Venezuela

Cristina Serra: Itamaraty acovardado

Governo adotou postura indigna e covarde de submissão aos senhores da guerra

O secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, usou o território brasileiro para bater os tambores da guerra, hostilizar a Venezuela e desfilar sobre o tapete vermelho da sabujice estendido pelo governo Bolsonaro.

A cruzada persistente de Trump contra nosso vizinho ecoa a de Bush filho contra o Iraque, que resultou na invasão do país, em 2003, em nome das armas de destruição em massa de Saddam Hussein, nunca encontradas. Coincidência que os dois países tenham imensas reservas de petróleo? Curiosa é a preocupação democrática seletiva dos EUA, aliados inabaláveis da Arábia Saudita, um dos regimes mais repressivos do mundo.

Felizmente, a presença de Pompeo aqui, em plena campanha de reeleição de Trump, foi contestada por lideranças das mais variadas filiações políticas e matizes ideológicos.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a considerou uma "afronta". Seis ex-chanceleres, que serviram aos governos Collor, Itamar, FHC, Lula e Temer, lembraram que a Constituição brasileira preconiza a independência nacional, a autodeterminação dos povos, a não intervenção e a defesa da paz.

A Venezuela de Nicolás Maduro está enredada em um labirinto, com uma democracia degradada, instituições em colapso, graves violações aos direitos dos cidadãos e uma crise econômica agravada pelas sanções norte-americanas, conforme registrado seguidamente pela alta-comissária do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Michele Bachelet. Até o fim deste ano, estima-se o êxodo de até seis milhões de venezuelanos. Uma tragédia humanitária sem precedentes na América Latina.

É imperativo encontrar mecanismos de mediação entre governo e oposição para uma plena restauração democrática no país fronteiriço. A diplomacia brasileira tem história e reputação internacional na construção da paz. Mas, sob Bolsonaro, preferiu adotar a postura indigna e covarde de submissão aos senhores da guerra.


José Casado: Planos para uma guerra

É novidade a sincronia entre Brasília e Washington no planejamento do cerco militar ao regime de Caracas

Na sexta-feira, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, acabou enredado num roteiro quase cômico. Saiu de Washington, parou em Boa Vista, xingou o ditador vizinho Nicolás Maduro, desafiando-o a sair no braço, voltou ao avião e foi embora. Teve como coadjuvante o chanceler Ernesto Araújo, burlesco cruzado do obscurantismo bolsonarista, para quem um agente “comunista-globalista” é o responsável pela morte de mais de 137 mil brasileiros — o “comunavírus”.

Da visita de Pompeo, ex-chefe da CIA, restou o eco da investida contra o líder da cleptocracia venezuelana, qualificado como narcotraficante. Nada de novo, tudo verdade.

Inovador foi o aval do governo Jair Bolsonaro a um diplomata estrangeiro para usar o território brasileiro num ataque a governo vizinho. Esse delito constitucional foi flagrado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Desde a redemocratização, interferências indevidas na política dos vizinhos eram feitas no exterior. Lula, por exemplo, fez comícios na Venezuela pela reeleição do ditador Hugo Chávez e mobilizou a marquetagem do PT para ajudar a eleger o sucessor Maduro, enquanto a Odebrecht pagava as contas.

Outra novidade foi a sincronia entre Brasília e Washington no planejamento do cerco militar ao regime de Caracas. Mobilizaram-se três mil soldados brasileiros, satélites e baterias de foguetes, levadas por 4,6 mil km, numa simulação de guerra convencional na fronteira Norte.

A “Operação Amazônia” acaba amanhã. Foi desenhada junto com a “Poseidon” no Caribe, conduzida pelo Comando Sul dos EUA com tropas colombianas. O cerco a Maduro incluiu Guiana e Suriname, que disputam limites no Atlântico com a Venezuela para exploração de petróleo. Pompeo visitou-os e saiu com acordos de livre trânsito para os aviões do Pentágono.

Ontem, em Brasília, parlamentares preparavam “moção de censura” ao secretário americano pela cena insólita em Boa Vista. Alvo errado. Foi Bolsonaro e o seu chanceler que jogaram o Brasil num plano de guerra contra a Venezuela, e com explícito desprezo ao Congresso.


Luiz Carlos Azedo: Senhor da guerra

Mike Pompeo, o secretário de Estado norte-americano não deixou dúvida de que sua visita teve como objetivo trabalhar pela derrubada do presidente da Venezuela, Nicolas Maduro

A inusitada visita do secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, a um campo de acolhimento de venezuelanos refugiados em Boa Vista (RR) foi uma evidente provocação política, cujo objetivo é escalar as tensões entre a Venezuela e seus vizinhos. E, com isso, dar uma mãozinha para a campanha eleitoral do presidente Donald Trump, que está perdendo a reeleição para o candidato do Partido Democrata, Joe Biden. O Brasil armou o circo porque interessa ao presidente Jair Bolsonaro a vitória de seu amigo republicano. A eleição de um democrata provocaria o colapso da política externa desenvolvida pelo chanceler Ernesto Araújo, considerada um desastre por seus colegas mais experientes do Itamaraty.

O que o Brasil ganhará em troca? Em princípio, 30 moedas, ou seja, US$ 30 milhões para auxiliar a assistência social aos imigrantes. Não chega nem perto do que estamos perdendo em investimentos em razão da política ambiental de Bolsonaro, embora o presidente da República diga que é a melhor do mundo. Só no Fundo da Amazônia, Noruega e Alemanha, que suspenderam seus investimentos, foram responsáveis por 99% dos R$ 3,3 bilhões destinados à proteção da Amazônia. Voltemos à visita de Pompeo. O secretário de Estado norte-americano não deixou dúvida de que sua visita teve como objetivo trabalhar pela derrubada do presidente Nicolas Maduro. Todo presidente dos Estados Unidos que está perdendo as eleições gosta de exibir seus músculos na política externa.

