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Marco Aurélio Nogueira: Guinada não é líquida e certa

A demissão de Vélez Rodríguez não pegou ninguém de surpresa. Dada como certa, abriu uma janela de oportunidade para o governo Bolsonaro. Antes de tudo, porque limpou um território minado. O governo se desgastava ao permanecer sancionando o despreparo de Vélez e deixando-se contaminar pelas disputas entre “olavetes” e militares – e agora pode começar a pensar a Educação como dimensão estratégica, dando a ela um mínimo de atenção.

A guinada, porém, não é líquida e certa. O novo ministro, Abraham Weintraub, um bolsonarista de primeira hora, também é jejuno em gestão educacional, ensino médio e educação básica. Não se trata de um técnico da área, um intelectual ou um articulador político, qualidades sempre preciosas no complicado mundo da Educação. Além disso, gosta de se apresentar como adversário do “marxismo cultural”, o que poderá levá-lo a alimentar a guerra ideológica de Olavo de Carvalho, de quem se diz um admirador e um “adaptador”.

A decisão presidencial puxa um freio de arrumação no MEC, mas não se sabe se esfriará a influência de Olavo. Se o novo ministro, à diferença de seu antecessor, apresentar um plano para gerir a Educação no País, ajudará a dar ao governo um eixo que até agora não foi encontrado. Se permanecer agarrado ao doutrinarismo, a janela de oportunidade não passará de uma fresta, que logo se fechará.

*É cientista político do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp


Ricardo Noblat: Bye, bye, ministro!

Mudança na Educação

É com um travo na alma que o presidente Jair Bolsonaro deverá demitir, hoje, o ministro da Educação, Ricardo Veléz Rodrigues. Não porque goste particularmente dele. Gosta de suas ideias. Reprova seu desempenho. O ministério está uma zorra e não pode continuar assim.

O travo tem a ver com a cobrança feita pela mídia para que o ministro seja dispensado. Bolsonaro detesta a mídia. Ou melhor: grande parte dela. E não gostaria de lhe dar esse gostinho. Se ele pudesse – ou se puder – adiaria a demissão outra vez.

Será o segundo ministro a cair em menos de 100 dias de governo – ou de desgoverno, como preferirem. Gustavo Bebiano, da Secretária-geral da Presidência da República, foi demitido primeiro pelo vereador Carlos Bolsonaro, e só depois pelo pai dele.

Veléz Rodrigues foi indicado pelo autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, guru da família Bolsonaro e de milhares de devotos do presidente. Mas desde a semana passada que Olavo largou de mão o ministro. Só não quer que seus discípulos percam os empregos.

Em troca de alguma recompensa, do tipo uma vaga em outro lugar qualquer do governo com um salário bastante razoável, o ministro irá embora sem se queixar. Ele nunca imaginara ser ministro. Foi surpreendido com o convite. Vida que segue.

Por enquanto, a vida do ministro do Turismo, Marcelo Antônio, também irá adiante. Ele está enrolado até o talo no escândalo das candidaturas falsas do PSL de Bolsonaro em Minas Gerais. Dinheiro público foi desviado, e isso é crime. Mas Bolsonaro o protege.

Afinal, o ministro foi escolha dele e de mais ninguém. Estava ao seu lado em Juiz de Fora quando Bolsonaro acabou esfaqueado. Ajudou a transportar seu corpo para o hospital. Dali só saiu quando soube que o então candidato a presidente havia sobrevivido.

Não se abandona um amigo no meio do caminho. Para Bolsonaro, ex-paraquedista, confiança é essencial. Quem está atrás confia em quem está na frente na hora de saltar. E quem está na frente confia em que está mais à frente. O primeiro da fila confia nele mesmo.

Sobre isso Bolsonaro dissertou em Israel para uma atenta e perplexa plateia de empresários, todos interessados em saber o que ele queria dizer com tudo aquilo. Foram embora sem entender direito, mas tudo bem. Culpa da tradutora que tampouco entendeu.

