velórios

João Gabriel de Lima: Um país com três desastres aéreos por dia

É fundamental que o Brasil da inteligência suplante o Brasil da ignorância

A tragédia brasileira na gestão da pandemia atingiu, nesta semana, um número macabro: 250 mil mortes. Enterramos o equivalente a três Maracanãs lotados. Tal cifra poderia ser evitada? Há meses a ciência diz que só há duas maneiras de controlar uma pandemia: vacinação em massa (que, infelizmente, vai demorar) ou isolamento social. Em Portugal, onde vivo, o auge do coronavírus foi em meados de janeiro. O país tinha os piores números da Europa – 300 mortes por dia e risco de colapso da saúde pública. O governo decretou quarentena. Na quinta-feira 25, foram registradas 49 mortes – a ciência funciona. Na mesma data, o Brasil contabilizou 1.582 óbitos, o equivalente às vítimas três desastres aéreos num único dia. 

A tragédia brasileira, no entanto, poderia ser ainda pior. Em artigo publicado no Estadão, o economista Pedro Nery lembrou que o México, governado por uma esquerda negacionista, apresenta uma taxa de 1.400 óbitos por covid por milhão de habitante, a maior da América Latina. Segundo estudos citados por Nery, uma das razões do desastre mexicano é a inexistência de algo equivalente a um auxílio emergencial. Os mexicanos vulneráveis foram obrigados a sair de casa para batalhar o sustento, expondo-se ao vírus mortal. 

O Executivo brasileiro também é negacionista, mas o Congresso, com o apoio de 163 organizações da sociedade civil – em movimento registrado nesta coluna – colocou de pé o auxílio emergencial. O benefício permitiu que vários cidadãos brasileiros se protegessem do vírus ficando em casa. 

A proeza mostra o impacto de curto prazo de uma política pública bem desenhada. No longo prazo, o impacto pode ser muito maior. O mesmo México que reagiu tão mal à pandemia foi, no passado, referência em transferência de renda. Estudos mostram que o programa Prospera gerou oportunidades para uma geração inteira, livrando-a da indigência. Criadas na mesma época, políticas brasileiras similares, implantadas nos governos Fernando Henrique e Lula, começam a despertar o interesse dos acadêmicos. 

Os novos estudos sobre programas de transferência de renda no Brasil miram justamente os efeitos de longo prazo. O economista Naercio Menezes, professor do Insper e personagem do mini-podcast da semana, defende uma reforma do Bolsa Família que privilegie famílias com crianças de zero a seis anos. Segundo suas contas, o uso de instrumentos já existentes – o cadastro e o aplicativo – permitirão otimizar os recursos do benefício. Sem rombo no orçamento público, famílias brasileiras poderão receber até R$ 800 por criança pequena, garantindo o desenvolvimento delas – e seu futuro – na fase mais crítica.

Os estudos de Naercio e outros especialistas já municiam congressistas brasileiros, como a senadora Eliziane Gama, do Cidadania. Os projetos de transferência de renda da deputada Tabata Amaral (PDT) e do senador Tasso Jereissati (PSDB) têm igualmente a virtude de olhar para o futuro.  

Confirma-se mais uma vez o clichê dos “dois brasis”. Um é o do populismo e do descaso, responsável pela tragédia da pandemia. O outro é o da universidade cheia de boas ideias e dos gestores capazes de implantá-las – a ponto de alguns de nossos programas sociais tornarem-se referência internacional. É fundamental que o Brasil da inteligência suplante o Brasil da ignorância. A alternativa é enterrar, todos os dias, o equivalente às vítimas de três desastres aéreos. 


Sérgio Augusto: Vacinas, valores e velórios

Não teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, mas atingimos a marca de 250 mil

Já estava me preparando para ser vacinado quando as vacinas acabaram. Foi aí que descobrimos que, na estupefaciente gestão do general Placebo no Ministério da Saúde, a vacinação é regida por dois calendários, como o tempo já foi em priscas eras. Pelo calendário juliano, quando há vacinas disponíveis, e pelo calendário gregoriano, quando elas acabam e ainda não têm data para chegar. Daí a máxima romana “sine vaccinus, sine die”, cunhada antes da invenção da primeira vacina. 

E assim as vacinações no Rio foram jogadas para as calendas. Ainda bem que para as calendas romanas, não para as gregas. Será que nas calendas de março saberemos quando, pelo calendário gregoriano, levaremos nossa redentora picada? 