Do Brasil, Pompeo viajou para a Colômbia, cuja fronteira com a Venezuela é o ponto mais quente das tensões na América do Sul. O presidente Ivan Duque é outro aliado incondicional de Trump, que mantém assessores e aviões norte-americanos em território colombiano. Antes, Pompeu havia estado no Suriname e na Guiana, que também vive um estresse com a Venezuela, com o agravante de que sua fronteira nunca foi reconhecida pelos venezuelanos. Na Guiana, Pompeo voltou a criticar Maduro: “Sabemos que o regime de Maduro dizimou o povo da Venezuela e que o próprio Maduro é um traficante de drogas acusado. Isso significa que ele tem que partir”, afirmou. Para a situação política no país vizinho, a provocação só teria consequência prática se houvesse uma intervenção. Afora isso, fortalece a unidade das Forças Armadas venezuelanas e endossa a narrativa de Maduro para reprimir a oposição.

Operação Amazônia
Entretanto, vejam bem, a declaração que Pompeo deu em Boa Vista (RO) foi enigmática quanto ao que os Estados Unidos pretendem realmente fazer. Questionado sobre quando o ditador Nicolás Maduro deixará o poder, respondeu que em casos como a Alemanha Oriental, Romênia e União Soviética, todo mundo fazia a mesma pergunta. “Quando esse dia vai chegar? Ninguém imaginava, mas aconteceu”. Pompeo é ex-diretor da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos, que se especializou em fomentar conflitos entre países vizinhos e guerras civis.

Republicano, Pompeo é um político reacionário do Kansas, que se destacou no Congresso norte-americano por combater o movimento LGBTQIA+. Também foi um dos proponentes de um projeto de lei que proibiria o financiamento federal de qualquer grupo que realizasse abortos, e outro que incluiria nascituros entre os categorizados como “cidadãos” pela 14ª Emenda. Ele também votou a favor da proibição de informações sobre o aborto em centros de saúde escolares e pela proibição de financiamento federal à Planned Parenthood e ao Fundo de População das Nações Unidas.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em razão das declarações de Pompeo, emitiu uma nota com duras críticas à visita do secretário de Estado. Deve saber de mais coisas sobre a conversa entre secretário norte-americano e o chanceler brasileiro. A visita também coincide com a mobilização de tropas, equipamentos e armamentos para a Operação Amazônia, que faz parte do Programa de Adestramento Avançado de Grande Comando (PAA G Cmdo), envolvendo mais de 3.000 militares, de cinco comandos diferentes. A operação será realizada nas proximidades de Manaus, até 23 de dezembro, portanto, bem longe da fronteira com a Venezuela.

O Ministério da Defesa e os comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica nunca foram favoráveis à escalada de tensões com a Venezuela, embora tenhamos mais homens, tanques, embarcações e aviões do que o país vizinho. As vantagens venezuelanas são os 24 caças SU-30, os helicópteros Mi-17, os tanques T-92 e os mísseis S-300, capazes de atingir com precisão alvos a 250km, todos de fabricação russa e entre os melhores do mundo. Mas, o grande trunfo de Maduro é o apoio ostensivo do presidente Vladimir Putin, da Rússia, que adora jogar uma boia para ditadores que estão se afogando, e a discreta, mas robusta, ajuda econômica da China. Na proposta de atualização da Política Nacional de Defesa, enviada pelo governo ao Congresso, pela primeira vez, desde a Guerra Malvinas, o Brasil admite a possibilidade de um confronto militar com um país vizinho.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-senhor-da-guerra/

Monica Bergamo: Ex-chanceleres apoiam Maia e condenam 'utilização espúria de solo nacional' pelos EUA

FHC encabeça a lista de ex-comandantes do Itamaraty que repudiam visita de secretário de Estado norte-americano a Roraima

Os seis ex-chanceleres brasileiros vivos assinaram uma nota de apoio ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, em que igualmente repudiam a visita do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, às instalações da Operação Acolhida, em Roraima, na fronteira com a Venezuela.

"Condenamos a utilização espúria do solo nacional por um país estrangeiro como plataforma de provocação e hostilização a uma nação vizinha", afirmam os ex-chanceleres na nota, afirmando que Rodrigo Maia foi "intérprete dos sentimentos do povo brasileiro".

Na sexta (18), Maia afirmou que a ida de Mike Pompeo, às instalações da Operação Acolhida, que recebe venezuelanos que migraram para o Brasil, é uma "afronta às tradições de autonomia e altivez" da política externa brasileira.

Em nota, o presidente da Câmara disse que a visita, a apenas 46 dias das eleições nos Estados Unidos, "não condiz com a boa prática diplomática" e internacional. Pompeo é secretário de estado de Donald Trump, que busca o segundo mandato como presidente dos EUA.

Em resposta, o chanceler brasileiro Ernesto Araújo disse que Maia se baseia em "informações equivocada" e que não é possível ignorar o "sofrimento do povo venezuelano".

A nota de apoio a Maia é assinada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi chanceler no governo de Itamar Franco entre outubro de 1992 e maio de 1993, e pelos ex-chanceleres Francisco Rezek [governo Collor], Celso Lafer [governos Collor e FHC], Celso Amorim [governos Itamar Franco e Lula], José Serra e Aloysio Nunes Ferreira [governo Temer].

Endossam ainda o documento o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, que é diplomata e foi embaixador em Washington, e Hussein Kallout, ex-secretário de Assuntos Estratégicos no governo de Michel Temer.

No texto, eles dizem ainda que, "de igual forma que presidente da Câmara dos Deputados", reafirmam que a Constituição estabelece os princípios pelos quais o Brasil deve guiar suas relações internacionais: independência nacional, autodetermianção dos povos, não-intervenção e defesa da paz.

"Conforme salientado na nota do presidente da Câmara, temos a obrigação de zelar pela estabilidade das fronteiras e o convívio pacífico e respeitoso com os vizinhos, pilares da soberania e da defesa", diz ainda o texto.

Leia, abaixo, a íntegra da nota

Responsáveis pelas relações internacionais do Brasil em todos os governos democráticos desde o fim da ditadura militar, os signatários se congratulam com o Deputado Rodrigo Maia, Presidente da Câmara dos Deputados, pela Nota de 18 de setembro, pela qual repudia a visita do Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, a instalações da Operação Acolhida, em Roraima, junto à fronteira com a Venezuela.