O show de Mourão em Harvard

Aplaudido de pé
Foi o contraponto da visita recente do presidente Jair Bolsonaro aos Estados Unidos. Enquanto Bolsonaro fez questão de se apresentar aos americanos como um líder belicoso e de extrema direita, o vice-presidente Hamilton Mourão fez o inverso.

Talvez tenha sido por isso que acabou sendo aplaudido de pé pela plateia da Brazil Conference, evento organizado pelos estudantes brasileiros das universidades Harvard e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

Quando fala dos problemas da segurança pública, Bolsonaro dá ênfase às medidas duras contra o crime e à necessidade de armar a população para que se defenda. Mourão não foi por aí quando perguntado como encara a questão.

Defendeu que o governo faça um trabalho “persistente” na área social para resolver a criminalidade. “Com as pessoas vivendo amontoadas em favela, sem acesso a água e luz” e a mercê dos traficantes, ele disse, “nós não vamos resolver o problema”.

Fez questão de separar as Forças Armadas do governo. Disse que elas continuarão cumprindo seu papel tal como definido pela Constituição. Alegou que os militares empregados no governo deixaram a farda. E que Bolsonaro é político há mais de 30 anos.

Mas admitiu, sim, que a imagem das Forças Armadas será afetada caso o governo fracasse. “Se o nosso governo errar, errar muito, não entregar o que prometeu, a conta acabará sendo paga pelas Forças Armadas”, afirmou sem tergiversar.

Um professor de Harvard manifestou sua preocupação com a excessiva vinculação dos militares ao governo. E lembrou que o ex-presidente Ernesto Geisel concluíra no final do seu governo que os militares deveriam devolver o poder aos civis.

Resposta de Mourão: “Geisel não foi eleito. Eu fui”. De certa forma, Mourão contrariou a história oficial contada pelas Forças Armadas de que os generais presidentes do ciclo de 64 foram eleitos pelo Congresso, o que garantiria a legitimidade dos seus mandatos.

Mourão reconheceu que não deu certa a ideia inicial de Bolsonaro de desprezar os partidos e negociar o apoio das bancadas temáticas dentro do Congresso. E que ele agora tentará montar “maiorias transitórias” para aprovar cada projeto do governo.

Mas para que a “nova estratégia” possa ser bem sucedida haverá que se ter “muita paciência e diálogo”. Mourão espera que Bolsonaro, hoje, resolva o que fazer com o ministro da Educação. “Não vou negar: estamos com um problema na Educação”, disse.

Só houve um momento durante o debate com professores e estudantes de Harvard em que Mourão pareceu embaraçado. Foi quando lhe perguntaram o que teria feito de diferente nesses primeiros 100 dias de governo se fosse ele o presidente.

– Escolheria, talvez, outras pessoas para governar comigo – respondeu.


Julio Wiziack: As regras do jogo

Governo tem dificuldade para articular aprovação da reforma da Previdência

A crise que quase derrubou o ministro da Educação não acabou. Ricardo Vélez foi mantido pelo presidente Jair Bolsonaro para evitar um desgaste político maior. Nos bastidores, no entanto, crescem as apostas em Mendonça Filho.

Mendoncinha, como ele é conhecido, pertence ao DEM, partido do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Pode se tornar uma saída pelo apoio do Congresso na reforma da Previdência, primeiro teste do governo.

Essa possibilidade vem sendo construída pelo próprio Maia e pela deputada Joice Hasselmann (PSL-SP).

Contrariando seu partido, Hasselmann apoiou Maia para a presidência da Câmara. O gesto ajudou Joice a ganhar a confiança de Maia e ela se tornou líder do governo no Congresso. Agora, a deputada costura apoio para ocupar a articulação política do governo no lugar de Onyx Lorenzoni, ministro da Casa Civil.

Uns acham ser uma completa viagem de Joice. A realidade é que até os militares reconhecem nela a capacidade de interlocução com todas as alas políticas no Congresso, algo que falta a Onyx.