Pior do que essa espera, possivelmente passageira, e as justificadas incertezas relativas à segunda dose foi tomar conhecimento das descaradas mentiras sobre a performance de Bolsonaro durante a pandemia que a ministra Damares e o chanceler Ernesto Araújo tentaram vender na ONU. Ficaram só na tentativa porque ninguém lá fora acredita mais em nada que diga, faça ou prometa fazer de bom o ogro que nos governa, exaspera, envergonha, e concentrou no extermínio seu mais eficaz programa de corte de gastos na Previdência. 

Não menos desalentadora foi a constatação de que a Bolsa de Valores se sensibiliza muito mais com uma troca no comando da Petrobrás pelo presidente da República que seus investidores ajudaram a eleger do que com as ininterruptas e recordistas altas na contagem de mortos e infectados pela covid, no País. Não teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, basofiou o capitão negacionista em abril do ano passado. Atingimos a marca de 250 mil mortos esta semana; 50 mil só nos últimos 48 dias – e vacinamos apenas 3% da população.

Se alguma coisa o presidente sabe fazer, e bem, é mentir e tirar o dele da reta. “Não sou coveiro”; “Não sou profeta”; “Não compro seringas”. Pilatos ao menos lavava as mãos. O capitão nem sequer usa máscara.

A fulminante queima de ações da BR também veio corroborar a teoria de que a matança em curso, se não faz parte de um maquiavélico projeto político e econômico do bolsonarismo, como a aniquilação da cultura e da educação, desmoralizou em definitivo o chavão de que “as nossas instituições estão funcionando”. Se estivessem, ou pelo menos o STF estivesse, a pleno vapor, o nosso Napoleão de hospício já estaria na ilha de Elba da nossa imaginação. 

Verdade que o ministro Alexandre de Moraes se tem comportado com o destemor que seu cargo exige, mas Dias Toffoli, Luiz Fux e Gilmar Mendes, conforme salientou na terça-feira o comentarista político Bernardo de Mello e Franco, facilitaram o serviço para a chicana que culminou com a anulação das quebras de sigilo bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro, no inquérito das rachadinhas. Toffoli e Fux travaram a investigação por cinco meses, e Mendes abriu a gaiola para Fabrício Queiroz, o factótum da familícia. 

Comprado o Legislativo, cooptadas e neutralizadas as Forças Armadas mediante cargos, subsídios, promessas, leite condensado e claque em formaturas de cadetes, pergunto: quais instituições ainda funcionam normalmente nestas bandas? 

Por encarnar e afiançar a “ultima ratio” de qualquer país que as possua, as Forças Armadas (sim, mais de dez nações sobrevivem sem o seu concurso) deveriam preservar-se de aventuras como foram os golpes de que participaram desde a Proclamação da República. O que pretendia impedir a posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, foi só uma (ou a) exceção à regra justamente porque um oficial do Exército, o marechal Henrique Teixeira Lott, e sua excalibur da legalidade melaram a tempo a conjura udenista. 

Quando vejo, leio ou ouço alguém lamentar a escassez ou mesmo ausência, hoje, de políticos e outros figurões civis de alto nível, sempre me vem à lembrança a figura do marechal. Com ele, nenhum golpista tirava farofa. Que reação lhe provocaria um confesso autogolpista como Bolsonaro? Que atitude teria face à fascistoide ameaça do general Villas-Boas ao STF, em abril de 2018? 

O ator, humorista e cronista Gregório Duvivier desenvolveu uma tese que, em outras cabeças, inclusive na minha, já andou caraminholando. Ao contrário do que se pensa, o presidente não protege e prestigia além da conta os seus ex-colegas de farda, notadamente os da arma em que fez carreira, o Exército, mas, na verdade, os rebaixa e desmoraliza. Ao lhes dar emprego e funções que exigem especial capacitação, expõe-lhes a incompetência e engorda as desconfianças de que suas nomeações são menos frutos de uma ineludível promiscuidade corporativista do que das limitações sociais impostas pela vida em caserna. Azar nosso se o capitão só se dá com milicos. 

Para Duvivier, Bolsonaro está se vingando do coronel que o humilhou, reprovando-o por sua “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio”, de outro oficial que condenou sua “excessiva ambição em realizar-se financeiramente” e, acrescento eu, do general Ernesto Geisel, que o considerava “um mau militar”. 

Não sei se concordo com a hipótese de que nem décadas de propaganda antimilitar da esquerda causaram mais estrago na imagem do Exército do que a sanha empregatícia do presidente, mas é possível que sim. Já a suspeita de que só agora, com meio século de atraso, o capitão cumpre uma missão que lhe teria sido delegada pelo capitão Carlos Lamarca, não é, como toda blague, para ser levada a sério. É para rir.

Ria, enquanto o golpe não vem. 

*É jornalista e escritor, autor de ‘Esse mundo é um pandeiro’