Na qualidade de Presidente do órgão supremo da vontade popular, o Deputado Rodrigo Maia foi o intérprete dos sentimentos do povo brasileiro ao constatar que tal visita, “no momento em que faltam apenas 46 dias para a eleição presidencial norte-americana, não condiz com a boa prática diplomática internacional e afronta as tradições de autonomia e altivez de nossas políticas externa e de defesa”.

De igual forma que o Presidente da Câmara dos Deputados, os signatários se sentem no dever de reafirmar o disposto no Artigo 4º da Constituição Federal, em especial os seguintes princípios pelos quais o Brasil deve guiar suas relações internacionais: (I) Independência nacional; (III) Autodeterminação dos povos; (IV) Não-intervenção e (V) Defesa da Paz.

Conforme salientado na Nota do Presidente da Câmara, temos a obrigação de zelar pela estabilidade das fronteiras e o convívio pacífico e respeitoso com os vizinhos, pilares da soberania e da defesa. Nesse sentido, condenamos a utilização espúria do solo nacional por um país estrangeiro como plataforma de provocação e hostilidade a uma nação vizinha.

Lembramos que representantes eleitos do povo de Roraima como o Senador Telmário Mota vêm repetidamente chamando a atenção para os prejuízos de toda a ordem causados às populações fronteiriças brasileiras por ações extremas do Itamaraty em relação à Venezuela, algumas das quais objetos de suspensão pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal.

Finalmente, fazemos votos para que, dando sequência à Nota do Presidente Rodrigo Maia, as duas Casas do Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, guardiões da Constituição de 1988, exerçam com plenitude as atribuições constitucionais de velar para que a política internacional do Brasil obedeça rigorosamente no espírito e na letra aos princípios estatuídos no Artigo 4º da Constituição Federal.


Ricardo Noblat: Na Venezuela e no México, como no Brasil

Qualquer semelhança não é mera coincidência

Na Venezuela, o chavismo contaminou a imagem de isenção dos militares como o bolsonarismo tenta fazer por aqui. No México, eleito depois de prometer moralizar a vida pública, o presidente Andrés López Obrador, um político de esquerda, está às voltas com denúncias que o embaraçam e à sua família. Lembra algo?

Vídeos divulgados na última quinta-feira mostram um dos irmãos de Obrador, Pío Lopes, recebendo dinheiro de David León, diretor da nova distribuidora estatal de medicamentos. As imagens são de 2015. Os pagamentos já eram feitos há um ano e meio. Foram cerca de dois milhões de pesos, o equivalente a 500 mil reais.

Em um dos vídeos, León, que na época trabalhava como consultor, vai à casa de Pío López para lhe entregar um milhão de pesos (250 mil reais). E pede que informe ao seu irmão sobre a origem do dinheiro: “Avise o advogado […] que nós o estamos apoiando”. Pío responde: “Irmão, irmão. Já sabe, já sabe perfeitamente bem”.

López Obrador afastou David León: “Vamos procurar outra pessoa enquanto isso é esclarecido e ele fica limpo.” E disse que não sabe se o dinheiro foi declarado à Justiça, algo obrigatório. Esquivou-se: “Só sei que muitas pessoas contribuíram com recursos para a campanha.” No México, caixa 2 também é crime.

A divulgação dos vídeos ocorre em meio ao chamado Caso Lozoya. Uma gravação mostra um grupo de políticos recebendo subornos e a denúncia do ex-diretor da Pemex (a Petrobras mexicana) Emilio Lozoya que implica três ex-presidentes da empresa e 14 outros políticos em episódios de corrupção.

Foi López Obrador quem bancou a divulgação do Caso Lozoya para “purificar a vida pública”. Serviu para que comparasse os valores envolvidos nas duas situações: o equivalente a 90 mil dólares, entregues ao seu irmão, e o equivalente a 200 milhões de dólares, que ele tratou como “corrupção do dinheiro público”.

No mesmo dia em que o presidente mexicano tentava se apartar de mais um escândalo que abala seu governo, no Brasil a defesa do senador Flávio Bolsonaro recorreu da decisão da Justiça que autorizou o prosseguimento das investigações sobre seu eventual envolvimento no crime de lavagem de dinheiro.

O novo procurador-geral da Justiça do Rio será escolhido em dezembro próximo. Comandará o órgão que investiga Flávio e também seu irmão Carlos, vereador. Ameaçado de impeachment, o governador Wilson Witzel admite negociar a indicação de um nome ao gosto de Flávio, desde que não perca o cargo.

Flávio parece preferir negociar a indicação com Cláudio Castro, o vice de Witzel, e que assumirá a vaga se o governador for derrubado. Nada disso seria necessário se o próprio Flávio tivesse convencido da sua e da inocência do irmão. Não é verdade?


Luiz Sérgio Henriques: A Venezuela como questão de método

Com seus remédios salvadores, hipóteses ‘revolucionárias’ arruínam sociedades

A palavra “venezualização” passou a fazer parte do vocabulário político, por motivos óbvios. E como é próprio de palavras que nascem em contexto de ódio, divisão e radicalismo, trouxe consigo uma atemorizante carga negativa. Segundo próceres da direita, ou, mais propriamente, da extrema direita, a começar por Donald Trump, processos degenerativos como os que aquele termo implica decorrem inevitavelmente de qualquer experimento ou política associados, ainda que remotamente, ao “socialismo” e à “esquerda”.

Bem verdade que não há modos suaves para qualificar a tragédia venezuelana. Houve quem, no campo progressista, desconfiasse desde o princípio - e claramente a ela se opusesse - da aventura do comandante Hugo Chávez, mas é forçoso reconhecer que boa parte da esquerda brasileira e latino-americana não viu motivos para se distanciar de um militar ultranacionalista que prometia refundar ou regenerar o país, explorando a crise da democracia liberal e a debilidade da estrutura econômica, incapazes ambas - aquela democracia e aquela economia - de se abrir para uma participação maior dos venezuelanos. Com aguçado faro para a demagogia, Chávez relançou, pela primeira vez no século, menos a ideia do que o slogan do socialismo, o que bastou para que muitos deixassem num canto, sem uso, as armas da crítica e aceitassem como verossímeis as bravatas do caudilho.