Na ausência do chefe da Casa Civil, que viajou para a Antártida, até cargos Joice negociou com deputados, segundo parlamentares que receberam os telefonemas.

Um aliado no Congresso, no entanto, tratou de avisá-la que a manobra não estava funcionando porque os cargos não eram relevantes.

Mesmo assim, o governo acredita que faltam menos de 50 votos para a aprovação da reforma, como profetizou na semana passada o ministro da Economia, Paulo Guedes.

De novo, a realidade se impõe. Sem interlocução formal, os partidos começam a se posicionar contra a reforma. Entre as siglas, somente o DEM ganhou com a nomeação de ministros. Mas o presidente do partido afirmou que nunca fez indicações.

Os parlamentares adoram ouvir Paulo Guedes sobre as vantagens da reforma. Mas, no final do dia, voltam ao velho beabá sem saber quais são as novas regras do jogo.

E, sem regras, não tem jogo.


Míriam Leitão: A educação longe do foco

Foi uma semana difícil, a que termina. Difícil pelo que houve e pelo que não houve. A tragédia de Suzano jogou na cara do país uma emergência para a qual nunca estivemos preparados. O Ministério da Educação passou a semana imerso numa crise entre olavistas e não olavistas, tema totalmente estranho à realidade. A gestão do ministro Vélez Rodriguez esgotou-se nessa briga intestina e na sua incapacidade de olhar os verdadeiros problemas da área.

O que houve em Suzano não é culpa evidentemente do MEC. A relação entre os dois fatos se dá pela total alienação das autoridades federais, em um país onde a educação deveria ser a prioridade absoluta.

Não é a primeira vez que acontece uma tragédia como a de Suzano, mas ela mostrou que não foram estudados os ataques anteriores a escolas como os de Realengo e da creche de Janaúba, Minas, em que morreu heroicamente a professora Heley de Abreu Silva Batista. Sobre esse assunto que repete os macabros e frequentes atentados em escolas nos Estados Unidos, o país precisa se debruçar para compreender o fenômeno em todos os seus aspectos, em vez de simplificar a rota do entendimento das causas.

Foi equivocada e desconcertante a reação do governo. Nos primeiros momentos, governistas como os senadores Major Olímpio e Flávio Bolsonaro tentaram fortalecer as teses favoráveis ao porte de armas, quando, claramente, essa pauta se enfraquece. Olímpio defendeu que professores se armassem como solução, e Flávio culpou o “malfadado estatuto do desarmamento”. O presidente Bolsonaro demorou seis horas para manifestar uma simples solidariedade às famílias das vítimas, e o ministro só se moveu quando já estava ficando constrangedor seu silêncio e sua alienação.

O problema é complexo e tem sido estudado profundamente em outros países. Há pesquisas internacionais que podem ajudar o Brasil a tentar compreender esses eventos que são muito difíceis de prever. A abordagem terá que ser multidisciplinar, pela multiplicidade de fatores que podem ocasionar tragédias assim. É devastadoramente triste ver adolescentes sendo atacados por dois jovens, um deles menor de idade, no momento em que estavam estudando. Uma das alunas do 3º ano do Ensino Médio, que havia passado a manhã em aulas de sociologia e filosofia, falou a frase síntese: “em um momento a gente estava feliz e, no outro, implorando pra viver.”

O Brasil expõe os adolescentes a riscos excessivos. Este é extremo e não está no nosso radar. Mas há os perigos mais frequentes como os da gravidez precoce, do aliciamento pelo tráfico, da violência, do altíssimo índice de abandono e evasão do ensino médio. Há ainda a dificuldade de as escolas prepararem as crianças e jovens para um mundo que está em transformação vertiginosa.

Apesar da distribuição de tarefas entre os níveis federativos, o Ministério da Educação sempre vai liderar essa política pública no Brasil. E o MEC está à deriva. Basta ver o noticiário da semana. Durante todos os dias o Ministério foi assunto, mas era sobre quem era demitido e a quem o exonerado era ligado. Se era um militar, se era um olavista. Ou os ataques de Olavo de Carvalho ao ministro que indicou para o cargo. Enfim, nada relevante.

