de que sua morte não tenha sido em vão como tantas outras. O momento mais forte veio com a lavagem do chão cheio de sangue. No local onde a mataram no Estácio. Foi uma limpeza feita com ervas. E tambores. Marielle era a terra fértil que ria e celebrava o direito de vida dado a todos pela constituição de 1988, promulgada após a redemocratização. Nossa miscigenação é o fruto de estupros coletivos e continuados de mulheres indígenas e negras por séculos. É o machismo reprodutor assassinando mulheres vandalizadas e matáveis. Pai perverso e assassino de filhos mestiços pretos, quase pretos. Marielle é o retrato perfeito de séculos de violações aos corpos femininos. 

Eu, Marielle Franco, fui morta de forma brutal sem direito à defesa. Nasci com a marca da exclusão e com a certeza de que deveria permanecer calada, distante do jogo político feito entre homens misóginos e racistas. A política feita para poucos que lutam por seus negócios embolados aos prazeres espúrios. E certamente com muitas garotas de programa em suas festinhas regadas a comida, bebidas, entre outras coisas. 

 Permaneço no meu ritual vivenciando uma eterna despedida de um antropólogo que se despe e veste a roupa do cientista político para dizer que a morte de Marielle foi o fim de um sonho e um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro. 

Eu, Marielle Franco perdi a voz, mas renasço em todas as mulheres pretas, pobres e faveladas que trabalham e enfrentam o cotidiano de opressão. A vida é circular. E a Terra é redonda e gira em torno do sol. 

O ritual de despedida homenageou o sorriso largo de uma mulher potente, vibrante, capaz de no sorrir rodopiar as energias, realizando a gira no meio do chão de terra das favelas cariocas. E é deste sagrado sorriso que o país precisa girar para recuperar a sua força e potência. 

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ. 

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Rio de Janeiro: Vereadora negra e trans denuncia ataques recorrentes de vereador bolsonarista

Benny Briolly (PSOL) relata ser agredida verbalmente por Douglas Gomes (PTC) em todas as sessões da Câmara de Niterói

Roberta Camargo

Negra e transexual, a vereadora Benny Briolly (PSOL) tomou posse em 2021 e nesses poucos meses de mandato tem sido alvo de várias ameaças de morte, racismo e transfobia. Na Câmara de Niterói, município do Rio de Janeiro, o principal autor das violências contra ela é o vereador bolsonarista Douglas Gomes (PTC).

O parlamentar se descreve em sua conta no Twitter como cristão, patriota e conservador. Nas redes sociais, ele compartilha uma série de publicações em apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido). 

O ataque mais recente ocorreu na última semana, quando Benny foi insultada e ameaçada pelo vereador bolsonarista. A parlamentar preside a Comissão de Direitos Humanos e Douglas é vice. 

Em entrevista à Alma Preta, Benny conta que a ausência de outras mulheres trans torna o ambiente [Câmara de Niterói] vulnerável para que a violência verbal e os episódios de transfobia e racismo aconteçam.

"Se referem a mim sempre no masculino e falam do meu corpo de uma maneira muito objetificada. Isso é revoltante. É triste", relembra a vereadora.

As violências contra Benny foram levadas para as redes sociais, onde a base aliada do vereador bolsonarista reiterou as ofensas. Em outra sessão na Câmara em 25 de março, Douglas tentou diversas vezes interromper Benny, tirar a concentração dela mostrando uma tela de celular próximo do seu rosto e quando teve a palavra fez chacotas, desrespeitou a orientação sexual dela e falou diversos palavrões.

Leia também: Ele prega minha morte e vende meu extermínio, diz vereadora após tentativa de agressão

Segundo a parlamentar, mesmo se tratando de um ambiente que reforça alguns tipos de violência, a Câmara de Niterói também é o espaço onde ela encontra apoio. "Tem chegado muita solidariedade de tudo quanto é canto, o que tem me ajudado muito a enfrentar tudo isso é saber, que não estou sozinha", conta a parlamentar.

Os episódios de violência verbal, racismo e transfobia praticados pelo vereador bolsonarista foram encaminhados para as autoridades através da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI).

"É importante que o vereador responda pelas violências que comete, não é apenas sobre mim, mas sobre uma violência estrutural que faz com que o Brasil seja o país que mais mata travestis e transsexuais", avalia Benny.

A Alma Preta procurou o vereador Douglas Gomes para saber o posicionamento do parlamentar sobre as denúncias feitas por Benny Briolly. Até a publicação desta reportagem, o vereador não se posicionou. Caso ele responda, esse texto será atualizado.