O chavismo e o madurismo, para também mencionar o precário sucessor, constituem também, e sobretudo, um método. Como tal, o processo de venezualização não está restrito a uma desafortunada nação latino-americana, sangrada ainda por cima pela fuga de parte expressiva da população, não só dos setores mais ricos. E também não se restringe aos episódios massivos de tortura, violência policial e miliciana, que ninguém mais pode desconhecer - quando menos desde a publicação, em meados de 2019, do relatório da ONU sobre sistemáticas violações de direitos humanos organizado sob a direção de Michelle Bachelet, egressa das fileiras do socialismo chileno e vítima, ela própria, da ditadura no seu país.

Se nos limitássemos a esse tipo de constatação, diríamos que Chávez e depois Maduro seriam “somente” a versão populista de esquerda de um ditador infame como Pinochet. No entanto, o método que passaram a simbolizar tem que ver com algo ainda mais grave, a saber, o esvaziamento obstinado e contínuo das formas da democracia, rumo a um regime autocrático supostamente legitimado por expedientes plebiscitários e pela ligação direta entre o povo e seu líder. Um e outro se identificam a ponto de tornar tendencialmente impossível o papel da oposição e a alternância regular de poder. Opor-se ao líder, que encarna sem restos a pátria e as virtudes cívicas (quando não as religiosas!), é trair o povo, agindo como quinta-coluna de inconfessáveis interesses. E é nesse ponto que governantes extremistas se dão as mãos: nenhuma diferença essencial entre todos os que, a exemplo do presidente Jair Bolsonaro, prometem “varrer” os opositores, tratando-os ora como agentes do império norte-americano, ora como emissários do comunismo apátrida.

Foram incontáveis as vezes que Chávez ou Maduro denunciaram as tentativas de “magnicídio”, as tramas mirabolantes extraordinariamente próximas das fake news hoje “cientificamente” propagadas pela extrema direita no poder. Numa circunstância infeliz em que alguns dirigentes da “maré rosa” latino-americana se viram acometidos de câncer, Chávez aventou, com fingida seriedade ou autêntica paranoia, a hipótese de um vírus preparado nos laboratórios da CIA para assassinar os líderes e frear a marcha de redenção dos povos. Donald Trump foi um dos corifeus do movimento birther, que negava, com deslealdade a toda prova, o nascimento de Barack Obama em solo americano. E move-se com tanta maestria na “arte” da manipulação que, segundo afirmou certa vez, ainda que atirasse em alguém numa avenida nova-iorquina, nem por isso perderia um só voto. A tanto, sem dúvida, chega a cegueira deliberada.

A “venezualização” não é um risco associado unicamente ao populismo de esquerda. A “maré rosa” da primeira década do século tinha como área mais radical os regimes ditos bolivarianos, com a tática, num primeiro momento aparentemente invencível, de concentrar o poder em torno do Executivo, desautorizar os Parlamentos regularmente constituídos e destruir os delicados equilíbrios entre as instituições de Estado e entre este último e a sociedade civil. Contudo a régua e o compasso desse projeto infaustamente “revolucionário” se transferiram recentemente para outras mãos não menos ameaçadoras. E a ameaça presente - da parte da extrema direita liberticida - só faz confirmar que hipóteses “revolucionárias” de qualquer natureza, com seus remédios salvadores, costumam arruinar sociedades inteiras ou, no mínimo, encerrá-las em estéreis e prolongados conflitos e convulsões. Apesar do que somos e do que aspiramos a ser como povo e como nação, não podemos mais dizer que estamos alheios a esse tipo de atribulação.

* Tradutor e ensaísta, um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil, é autor de ‘Reformismo de esquerda e democracia política’ (Fundação Astrojildo Pereira)


El País: Asilo a soldados venezuelanos renova tensões entre governos de Bolsonaro e Maduro

Militares suspeitos de ataque a base do Exército cruzaram a fronteira desarmados e pediram refúgio, segundo o Executivo brasileiro

A recente entrada no Brasil de cinco soldados venezuelanos suspeitos de um ataque a uma base militar no sul da Venezuela, no dia 22 de dezembro, renovou as tensões bilaterais. Nos últimos meses, centenas de militares abandonaram suas unidades e atravessaram a fronteira dos países vizinhos, sobretudo a Colômbia, em resposta a um chamado de Juan Guaidó, reconhecido por mais de 50 países como presidente da Venezuela. Desta vez, o impacto é diferente, já que Nicolás Maduro os vinculou diretamente ao ataque a um posto avançado no sul do país em que morreu um militar e foram roubados fuzis e lançadores de foguetes, dos quais a maioria foi recuperada, segundo Maduro.

No fim de semana passado, Maduro pediu que o Brasil entregue os cinco militares. A Venezuela culpou pelo ataque a Colômbia, o Peru e o Brasil, que, embora sejam todos governados por opositores do chavismo, negaram com veemência participação no ataque. Em um discurso diante de militares, Maduro se referiu ao caso e revelou que os soldados venezuelanos foram perseguidos até o limite entre os dois países. "Nosso Exército chegou à fronteira e viu os atacantes terroristas do outro lado. Tínhamos um dilema: entrar, capturá-los e trazê-los para cá ou respeitar a fronteira e a soberania do Brasil. Tomamos a decisão correta, de acordo com o direito internacional. O território brasileiro é sagrado”, disse ele, segundo relato da agência France Presse. Mas Maduro pediu sua entrega porque "um desertor que entra em outro país deve ser devolvido imediatamente".

Os cinco militares foram localizados pelo Exército Brasileiro no dia 26, durante uma patrulha em torno do único posto de fronteira entre os dois países nos mais de 2.000 quilômetros de fronteira comum. As autoridades brasileiras informaram que eles estavam desarmados e que, após serem interrogadas na fronteira, iniciaram os trâmites para o pedido de asilo, de acordo com um comunicado conjunto dos Ministérios das Relações Exteriores e da Defesa. A nota ministerial não fez nenhuma referência ao ataque letal à base venezuelana, mas uma fonte militar brasileira reconheceu em declarações à Reuters que os recém-chegados eram suspeitos de terem participado do ataque.