Recentemente, o presidente Bolsonaro estimulou os pais a rasgarem cartilhas que traziam desenhos anatômicos do corpo humano com explicações sobre educação sexual. É óbvio que isso é matéria de estudo, ao contrário do que pensa o presidente, numa carolice tardia e incoerente com sua própria história de vida. Não são vestais dos costumes os que nos governam. Os jovens precisam ser protegidos dos riscos de doenças e da gravidez precoce. Ignorar isso é aumentar os perigos a que estão submetidos. É medieval rasgar livros e tentar impedir a preparação de crianças e jovens para a vida sexualmente saudável.

O governo navega em uma realidade paralela correndo atrás da sua agenda de campanha, tolhido por ela e incapaz de reagir diante de emergências, ou de ter foco na pauta real do país. O Brasil precisa urgentemente de um ministro da Educação que conheça os assuntos do setor. É impossível ter esperança de que Vélez Rodriguez vá um dia encontrar a agenda educacional brasileira. Ele continuará prisioneiro das facções que levou para o Ministério.


O Estado de S. Paulo: Guerra política derruba número 2 e paralisa MEC

Luiz Tozi, secretário executivo do Ministério da Educação, é exonerado em meio a uma disputa entre técnicos, militares e seguidores de Olavo de Carvalho; permanência de ministro é incerta

Por Renata Cafardo, Isabela Palhares e Lígia Formenti, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A disputa política instalada no Ministério da Educação (MEC) levou à demissão do número dois da pasta, o secretário executivo Luiz Antonio Tozi, nesta terça-feira, 12. A saída foi determinada pelo presidente Jair Bolsonaro ao ministro Ricardo Vélez Rodríguez. Desde a semana passada, o ministério já teve sete funcionários afastados, está com editais paralisados e programas sem definição. Não há garantia de que Vélez, que tem sido criticado por apostar em ações de cunho ideológico e dar declarações polêmicas, vá continuar no cargo.

Tozi tinha perfil técnico, havia trabalhado para o governo de São Paulo e fazia parte de um grupo que vinha aconselhando Vélez a dar um novo direcionamento para o ministério. Outros dois grupos brigam por poder no MEC: os chamados “olavistas”, ligados ao escritor Olavo de Carvalho – considerado guru do “bolsonarismo” – e os militares.

Estado apurou que a “reformulação” na pasta pode chegar a 20 nomes. Entre os atingidos estariam outros seguidores de Olavo e integrantes do grupo do coronel Ricardo Roquetti, apontado como braço direito de Vélez e que foi desligado nesta segunda-feira, 11. Funcionários ligados a Tozi também devem pedir para deixar o MEC. Não está descartada ainda a saída de Vélez logo depois da viagem de Bolsonaro aos Estados Unidos, mesmo com o presidente tendo dito nesta terça-feira que ele “continua no cargo”.

Conta a favor do ministro o fato de o governo não ter um nome forte para substituí-lo rapidamente. O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, já trabalha para indicar um parlamentar para o posto. Outra opção cogitada pelo governo é mantê-lo no cargo, mas num papel de “fachada”. Os poderes ficariam concentrados em um novo secretário executivo, ainda a ser definido. Nesta terça-feira, Vélez avisou pelo Twitter que o novo número dois da pasta será Rubens Barreto da Silva, que era secretário adjunto e amigo de Tozi.

A guerra interna foi exacerbada depois da repercussão negativa da carta enviada pelo ministro a escolas de todo País, pedindo que fosse lido o slogan da campanha de Bolsonaro e que as crianças fossem filmadas cantando o Hino Nacional, noticiada pelo Estado. Como consequência, Vélez acabou demitindo parte do grupo ligado a Olavo, que defendia políticas mais conservadoras.

A reação dos “olavistas” e do próprio escritor foi imediata. Tozi foi chamado de “tucano” e acusado de não ser alinhado às ideias do presidente. Olavo pediu a cabeça do secretário executivo ontem pelo Twitter, assim como já tinha feito com o coronel Roquetti.