Atuação na Câmara de Niterói

 O mandato de Benny Briolly atua de forma muito próxima aos movimentos sociais, mantendo o diálogo com líderes e movimentos da favela, além de trabalhadores ambulantes que trabalham para aplicativos, movimento negro e a comunidade LGBTQIA+. "Escutamos nosso povo atentamente e transformamos as demandas em projetos de lei", descreve a vereadora.

O diálogo com a população negra e periférica já teve como resultado o projeto de lei que pleiteia a inserção de trabalhadoras domésticas nos grupos prioritários no Plano Nacional de Imunização (PNI) contra a Covid-19. O projeto da Câmara de Niterói é similar ao projeto de lei 1011/20, apresentado no dia 7 de abril pela deputada federal Benedita da Silva (PT) na Câmara dos Deputados.

O mandato de Benny também atua na aprovação de projetos para garantir o direito ao nome social para crianças e adolescentes trans e fornecimento de absorventes e itens de higiêne básicos em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e escolas públicas.

"Nossas ações tem uma força ancestral, movem estruturas de poder e nós não vamos recuar", conclui a parlamentar.


Mauricio Huertas: A política vive dias sombrios. Triste Brasil

A execução a tiros da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro tão tristemente marcado pelo crime organizado, por mortos, milícias e balas perdidas, por governantes-assaltantes dos cofres públicos, pelo prédio vazado da Petrobras que acabou por se tornar símbolo involuntário dos rombos da corrupção, é o incessante cair num poço sem fundo em que desabou a política brasileira. Aonde vamos parar?

Às vésperas do Congresso Nacional do PPS, encontro partidário dessa legenda que busca sinceramente se manter moderna e respeitada, originária do velho, histórico e emblemático Partidão (da época em que se declarar de esquerda era revolucionário e motivo de orgulho), estamos vivenciando essa escuridão moral, esse apagão de esperança por dias melhores diante de acontecimentos tão horripilantes do cotidiano nacional, da vergonha na cara de quem ainda tem um pingo de caráter e honradez.

Que país é esse em que o noticiário da política e da polícia se misturam na mesma página? Em que os juízes da corte suprema são políticos e em que os políticos em sua maioria não tem nenhum juízo? Em que o humor da população é medido por patos e sapos de entidade patronal que reúne a elite liberal tupiniquim mas é ironicamente a maior beneficiária de recursos estatais? Em que o grande partido de esquerda da história recente trocou seus heroicos presos políticos por políticos presos comuns? Em que os verdadeiros democratas – que lutaram contra a ditadura militar – precisam apoiar uma intervenção federal comandada por generais para garantir um mínimo de ordem civil?

Como chegamos a esse ponto caótico depois de anunciadas novas e velhas repúblicas, de antigos e atuais movimentos sociais, de golpes e pseudo-golpes, do impeachment de dois presidentes, de ondas ora conservadoras, ora progressistas, mas que poderiam ter nos conduzido tranquilamente a um porto seguro, à estabilidade ao invés da tormenta? Por que vivemos em eterna transição?

As eleições de 2018, para onde vão levar o Brasil? De um lado e do outro, dois extremistas caricatos: um boçal da direita reacionária, parlamentar inexpressivo e até então inofensivo, contra um invasor profissional da propriedade alheia, neófito na política mas insuflado pela esquerdalha festiva órfã do seu mito que virou mico. Ao centro, de onde seria desejável e salutar despontar uma liderança para vencer a eleição e governar com equilíbrio, por enquanto vemos apenas uma enxurrada de candidatos medianos e limitados, seja por características pessoais ou por tibieza partidária.

É diante deste quadro deprimente que aumenta a nossa responsabilidade cidadã: como despertar a sociedade para a necessária (re)ação cívica? Como fazer com que gente de bem compreenda a urgência de dedicar parte do seu tempo e conhecimento para mergulhar nos problemas e buscar soluções eficazes e inteligentes para o país? Como eleger pessoas idôneas e bem intencionadas que se dediquem a construir uma nova agenda de políticas públicas? Como reunir homens e mulheres vocacionados para ‘servir’ à política – ‘ser útil’, ‘ajudar’, ‘zelar pelo bem-estar’ – contra os maus políticos que hoje se servem da política?

Muitas perguntas, poucas respostas. Quem aponta um caminho que não faça o Brasil adernar?

* Mauricio Huertas, jornalista, é secretário de Comunicação do PPS/SP, diretor executivo da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), líder RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), editor do Blog do PPS e apresentador do #ProgramaDiferente