O Governo venezuelano também fez um apelo ao presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, pela cooperação antiterrorismo e o respeito à legislação internacional: “A Venezuela espera ter uma maior colaboração das autoridades do Brasil, como resultado da cooperação que deve prevalecer entre os Estados na luta contra o terrorismo e as ameaças à paz social”, diz uma nota do Ministério das Relações Exteriores da Venezuela.

O ataque de 22 de dezembro a uma instalação militar em Gran Sabana, uma área remota da Amazônia, no sul da Venezuela, perto do posto fronteiriço de Pacaraima, causou a morte de um soldado. Os agressores também roubaram 120 espingardas e nove lançadores de foguetes, dos quais 111 espingardas e oito lançadores foram recuperados.

O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer Guaidó como presidente e é um dos mais ativos na demanda de que Maduro abandone o poder para que se resolva a grave crise econômica, política e social em que a Venezuela está imersa. No entanto, o país se distanciou dos que ventilaram a possibilidade de intervenção armada. Em paralelo, mantém uma operação na área de fronteira para acolher civis e militares que estão fugindo da situação catastrófica e recentemente deu asilo a 21.000 venezuelanos em um único dia. Um gesto elogiado pela ONU em um momento em que países como Colômbia ou Peru, que receberam um número muitíssimo maior de venezuelanos que o Brasil, endurecem as condições para que se estabeleçam em seu território.


Bruno Boghossian: Travada, crise na Venezuela vira outdoor para políticos de direita

Governos mostram descrença sobre Guaidó, mas usam Maduro para criticar socialismo

Os países do consórcio diplomático que tenta pôr fim ao regime de Nicolás Maduro estão paralisados. Enquanto a crise política permanece sem solução à vista, alguns governantes só parecem preocupados em usar a Venezuela como outdoor em suas campanhas sobre os perigos do socialismo.

Presidentes que querem fustigar adversários de esquerda continuam dando atenção a Maduro. O pronunciamento de Donald Trump na ONU citou o caso venezuelano para dizer que o socialismo é um "destruidor de nações". Jair Bolsonaro prometeu lutar para que outros países "não experimentem esse nefasto regime".

Ficou por aí. Em 48 horas, três reuniões sobre o assunto em Nova York produziram somente um par de notas amenas e uma resolução com poucos avanços objetivos.

A boa notícia é que as discussões sobre uma ação militar estrangeira sumiram do mapa. Não se falou sobre isso nem quando Trump, que já disse que "todas as opções estão sobre a mesa", apareceu como convidado numa reunião do Grupo de Lima.

O lado ruim é que muitos países reconhecem, com franqueza crescente, que os canais de negociação com Maduro continuam obstruídos. Começaram a demonstrar também, nos bastidores, uma descrença cada vez maior com a capacidade de liderança do opositor Juan Guaidó.

Um integrante do primeiro escalão do governo Bolsonaro que estava na comitiva brasileira em Nova York tratava o presidente autoproclamado da Venezuela como um caso quase perdido. Afirmou, sob reserva, que agora torcia para que as tensões internas não voltassem a subir, provocando uma guerra civil.

O Brasil ainda tenta encontrar uma saída, mas o comportamento de Bolsonaro mostra que, por ora, seu governo está bem contente em tirar proveito político da crise. O presidente falou da Venezuela na ONU e evocou o fantasma do socialismo, mas seu chanceler faltou a uma reunião do Grupo de Lima. Ernesto Araújo preferiu assistir a um discurso de Trump sobre religião.


Mario Vargas Llosa: O retorno à barbárie

Vários países da América Latina correm risco de retrocesso, como visto na Venezuela

O segundo homem forte da Venezuela, Diosdado Cabello, enfurecido porque, em razão da inflação vertiginosa que assola sua terra natal, o bolívar desapareceu de circulação e os venezuelanos só compram e vendem em dólares, pediu aos seus compatriotas que recorram ao “escambo” para banir a moeda imperialista do país de uma vez por todas.

É certo que os infelizes venezuelanos não darão a menor atenção ao pedido, porque a dolarização do comércio não é um ato livre ou uma escolha livre, como o líder chavista acredita, mas sim a única maneira pela qual os venezuelanos podem conhecer o valor real das coisas em um país onde a moeda nacional é desvalorizada a todo momento pela pavorosa inflação – a mais alta do mundo –, que levou a Venezuela e seus irresponsáveis dirigentes a multiplicar os gastos públicos e imprimir moedas sem respaldo.

A alusão de Cabello ao escambo é uma clara indicação do retorno à barbárie na qual vive a Venezuela, pois, em um ato de cegueira coletiva, o povo venezuelano levou o comandante Chávez ao poder.

O escambo é a forma mais primitiva de comércio, os intercâmbios que nossos antepassados remotos fizeram e que alguns pensadores, como Hayek, consideram o primeiro passo dado pelos homens das cavernas em direção à civilização.

Naturalmente, comercializar é muito mais civilizado do que brigar com bordoadas, como as tribos fizeram até então, mas suspeito que o ato decisivo para a civilização do ser humano tenha ocorrido antes do comércio, na época em que nossos ancestrais se reuniam na caverna primitiva, ao redor de uma fogueira, para contar histórias.

Essas fantasias lhes serviam como desagravo do horror em que viviam, com medo das feras, dos relâmpagos e dos piores predadores, das outras tribos. A ficção lhes dava a ilusão e o apetite de uma vida melhor do que aquela que viviam e, a partir daí, talvez tenha surgido o primeiro impulso ao progresso que, séculos mais tarde, nos levaria às estrelas.

Nesse longo percurso, o comércio desempenhou um papel principal e grande parte do progresso humano se deve a ele. Mas é um grande erro acreditar que sair da barbárie e alcançar a civilização é um processo fatídico e inevitável.