Para a presidente do Movimento Todos pela Educação, Priscila Cruz, a demissão de Tozi “não é um bom sinal”. “Essa gestão precisa entender a missão do ministério, que é enfrentar a crise de aprendizagem dos alunos brasileiros e deixar de diversionismos.”

 

Programas
Enquanto isso, programas estão paralisados e servidores temem tomar decisões. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), responsável pela transferência de recursos a Estados e Municípios para a compra de livros didáticos, merenda e transporte escolar, é um dos que mais afetados. O órgão tem um orçamento de R$ 58 bilhões e também está dividido – é presidido por Carlos Alberto Decotelli, indicado pelos militares, mas duas diretorias foram entregues a “olavistas”.

A compra de livros literários, que já estava aprovada desde o ano passado, ainda não foi feita. Também não foi alterado o edital de livros didáticos para a educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, que precisa ser adequado à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O edital para os livros do ensino médio, que deveria ter sido publicado em janeiro, ainda não saiu. O mesmo ocorre para a compra de dicionários para as escolas. Sem a garantia de que permanecerão no cargo, os diretores não querem assumir a responsabilidade de assinar editais. E se preocupam em validar documentos que possam conter erros ou regras polêmicas.

Secretários
Entidades também estão preocupadas com a falta de clareza sobre o futuro de programas do MEC. Segundo a presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Cecília Motta, não há informações sobre continuidade das avaliações ou verbas que o ministério repassava para implementação da BNCC. O órgão está preparando um documento para entregar ao ministério em que pede que políticas sejam continuadas.

O grupo que reúne os secretários municipais também tem a mesma preocupação com relação a repasses para programas de alfabetização, por exemplo. “Não há uma definição e as secretarias já estruturaram seu planejamento pensando nesses recursos”, diz Aléssio Costa Lima, presidente da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).

Procurada nesta terça-feira pela reportagem, a assessoria de comunicação do Ministério da Educação (MEC) afirmou que não tinha tempo hábil para responder a todos os questionamentos.

Olavo
A demissão de Luiz Antonio Tozi, e o agravamento da crise interna no ministério foram precedidos por uma série de postagens de Olavo de Carvalho. As críticas seriam uma retaliação “ao expurgo” promovido contra ex-alunos de Olavo dentro do Ministério da Educação.

Em suas redes sociais, Olavo publicou nos últimos dias dezenas de mensagens com recados ao governo, a Vélez e a apoiadores de Bolsonaro. Após a demissão de Roquetti, Olavo publicou que era necessário “concluir a limpeza”. “Diante de uma operação de infiltração como essa, ninguém pode ser poupado. É preciso mandar todos para a rua”, escreveu em seguida.

Olavo também já fez ameaças ao próprio ministro Vélez Rodríguez, dizendo que um acordo com grupos que tiveram influência antes da eleição seria um “crime”, e chegou a sugerir a demissão do ministro. “Recomendei o ministro Vélez, mas se ele cair no erro monstruoso que mencionei (acordo com quem estava na pasta antes), ponham-no para fora”, diz a mensagem publicada na segunda.

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Fernando Gabeira: Ouviram do Ipiranga

Orgulho pelo país não nasce necessariamente das aulas de Moral e Cívica; desenvolve-se nas dores e alegrias do cotidiano

Conversa de segunda-feira de carnaval. Antes de vir para o Brasil, passei na velha livraria Bertrand, em Lisboa. Queria comprar um livro, apenas um para a estrada, a longa viagem de volta. Optei pelo de Milan Kundera “Os testamentos traídos”. Dei sorte. É um livro excelente. Num dos ensaios, intitulado “Em busca do presente perdido”, ele fala de Hemingway. Ressalta o esforço do escritor americano em ouvir e anotar diálogos, sua tentativa de capturar na forma e no som a realidade das conversas.