A melhor demonstração de que os povos podem também retroceder da civilização para a barbárie é o que acontece exatamente na Venezuela. É, potencialmente, um dos países mais ricos do mundo.

Quando eu era criança, milhões de pessoas iam para lá procurar trabalho, fazer negócios e buscar oportunidades. Era também um país que parecia ter abandonado as ditaduras militares, a grande praga da América Latina na época.

É verdade que a democracia venezuelana era imperfeita (todas o são), mas, apesar disso, o país prosperava em um ritmo sustentado. A demagogia, o populismo e o socialismo, parentes muito próximos, o fizeram recuar para uma forma de barbárie que não tem antecedentes na história da América Latina – e talvez no mundo. O que aconteceu na Venezuela com o “socialismo do século 21” é um dos piores cataclismos da história.

E não me refiro apenas aos mais de 4 milhões de venezuelanos que fugiram do país para não morrer de fome; também aos grandes roubos com os quais a suposta revolução enriqueceu um punhado de líderes militares, além de Chávez, cujas gigantescas fortunas escaparam e agora se refugiam nos países capitalistas contra os quais Maduro, Cabello e companhia clamam diariamente.

As últimas notícias publicadas na Europa sobre a Venezuela mostram que a barbárie do país segue num ritmo frenético. As organizações de direitos humanos dizem que há 501 presos políticos reconhecidos pelo regime e, apesar disso, eles são isolados e submetidos a torturas sistemáticas.

As organizações de repressão crescem com a falta de popularidade do regime. Esses grupos de repressão se multiplicam e, o último a aparecer opera agora nos bairros marginais, antigas cidadelas do chavismo e, em razão da falta de trabalho e da queda brutal nos padrões de vida, tornam-se seus piores inimigos.

Os espancamentos e os assassinatos são incontáveis e eles querem, acima de tudo, através do terror, sustentar o regime. Na verdade, conseguem aumentar o descontentamento e o ódio contra o governo. Mas não importa. O modelo da Venezuela é Cuba: um país petrificado e sonâmbulo, resignado ao seu destino, que oferece aos turistas praias e sol, e ficou de fora da história.

Infelizmente, não apenas a Venezuela volta à barbárie. A Argentina poderia imitá-la se os argentinos repetissem a loucura furiosa dessas eleições primárias, nas quais repudiaram Macri e deram 15 pontos de vantagem à dupla Fernández e Kirchner.

A explicação desse desvario? A crise econômica que o governo Macri não conseguiu resolver e que duplicou a inflação que assolou a Argentina no período anterior. O que falhou?

Eu acho que o chamado “gradualismo”, o esforço da equipe de Macri de não exigir mais sacrifícios de um povo exausto pelos desmandos do casal Kirchner. Mas não deu certo.

Agora, os sofridos argentinos responsabilizam o atual governo – provavelmente o mais competente e honesto que o país já teve em muito tempo – pelas consequências do populismo frenético que arruinou o único país latino-americano que conseguiu deixar o subdesenvolvimento para trás e, graças a Perón e ao peronismo, retornou a ele com entusiasmo determinado.

A barbárie também se apoderou da Nicarágua, onde o comandante Ortega e sua mulher, depois de massacrarem uma corajosa oposição popular, voltaram a reprimir e assassinar oponentes graças a algumas forças armadas “sandinistas” que já se parecem, como duas gotas de água, às que permitiram a Somoza roubar e dizimar esse país infeliz.

Evo Morales, na Bolívia, se prepara para ser reeleito pela quarta vez como presidente. Ele fez uma consulta para ver se o povo boliviano queria que ele fosse de novo candidato. A resposta foi um retumbante não. Mas ele não se importa. Declarou que o direito de ser candidato é democrático e está disposto a se eternizar no poder graças às eleições fabricadas à maneira venezuelana.

E o que dizer do México? O país escolheu esmagadoramente López Obrador, em eleições legítimas, e os assassinatos de jornalistas e mulheres continuam em um ritmo aterrador no país. O populismo começa a corromper uma economia que, apesar da corrupção do governo anterior, parecia bem orientada.

É verdade que existem países como o Chile que, ao contrário dos já mencionados, progridem em passos de gigante, e outros, como a Colômbia, onde a democracia funciona e parece progredir, apesar de todas as deficiências do chamado “processo de paz”.

O Brasil é um caso à parte. A eleição de Bolsonaro foi recebida em todo o mundo com espanto, por suas tiradas de tom demagógico e seus discursos militaristas. A explicação para esse triunfo foi a grande corrupção dos governos de Lula e de Dilma Rousseff, que deixaram o povo brasileiro indignado e o levaram a votar em uma tendência contrária, não em uma submissão democrática.

Certamente, seria terrível para a América Latina que o gigante brasileiro também começasse o retorno à barbárie. Mas isso ainda não aconteceu e muito dependerá do que o mundo inteiro fará e, acima de tudo, da América Latina democrática, para evitá-lo. / Tradução de Claudia Bozzo

*É prêmio Nobel de literatura


Política Democrática: “Venezuela enfrenta profunda crise”, dizem Fernando Braga e Silva e Norman Gall

Em artigo publicado na sétima edição da revista Política Democrática online, diretores do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial avaliam reflexos do governo de Nicolás Maduro

Cleomar Almeida

Hoje a Venezuela enfrenta uma profunda crise social, com o altíssimo índice de homicídios de 81 por 100 mil habitantes em 2018 e hiperinflação com estimativa do FMI de 10.000.000% para 2019. A avaliação é dos autores Fernando Braga e Silva e Norman Gall, diretor adjunto e diretor executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, em artigo publicado na sétima edição da revista Política Democrática online.

» Acesse aqui a sétima edição da revista Política Democrática online

De acordo com os autores, a Venezuela enfrenta uma profunda crise social, com o altíssimo índice de homicídios de 81 por 100 mil habitantes em 2018, quase o dobro de 2003 (que era de 44 por 100 mil) e que parou de ser divulgado oficialmente em 2015. Além disso, conforme eles lembram no texto, o país sofre com hiperinflação de mais de 1.000.000% em 2018, com estimativa do FMI de 10.000.000% para 2019; forte recessão com queda de 18% do PIB no ano passado.