Kundera menciona a novela de Hemingway “Colinas como elefantes brancos”. É um diálogo entre um homem e uma mulher. Cheio de ambiguidades, aberto para a imaginação do leitor. Mas a interpretação de alguns críticos transformou a história numa lição de moral, heroína e vilão, bem contra o mal. As abstrações acabaram engolindo a realidade do momento vivido.

É um tipo de visão do mundo, segundo Kundera, que nos faz morrer sem saber o que vivemos. A realidade se esvai nas abstrações.

Podemos escrever um diário, lembra Kundera, anotar todos os acontecimentos e descobrir que não registramos nenhuma imagem concreta. O presente é um planeta desconhecido. Não conseguimos mais acessá-lo nem pela memória e nem pela imaginação.

Cheguei ao Brasil em meio à polêmica sobre o Hino Nacional nas escolas. O ministro da Educação queria que as crianças o cantassem e recitassem o slogan de Bolsonaro: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Tudo isso já foi desfeito pelo recuo do governo na proposta. O ministro tinha a intenção de levar Moral e Cívica às escolas. Seus opositores respondem também com uma visão cívica, pois alegaram contra a proposta dispositivos constitucionais e algumas leis ordinárias.

E as crianças nisso tudo foram apenas objeto de um confronto entre diferentes visões cívicas.

O que representa um hino nacional para elas? Às vezes acho que, na infância, primeiro brincamos com o som das palavras para mais tarde entende-las. Meu neto aprende a cantar em alemão. Brinca com a sonoridade, mas não tem a mínima ideia do sentido das palavras. Eu mesmo, quando menino, cantava os hinos mais importantes tentando trazê-los para a realidade tangível. “Já podeis da pátria, filhos”, por exemplo, substituía por “Japonês tem quatro filhos”.

Com o tempo, as experiências coletivas, a vivência da história, passei a ouvir os hinos de forma diferente e, em certos momentos, cantá-los emocionado. Mas o que a criança pode fazer com um lábaro que ostentas estrelado? Que tipo de terra é mais garrida? Pode se guardar na mochila o penhor dessa igualdade?

Mesmo essa história do slogan de Bolsonaro, “Deus acima de todos”, pode não confundir as crianças, mas a mim confunde. Deus não está em toda parte? No meio e abaixo ele deveria estar também, creio; não apenas acima de tudo. Pode estar nas pequenas coisas, nos antros mais sórdidos do planeta.

Compreendo que é tudo um modo de dizer. Mas são essas grandes ideias abstratas que povoam a cabeça da direita e da esquerda. Ambas correm o risco de criar uma espécie de cortina que nos afasta da própria realidade.

Existe uma força permanente que visa não apenas ao jogo vital das crianças, seu divertimento, mas também a mascarar a própria face do real. Como diz Kundera: “para que nunca saibas o que vivestes”. Crianças uniformizadas cantando hinos e acenando bandeirinhas estão presentes em muitas situações. Na Coreia do Norte, por exemplo, parecem disciplinadas e endurecidas pelo patriotismo; no entanto, há uma certa tristeza nesses espetáculos.

Alguma coisa no olhar, na rígida encenação, revela que a alegria e a espontaneidade foram embora, que as crianças amadurecem um pouco à força, como frutas de supermercado.

Compreendo que exista o medo de que as crianças não sintam amor pelo seu país, nem se entusiasmem por defendê-lo. Uma de minhas filhas é atleta. Toda vez que que consegue uma vitória internacional, costuma acenar com a bandeira do Brasil.

O orgulho pelo país não nasce necessariamente das aulas de Moral e Cívica nem dos prolixos hinos pátrios. É algo que se desenvolve na experiência coletiva, nas dores e alegrias do cotidiano.

Lançar o véu dos lugares-comuns sobre a riqueza do instante presente, como observa Milan Kundera, é a forma de sufocar o real com abstrações para que a criança nunca saiba o que viveu.


Eugênio Bucci: O ridículo do hino e a escola sem sentido

É difícil pensar em algo pior do que ‘Brasil acima de tudo’ ou ‘Deus acima de todos’

Na segunda-feira a repórter Renata Cafardo, do Estadão, revelou que o MEC enviara às escolas do Brasil um par de instruções estapafúrdias e patriofrênicas. Por e-mail o órgão máximo da educação nacional pedira que as crianças fossem perfiladas para cantar o Hino Nacional e as cenas, gravadas em vídeo, fossem enviadas a Brasília para deleite dos ocupantes da Esplanada.

Não foi só. O MEC também solicitou aos dirigentes das escolas que lessem para os alunos uma mensagem ufano-pedagógica de autoria do titular da pasta, Ricardo Vélez Rodríguez: “Brasileiros! Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos, que constituem a nova geração. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”.

Como ainda resta um pingo de consciência – e de senso de ridículo – na sociedade, a reação foi instantânea. Educadores e advogados protestaram, alegando que crianças não podem ser filmadas assim, de qualquer jeito, sem autorização dos pais. Outros repudiaram a transformação de um slogan de campanha eleitoral em chamamento de governo para as escolas.

A grita foi tão determinada e irrefutável que o ministro recuou de pronto. Tem sido assim, aliás, nesse governo de idas e vindas. O estilo da administração de turno é o “fez que foi e acabou não fondo”. A toda hora uma autoridade dispara uma bravata e depois recua. Esta semana mesmo o presidente da República voltou atrás e desistiu de aumentar o sigilo em documentos da administração federal – quer acalmar os parlamentares. Quanto ao ministro da Educação, ele é um virtuose em matéria de “fez que foi e acabou não fondo”. Há poucas semanas, numa entrevista escalafobética, pronunciou impropérios sobre o cantor e compositor Cazuza e logo teve de se desculpar. Um pouco antes, já tinha voltado atrás em mudanças desastradas nas regras de compra dos livros didáticos. Agora, adotou o mesmo procedimento. Reconheceu o erro. Disse que não quer filmar a meninada sem que os pais autorizem e admitiu que esse negócio de usar símbolos partidários como insígnias de políticas públicas não fica bem.

E assim caminha este país, sem caminhar para lugar algum. Mas não é esse o maior dos nossos problemas. Sem dúvida, as reviravoltas desastradas num governo chegado a pirotecnias patrioteiras tumultuam desnecessariamente o quadro. São ruins. Atrapalham. Mas a situação é mais complicada ainda. O nosso maior problema, como fica patente em mais essa gafe do MEC, não está nas trapalhadas cometidas por autoridades civis em posição de sentido. O maior problema é que a administração federal de turno tem, sim, um modelo obscurantista com o qual sonha em amordaçar a sociedade brasileira e só não o leva adiante porque a sociedade não se deixou vergar. Não fossem os protestos – justos e legítimos –, a esta altura as crianças brasileiras, como nos idos da ditadura militar, estariam aí ao sabor de delírios autoritários com ponto de exclamação.

Se temos algum juízo, deveríamos olhar com muito mais atenção para esse modelo obscurantista acalentado nas fileiras do bolsonarismo. Como arma publicitária de campanha, o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” já era um pesadelo. Para começar, a primeira parte, “Brasil acima de tudo”, é um plágio infeliz de um mote abraçado pelo nazismo nos anos 1930, “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles). Esse mote, por sua vez, veio de um verso de uma canção nacionalista do século 19. Logo, a fantasia que o bolsonarismo resolveu papagaiar, além de não ser original, além de não ser sequer brasileira, é velha de quase 200 anos.

Um passado mítico, já sabemos, funciona como motor para os discursos tendentes ao fascismo. No nosso caso, porém, estamos tratando de passados míticos que são de segunda mão e, na melhor das hipóteses, são paródias de mau gosto.

Se o MEC tivesse um mínimo de compromisso com a educação e com a modernidade (a fantasia de “Alemanha acima de tudo” é pré-moderna e antimoderna), pediria aos alunos redações críticas sobre o mote nazista. Pediria aos alunos que pensassem. Mas não, o MEC prefere ver as crianças perfiladas para ouvir o slogan eleitoral transformado em estética estatal. Outra vez, não por acaso, se manifesta aí mais um traço distintivo dos regimes hierarquizados, centralizadores, disciplinadores, opressivos: a estetização do Estado.