“Este tipo de resultado não é fruto de coincidências peculiares ou desastres que ocorreram naquele país”, afirmam, para continuar: “Mesmo considerando a importância geopolítica da Venezuela e a disputa internacional sobre este país, que certamente tem contribuição relevante para sua instabilidade, isto é consequência de políticas que levaram à erosão das instituições nacionais, que tiraram o controle dos rumos do país de seu povo e deixaram na mão de um grupo fechado de poucos privilegiados, entre militares de alto escalão e políticos civis, que até hoje vivem em boas condições apesar do caos em que o país se encontra”.

Segundo os autores, esta erosão institucional iniciou antes de Chávez com a desorganização das finanças públicas, causada por uma má gestão dos royalties do petróleo e do despreparo do país para um cenário de queda de seu preço. “E se acentuou com uma série de ataques aos freios e contrapesos do sistema democrático, como a recomposição da Suprema Corte em 2004, ampliando o número de magistrados para nomeação daqueles favoráveis a Hugo Chávez, que proferiu escandalosas 45.474 sentenças de 2004 a 2013, sendo absolutamente todas favoráveis ao governo, conforme demonstrado no livro El TSJ a servicio de la Revolución”, escrevem.

Outros exemplos destas ações são, de acordo com os autores, a eliminação do limite de mandatos presidenciais por meio de referendo em 2009 e o controle crescente sobre a mídia. “Não foi preciso acabar com o voto para erodir a democracia. A manobra do referendo se deu, inclusive, pelo voto”, ressaltam. “A defesa contra este tipo de estratégia é difícil, pois estas ações normalmente se dão sob pretextos ricos em retórica popular, que vão da maior eficiência das instituições ao enfrentamento de grandes grupos privilegiados da mídia ou de setores empresariais, manipulando a opinião pública”, dizem.

 

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El País: Banco Central da Venezuela reconhece que o PIB caiu 52% sob Maduro

Após quatro anos de silêncio estatístico, instituição divulga os indicadores que confirmam a recessão contínua no país petroleiro desde muito antes das sanções dos EUA

Desde 2015 o Banco Central da Venezuela (BCV) não publicava seus indicadores econômicos. Nesta terça-feira, os dados que sistematicamente eram ocultados apareceram no site da instituição, revelando uma queda de 52,3% no produto interno bruto (PIB) desde 2013, quando Nicolás Maduro foi eleito presidente.

O BCV aponta que a inflação alcançou 130.060% em 2018, a cifra mais alta na história recente do país. Em 2017, situou-se no 862,6%, depois de registrar 274,4% em 2016 e 180,9% em 2015. Os números, entretanto, encontram-se muito abaixo das estimativas da Assembleia Nacional, de consultorias independentes e de organismos multilaterais que calcularam a alta de preços do ano passado em mais de 1.700.000% (1,7 milhão por cento) e preveem que ela irá ultrapassar 10.000.000% (10 milhões por cento) em 2019.

A informação divulgada de surpresa nesta terça inclui a balança de pagamentos da empresa estatal Petróleos da Venezuela (PDVSA) e as importações. Estas caíram de 57,18 bilhões de dólares em 2013 para 14,89 bilhões em 2018, um desmoronamento que começou bem antes de os Estados Unidos imporem sanções econômicas e petrolíferas ao país. A redução explica também o forte desabastecimento de bens que assola os venezuelanos. A curva coincide com a do rendimento das exportações petrolíferas, que caíram a um terço do que eram – de 85,6 bilhões de dólares em 2013 para 29,8 bilhões em 2018 –, por causa da abrupta diminuição na produção do petróleo bruto em decorrência da má gestão e corrupção na estatal. Neste ano, a produção de petróleo na Venezuela caiu ao seu mínimo histórico: 740.000 barris por dia, pela primeira vez abaixo da Colômbia, segundo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP).

O relatório do BCV desenha uma economia totalmente arruinada. Segundo a instituição, o setor da construção civil caiu 95% entre o terceiro trimestre de 2013 e o terceiro trimestre de 2018, a indústria se contraiu 76%, e o comércio e instituições financeiras recuaram 79%. De acordo com os dados divulgados nesta terça-feira, no final de 2018 esse colapso se acelerou.

A reiterada desculpa de Nicolás Maduro para justificar a profunda crise na Venezuela, que também se expressa no aumento da pobreza e do desemprego após 18 meses de hiperinflação, é a “guerra econômica” que os Estados Unidos e outros países não alinhados a seu Governo estariam travando contra o país e o seu mandato.

Quanto à inflação acumulada nos primeiros quatro meses de 2019, o regime de Maduro tem uma estimativa pior que a da Assembleia Nacional, que a calculou em 666%, enquanto o BCV a situou em mais de 1.047%.


El País: Um Exército com mais de 1.000 generais a serviço do chavismo

Com 123.000 membros, Força Armada Bolivariana foi reformada por Chávez para exercer controle social

O Exército da Venezuela desempenha nos últimos dias um papel decisivo na crise política do país. O chamado à mobilização dos militares feito na terça-feira passada pelo presidente interino Juan Guaidó depois da libertação do político oposicionista Leopoldo López pôs em evidência as discrepâncias dentro das Forças Armadas, uma instituição que tradicionalmente manteve estreitos laços com o Governo venezuelano e que, apesar dos esforços de modernização da etapa chavista, sofreu nos últimos anos as consequências da crise econômica que assola o país.O Exército tem 123.000 membros, aproximadamente o mesmo contingente que a Espanha, quase um terço que o Brasil — o maior da região com 334.500 soldados — e menos de uma décima parte que dos EUA (1.359.450), segundo cifras do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês). Cerca de 100.000 militares venezuelanos estão incorporados ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica.