Agora nos ocupemos da segunda parte: “Deus acima de todos”. Pelo que me lembro, nas missas católicas os fiéis repetem outro tipo de enunciado: “Deus está no meio de nós”. Esse Deus autocrático, vertical, impositivo, francamente, não dá para saber bem de onde os bolsonaristas foram tirar. Não adianta dizer que é o Deus do Velho Testamento, porque aquele Deus se basta, ele não está na disputa para ficar “acima de todos”.

Em termos filosóficos, ou racionais, é difícil pensar em algo pior que “Brasil acima de tudo” ou “Deus acima de todos”. Só o que pode ser pior que cada um dos dois imperativos são os dois imperativos postos juntos. Aí, qualquer lógica desmorona. Vamos lá.

Se o Brasil está mesmo acima de tudo, teria de estar também acima de Deus. E se Deus está acima de todos, ora, teria de estar acima do Brasil. Imaginemos a cabeça de uma criança, empertigada na frente da Bandeira, tentando compreender os dois mandamentos fundidos num só. Essa criança, pobrezinha, vai concluir que Deus está fora de tudo (ou o Brasil estaria acima de Deus) e que o Brasil está fora de todos (ou Deus estaria acima do Brasil). Portanto, “tudo” não é “tudo”, assim como “todos” não significa exatamente “todos”. Alguém chame o Tim Maia, o filósofo que dizia: “Tudo é tudo e nada é nada”. Mais do que uma escola sem partido, o que o MEC quer para o Brasil é uma escola sem sentido. A sanha autoritária precisa de uma escola que não pense.

*JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USP


Bernardo Mello Franco: Circular do MEC é típica de ditaduras

O ministro Vélez prometeu combater a ‘doutrinação’, mas quer despejar propaganda oficial nas salas de aula. A receita já foi usada no regime militar e no Estado Novo

O ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, orientou os diretores de escolas a filmarem os alunos perfilados diante da bandeira e ao som do hino nacional. O comunicado é típico de ditaduras, e não só pelo ufanismo de almanaque.

Vélez enviou uma carta a ser lida para alunos, professores e funcionários no primeiro dia do ano letivo. O texto começa com uma exclamação patriótica (“Brasileiros!”) e termina com o slogan de campanha do presidente Jair Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”). Entre uma coisa e outra, exalta a chegada do “Brasil dos novos tempos”, numa aparente alusão à posse do chefe.

A circular insta os diretores a filmarem as crianças e enviarem os vídeos para o gabinete do ministro. Só faltou dizer que as escolas que descumprirem a ordem ficarão de recuperação — ou receberão menos verbas federais no ano que vem.

Prócer da ala olavista do governo, Vélez já havia deixado claro que confunde as tarefas de Estado com a militância ideológica. Em vez de mirar as deficiências do ensino básico, tem desperdiçado tempo com discursos contra a suposta influência do “globalismo” e do “marxismo cultural” sobre os professores.

O ministro é um crítico da “doutrinação”, mas sua circular representa exatamente o que ele diz combater: a tentativa de despejar conteúdo chapa-branca pela goela dos alunos. Não chega a ser uma ideia original.

Depois do golpe de 1964, que Vélez já definiu como uma data “para comemorar”, os militares estimularam o culto à bandeira e a pregação ufanista nas escolas. Chegaram a impor a disciplina Educação Moral e Cívica, outra patriotada que o ministro quer ressuscitar.

Antes disso, o Estado Novo obrigou os estudantes a reverenciarem o chefe do governo e os símbolos nacionais. Na cartilha “Getúlio Vargas, o amigo das crianças”, editada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o presidente dizia que “é preciso plasmar na cera virgem que é a alma da criança a alma da própria pátria”.

É assim que pensam as ditaduras, sejam elas de esquerda ou de direita.