Os 23.000 restantes formam a Guarda Nacional Bolivariana (polícia militar).Mas há dúvidas sobre o real contingente de paramilitares do regime. O Governo chavista cifra em dois milhões os membros da Tropa Bolivariana, um corpo composto por civis e militares da reserva. O IISS calcula que mal superem 200.000, e Rocío San Miguel, especialista militar venezuelana, acredita que não passem de 20.000 os que realmente têm a formação necessária para combater. “Muitos são funcionários públicos. A maioria nunca disparou um só tiro. A inscrição é o único requisito, e fazê-lo é uma maneira rápida de entrar na máquina do regime”, argumenta San Miguel, que preside a ONG Controle Cidadão.Também têm natureza paramilitar o Serviço de Inteligência Bolivariano (SEBIN), que é a polícia política do chavismo, e as Forças Especiais da Polícia (FAES), um órgão criado em 2016 e responsável por parte da violência exercida sobre os opositores.

A transformação
A irrupção do chavismo, em 1999, foi acompanhada de uma profunda renovação das Forças Armadas. "Transformaram-se em fiadores da revolução", comenta San Miguel por telefone, de Caracas. A transformação se acelerou em 2006 com o embargo armamentista imposto pelos EUA, até então seu principal fornecedor de armas, junto à Itália e o Reino Unido. O bloqueio de Washington forçou Hugo Chávez a procurar na Rússia seu novo sócio estratégico. Com o preço do petróleo disparando, o mandatário lançou essa relação bilateral com acordos multimilionários para a compra de armamentos.De fabricação russa são os aviões de combate mais sofisticados (Su-30) do Exército venezuelano, e os sistemas de defesa antiaérea (S-300) e a maioria de seus tanques e helicópteros. Em 2006, frente à necessidade de expandir uma indústria armamentista quase inexistente, decidiu-se com Moscou a instalação de uma fábrica Kalashnikov na Venezuela, cujo planejamento foi adiado inúmeras vezes em meio a suspeita de malversação de recursos. O Executivo de Vladimir Putin enviou há algumas semanas uma centena de soldados “especialistas” à Venezuela, embora nunca se tenha esclarecido o que estão fazendo no país.Depois de consolidar a relação militar com Moscou, Caracas começou a estreitar laços com Pequim. O Exército chinês participou — como o russo e o cubano — de manobras militares realizadas em território venezuelano. Depois que a Espanha suspendeu a venda de material antimotins a Caracas em 2014, milhares de capacetes, coletes à prova de balas e bombas de gás lacrimogêneo fabricados na China chegaram à Venezuela. De lá o regime importou também lança-foguetes, torpedos e aeronaves de transporte, treinamento e combate ligeiro.

Outros aliados
Belarus, Irã e Turquia são outros aliados da Venezuela de menor importância estratégica. Dezenas de cadetes venezuelanos se graduaram na Academia Militar de Minsk, e o regime chavista comprou de Alexander Lukashenko óculos de visão noturna e miras a laser. Teerã forneceu drones, além de anunciar em dezembro a intenção de enviar neste ano um navio de guerra às costas venezuelanas. Durante sua visita a Caracas em dezembro passado, o mandatário turco, Recep Tayyip Erdogan, destacou os avanços na cooperação militar entre ambos os países, embora sem nenhum anúncio concreto até o momento.A crise econômica decorrente da queda do preço do petróleo afetou a capacidade do Governo de sustentar seu gasto em armamento. Segundo dados do Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo (SIPRI), o país não importou nenhuma arma nos últimos dois anos. Mas a situação do Exército nem sempre foi tão precária. Um relatório do instituto publicado em abril sobre o papel do Exército na Venezuela afirma que desde 1958 as Forças Armadas negociaram seu apoio ao Governo em troca de "dinheiro, poder e prestígio".

A Administração de Hugo Chávez (1999-2013) fortaleceu sua posição. O presidente levou militares a cargos graduados no Governo e lançou programas que permitiram a modernização de seu armamento. O gasto militar nesse período alcançou seu nível máximo, e em 2006 chegou a superar o do Brasil. O artigo 328 da Constituição da República Bolivariana da Venezuela, aprovada em 1999, atribuiu aos militares “a manutenção da ordem interna e a participação ativa no desenvolvimento nacional”. Também o artigo 236 concedeu a Chávez o direito a aprovar a promoção de coronéis e capitães, o que na prática serviu para expurgar dissidentes e promover oficiais leais, muitos dos quais acabaram em posições importantes em empresas estatais. Segundo dados da Transparência Venezuela citados no relatório, 60 das 576 empresas públicas são dirigidas por militares. Essa militarização do Governo continuou com Maduro, e em janeiro deste ano, antes da remodelação ministerial realizada por causa da crise política, 9 das 32 pastas do Gabinete eram dirigidas por oficiais.

Uma cúpula maior do que toda a da OTAN
Outra das peculiaridades de suas Forças Armadas é sua enorme cúpula, com mais de mil generais e almirantes, mais do que toda a OTAN. San Miguel diz que a maioria deles chegou à principal patente na última década, e que muitos têm pouco mais de 50 anos. A especialista também afirma que apesar da corrupção estendida entre a cúpula militar, ela não chega a todos do alto escalão.O pedido à mobilização do Exército na terça-feira colocou à prova a força da instituição. “Há uma divisão entre os oficiais de alto escalão e os soldados rasos. A maioria dos oficiais de alto escalão apoia Maduro, enquanto cresce o número de soldados que estão do lado de Guaidó”, diz o pesquisador do SIPRI Nan Tian. “Evidentemente, existem os que são leais a Maduro e isso tem a ver com o fato de que cometeram crimes (frequentemente violações de direitos humanos) e, portanto, se Maduro perder o poder, serão processados”, diz por e-mail.Justamente para conseguir o apoio desses militares, a Assembleia da Venezuela redigiu em janeiro uma lei de anistia para militares e civis chavistas que colaborarem no “restabelecimento da ordem constitucional”.“Os militares exerceram o papel de agentes de uma política de repressão onde o uso excessivo da força foi a norma e causou mortes”, afirma a diretora para as Américas da Anistia Internacional, Erika Guevara-Rosas, que se refere também à função social do Exército. A Guarda Nacional é a encarregada de distribuir comida subsidiada. “Isso funcionou como um controle social, os alimentos são destinados a quem o Governo escolher”.